
14-01-2011 - 11:53
A armação de atuns que deu origem a Armação de Pêra
Na ampla baía defronte do conhecido centro turístico de Armação de Pêra foram desde tempos remotos lançadas armações de atuns que estiveram na origem da povoação e lhe explicam o nome.
As primeiras referências a essas armações para a pesca do atum (Pedra da Galé e Pêra) são bastante vagas e situam-se entre finais do séc. XV e inícios do séc. XVI (Notícias da antiguidade das almadravas no Reino do Algarve, BNL, Res. F.G., Ms. 2700). Há notícias de armadores de Lagos e de Vila Nova de Portimão que vinham quase todos os anos, entre Abril e Agosto, lançar os extensos e complexos aparelhos de pesca chamados armações (almadravas, na designação antiga) para capturar os atuns que nesses meses passavam com destino ao Mediterrâneo onde iam desovar (atum de direito), ou no regresso ao Atlântico (atum de revés).
Essas comunidades piscatórias, estabelecidas sazonalmente em rudimentares cabanas na praia, estavam sujeitas a ataques de piratas do Norte de África que frequentemente vinham saquear as armações e as povoações mais próximas do litoral. Desde o reinado de D. João III que as notícias dos assaltos fizeram sentir a necessidade da construção de estruturas defensivas. Foi por esse motivo que começou a ser cercada por muralhas Alcantarilha (1571) e foi depois construída a fortaleza de Santo António de Pêra (1661).
Em 1577, na obra "Corografia do Reino do Algarve" (in Duas Descrições do Algarve do Século XVI, Liv. Sá da Costa, Lisboa, 1983), Frei João de São José dá-nos uma informação precisa: Pêra é um lugar junto de Alcantarilha, não longe do mar (...). Faz o mar defronte dela uma formosa praia da banda do sul, na qual está uma armação de atuns que se chama a armação de Pêra ( p. 58).
Nos livros de registos paroquiais de Alcantarilha, encontram-se amiúde referências às armações de Pêra e da Pedra da Galé. Há diversos registos de óbitos de "estantes" (moradores ocasionais) nessas armações, por ex. nos anos de 1607, 1609, 1610, 1611 e 1614. Entretanto, mantinha-se a situação de insegurança dos armadores, pois a guarnição militar do castelo de Alcantarilha era escassa, além de estar muito distante para acudir a tempo às rápidas incursões dos corsários magrebinos.
Em 1621, o engenheiro militar Alexandre Massai, numa viagem de inspecção às estruturas defensivas do Algarve, observava a propósito de Albufeira: " E porque perto dela estão duas armações de atuns (...) que se dizem uma delas Pedra da Galé, a outra Pêra (...), estas ditas armações já foram roubadas e saqueadas por falta de defensão e com perda da fazenda de Sua Magestade e das partes que é assaz notório" . E mencionava também, ao falar de Alcantarilha: "Junto dela está o outro lugar acima dito de Pêra que ambos estão arriscados a um assalto e cativeiro que Deus não permita (...) e também pela segurança das armações deste lugar juntas que são Pera e Pedra da Galé, onde3 na costa está a família destes armadores, como Vossa Senhoria deve saber" (Lívio Costa Guedes, Aspectos do Reino do Algarve nos sécs. XVI e XVII, ed. 1988, p. 115 e p.119).
Construída a fortaleza de Santo António de Pêra, em 1661, passou a haver mais condições para a fixação permanente dos pescadores no lugar que se viria a chamar Armação de Pêra. Em 1747, o lugar já é referido como aldeia (Luís Cardoso, Dicionário Geográfico) e, em 1758, é descrito como "povoação de 456 vizinhos, 1206 pessoas e se chama Armação de Pêra pela vizinhança que com aquele lugar tem (...) Com temporada se lança a armação dos atuns em que se copeja grande cópia deles" e informa-nos que o maremoto de 1755 causou 62 mortos (Memórias Paroquiais de Alcantarilha).
Uma planta datada de 1774 mostra-nos a armação de atuns lançada e o arraial de cabanas na praia, perto da fortaleza (Planta 2ª e total onde se mostra toda a baía de Santo António de Pêra com a armação da Pedra da Galé, Arquivo do Exército).
Uma descrição bastante completa e relativa ao ano de 1790 é-nos dada por Constantino Botelho de Lacerda Lobo, na Memória sobre o estado das pescarias do Algarve no ano de 1790: "Compõe-se esta povoação de um ajuntamento de cabanas de pescadores que vivem perto do mar em uma praia areenta (...) Contavam-se no ano de 1790 cento e cinquenta pescadores, os quais trabalham na armação do atum o tempo competente desta pescaria, depois na de diversos peixes do mar com os covãos, nos lugares pedregosos da costa: findas as pescarias feitas com estes aparelhos, gastam o resto do ano em arrastar as xávegas para terra (...)" (p. 113-114).
Uma nova descrição em 1841 apresenta-nos uma povoação em desenvolvimento, com boas casas em vez de cabanas e cuja como praia já era frequentada por banhistas: "Hoje terá um terço da povoação da outra aldeia [destruída em 1755], composta de pescadores e gente que se emprega no mar; os quais têm para as suas pescarias 5 lanchas e 4 artes: a mais dominante é a das sardinhas no tempo da passagem. (...) Poucos anos há, ainda era formada só de cabanas, hoje tem boas casas e algumas ricas. (...) Os moradores, fora da temporada da sardinha, apanham com os covões e anzol algum peixe que vendem em fresco. São hum pouco desmazelados, e não se afastam da costa; dão-se a alguns trabalhos do campo, e as mulheres empregam-se em obras de palma. De Verão concorrem aqui muitas pessoas a tomar banhos do mar". (João Baptista da Silva Lopes, Corografia ou Memória Económica, Estatística e Topográfica do Reino do Algarve, p. 290-291). Repare-se, no entanto, que não é mencionada a armação, por estar desactivada.
Noutra descrição da aldeia de pescadores, feita em 1873 por Pinho Leal (Portugal Antigo e Moderno), verifica-se que a armação continuava a não ser lançada e que a maioria da população se ocupava na pesca. Este autor também observa um aumento da frequência da praia de banhos, dizendo que "na estação própria" a população flutuante era igual à população permanente.
Por volta de 1885-1886, o estudioso das pescas A. Baldaque da Silva dá conta da reactivação da armação da Pedra da Galé e refere em Armação de Pêra 27 embarcações e 176 pescadores, bem como regista a existência de uma fábrica de conserva de peixe
A armação da Pedra da Galé era propriedade da empresa Mascarenhas, Manuel & Companhia (fundada em 1881), à qual sucedeu a Companhia de Pescarias Louletano-Silvense (criada em 1892). O último ano em que a armação foi lançada terá sido 1905, a julgar pelos registos da capitania de Portimão (cit. Rui Prudêncio, A pesca do Atum na Costa Central do Algarve nos sécs. XIX e XX, in Anais do Município de Faro, 2003-04).
O Anuário Comercial de 1909 já não refere qualquer armação em actividade, mas sim duas fábricas de conservas de peixe e duas empresas de pesca. E assinala que Armação de Pêra era então um "lugar frequentadíssimo na estação balnear pela excelência da sua praia". Iniciava-se uma mudança das características da pequena povoação de pescadores que se acentuaria a partir dos anos 60, com um crescimento urbano descontrolado que continuou atá aos nossos dias.

Autor: José Manuel Vargas











