O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.
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segunda-feira, 27 de março de 2017

Eurexit (ainda a propósito do pequeno holandês, sem memórias)

Parece que já ninguém gosta da Europa. Uns, porque têm saudades do mítico Estado-nação, das suas queridas fronteiras e policias, das moedas nacionais e dos câmbios em que se perdia sempre duas vezes, da inflação e das desvalorizações; outros, porque não gostam da ideia de existirem jurisdições acima das nacionais onde os cidadãos se podem queixar dos abusos do seu próprio Estado ou de haver uma lei comum que estabelece as regras em matéria de direitos laborais, empresariais ou ambientais; outros porque não querem mais imigrantes – seja de fora da Europa seja da própria Europa, como é o caso dos ingleses; e outros ainda porque não querem uma política de defesa comum, uma política externa comum e, menos ainda, uma política fiscal comum, como é o caso dos irlandeses e dos holandeses. E há os que estão fartos de que a Europa se meta nos seus assuntos internos, impedindo-os de estabelecerem regras mais próprias de ditaduras do que de democracias, como sucede com os húngaros, os polacos ou os aspirantes turcos. Finalmente, temos os países do sul, que se queixam da falta de solidariedade dos do norte, do sufoco das dividas públicas e bancárias a que estão sujeitos (e que em parte foram contraídas para safar os biliões emprestados sem critério pelos governos e bancos dos países ricos do norte), e temos os países do norte que acusam os do sul de gastarem o dinheiro em copos e mulheres (não, não são só o capataz holandês e o policia alemão que pensam assim).
Luva branca

Os copos e as mulheres ainda é o lado para que dormimos melhor – sobretudo quando a acusação vem de um holandês. O que nos custa é que quem nos quer dar lições de bom comportamento financeiro seja ministro das Finanças de um pais que serve de sede fiscal às nossas vinte maiores empresas para lá pagarem parte dos impostos por riqueza criada aqui e que aqui deveria ser cobrada. Porque o Eurogrupo, a que Dijsselbloem preside, exige que todos cumpram regras comuns em matéria de controlo do défice público, mas não quer nem pratica nem pratica regras comuns em matéria de fiscalidade – o que permite que a Irlanda e a Holanda funcionem como oásis fiscais e o Luxembourgo, que durante anos foi governado pelo actual presidente da comissão, Juncker, tenha então funcionado como uma lavandaria de topo para as grandes empresas multinacionais e nacionais.

Mas isso, o direito de pernada sobre coisa alheia, vem na tradição da Holanda: sempre foram um povo com vocação para a pirataria. Mesmo na chamada “Golden Age” da Holanda (um período que coincide com os sessenta anos de reinado dos Filipes em Portugal), a prosperidade das Sete Províncias Unidas fez-se com base na transformação das matérias-primas que outros, como os portugueses, iam buscar longe e correndo todos os riscos, e a imensa frota que então construíram destinava-se a pilhar as colónias alheias, em lugar de fundar as próprias. Foi assim que os holandeses se lançaram à conquista do Pernambuco português, convencidos de que guerras e a colonização que ocupavam o imenso império espanhol levariam Madrid a alhear-se do destino de parte da terra brasileira do seu vassalo português. Há, no Brasil, uma persistente lenda, segundo a qual, os trinta anos de ocupação holandesa do Pernambuco foram toda uma época de esplendor e progresso, bem ilustrada pela fantástica “Embaixada cultural” que Maurício de Nassau para lá terá levado. A versão portuguesa, em que confio mais, é outra: assim que desembarcaram no Pernambuco, os holandeses começaram por arrasar a capital, Olinda (que depois os portugueses reconstruiriam), justificando-o com a plausível razão de que não estavam habituados a defender elevações, mas apenas terras planas. Em seu lugar, Maurício de Nassau (que foi um bom administrador) lançou-se na construção de uma cidade com o seu nome e que hoje se chama Recife – mas onde, curiosamente, não há vestígios da passagem dos holandeses no que quer que seja. E a tão falada Embaixada cultural do Príncipe de Nassau resumia-se ao seu médico pessoal, um botânico, um físico, um ilustrador e um pintor.

Este, Peter Post, pintou exactamente 24 quadros no Brasil, os quais Maurício de Nassau levou de volta (isto quando durante a “Golden Age” holandesa se pintaram cerca de dez milhões de telas, fazendo deste o mais profícuo e um dos mais notáveis períodos de toda a história da pintura). De facto, e infelizmente, os portugueses nunca tiveram a visão e a vocação de registar em pintura os lugares que descobriam, que desbravavam ou que colonizavam. No Pernambuco, estavam demasiado ocupados em repelir os ataques dos indios, em fazer agricultura e em explorar imensas plantações de cana-de-acuçar  - justamente o alvo dos holandeses.

Estes, por seu lado, não padeciam dos grandes desígnios dos portugueses, tais como converter indios à sua fé, enviar bandeirantes pelo interior, explorar novos territórios. Nem sequer faziam agricultura e, menos ainda, queriam explorar a cana-de-acuçar. Eles queriam apenas comprar o acuçar dos plantadores portugueses, tentar melhorar o seu processamento e trazê-lo para a Holanda para o vender umas cem vezes mais caro, através da Europa: o monopólio do comércio e do transporte de um produto disputadíssimo na Europa, sem o esforço, os riscos e as doenças que a sua exploração exigia. Não por acaso, certamente – e contrariando a lenda do entusiasmo com que o Brasil recebeu os holandeses e a tristeza com que os viu partir – a aventura brasileira da Holanda começou a ter fim nas duas decisivas batalhas de Guararapes, em 1648/49, quando 4500 holandeses foram desbaratados por um exército de 2200 homens daquilo que então se podia chamar a “nação brasileira”: um batalhão de portugueses comandados por João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, um batalhão de negros comandado pelo ex-escravo Henrique Dias e um batalhão índio comandado pelo índio Felipe Camarão.

Tenho o maior prazer em recomendar a leitura da história ao sr. Dijsselbloem.

Mas talvez se devesse ir ainda mais além na instrução histórica básica do presidente do Eurogrupo. Recordar-lhe que foram os países do sul que ele tanto despreza, que edificaram as fundações da Europa que hoje conhecemos, impondo os seus valores, hoje universais, contra os “bárbaros” do norte. A Grécia deu à Europa a democracia e a arte; a Itália deu-lhe o Império Romano, uma das mais notáveis criações politicas da Humanidade, fundado na lei e na igualdade das partes, e deu-lhes o Renascimento, contra o obscurantismo então reinante; Portugal e Espanha abriram o mundo à Europa, e a França deu-lhe os valores da Revolução Francesa. O que deu o Norte de comparável?

Sim, esta Europa que Dijsselbloem simboliza e representa já não serve ninguém e não interessa a ninguém. Os dez anos de presidência do português Durão Barroso, com a sua política de sempre, em todos os cargos que ocupou – ou seja, salvar a pele, nada fazendo – foram fatais para a Europa. Mantendo-se sempre à tona, flutuando sem sobressaltos perante cada problema, a Europa foi apanhada impreparada perante as crises qua e viriam a assolar e hoje navega à deriva, sem rumo nem praia à vista. Esta Europa, que daqui a dias celebra 60 anos de vida, foi uma extraordinária criação de uma notável geração de políticos europeus, que agora se arrasta para um fim sem sentido nem glória, conduzida por uma notável geração de medíocres. Talvez o destino dos povos não seja o de saberem ser felizes, mas o de estarem eternamente insatisfeitos. De vez em quando, isso é bom; outras vezes é trágico.

Por Miguel Sousa Tavares, in Expresso de 25.03.2017


domingo, 24 de abril de 2016

sobre a incrivel relação dos portugueses com o mar (excerto de artigo de MST no Expresso

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3 Como no ano passado, a Câmara Municipal de Lisboa lançou um concurso de ideias aberto a todos os munícipes, em que o único limite é que os projectos propostos não ultrapassem o valor de 50.000,00 euros.
Eu tenho uma ideia, mas infelizmente custa bem mais que isso. Todavia, acho que valia a pena pensar nela e, já aqui a tendo aflorado, vou agora concretizá-la mais.

A minha ideia é pegar no lindíssimo, histórico e abandonado edifício da Cordoaria Nacional, em Belém, e ali montar um Museu do Mar e das Descobertas – uma grave lacuna da cidade e do pais.

Um museu que através do recurso à pintura, aos objectos, mapas, vídeos, literatura (excertos da “Carta de Pero Vaz de Caminha”, da “História Trágico Maritima”, poesia, etc.), da reprodução de navios celebres em escala pequena, como existe no Museu da Marinha em Veneza (e temos ainda artífices para isso), de batalhas navais em que participámos ou que testemunhámos ( Trafalgar foi ao lado do Algarve), nos desse, para nós e para todos os que nos visitam, uma visão histórica e compreensiva do que foi a longa e incrível relação dos portugueses com o mar. Não apenas as Descobertas, mas também, a extraordinária epopeia da pesca à baleia (que nunca teria sido levada a cabo sem as tripulações portuguesas, dos Açores e Cabo Verde, como atesta uma visita ao Museu da baleia, em New Bedford), ou a igualmente incrível epopeia da pesca ao bacalhau, à vela. Que contivesse uma descrição, através de desenhos, mapas, fotografias, dos fortes que os portugueses edificaram nas duas costas de África, do Malabar, no Golfo Pérsico e no Brasil e da sua importância para a história; das culturas que, por via marítima, introduzimos no Brasil, do intenso tráfico comercial que promovemos durante séculos entre a Índia, o Brasil, África e Lisboa e, sim, também da escravatura que praticámos intensamente até ao século XX. Trataríamos da História, mas também da oceanografia, de que D. Carlos foi pioneiro e deixou vasto testemunho, das artes de pesca, das espécies do nosso mar, da importância dos recursos da nossa ZEE e a pensar nas escolas, também coisas como princípios rudimentares de navegação em alto-mar, importância dos faróis e seu funcionamento, vida a bordo, técnicas de resgate e salvamento, etc. Acho que devemos isto a nós mesmos e Lisboa deve isso a si própria.

Miguel Sousa Tavares, in : “Expresso” de 23 de Abril de 2016

domingo, 27 de março de 2016

BRASIL:Justiça e Justiceiros! (Onde já vimos este filme que, invariavelmente acaba mal?)


Por corresponder rigorosamente ao entendimento do blog "Cidadania" sobre os recentes acontecimentos na politica brasileira, decidimos transcrever parte do artigo abaixo identificado.

2  Lula da Silva foi o melhor Presidente que o Brasil teve desde, pelo menos, Jucelino Kubitscheck.

Num  pais onde só existiam praticamente duas classes – a dos milionários e a dos miseráveis -, ele ocupou-se destes e tirou 14 milhões de brasileiros da miséria mais absoluta, dando-lhes casa, pão, electricidade e escola e vacinas aos filhos. Mas ele e Dilma deixaram para trás a emergente e incipiente classe média, a que apenas exigiram impostos sem nada darem em troca. É essa classe média, atingida em cheio pela desaceleração da China e pela queda do preço das matérias-primas, que agora está nas ruas contra o PT.

Fartos de esperar por um pais que falha sempre o encontro com o seu destino.
Anda a nossa direita toda contente com as desventuras do PT brasileiro porque julgam que assim podem continuar a ajustar contas com Sócrates, por interposto Lula, e varrer dos livros da História o sucesso da governação de esquerda que Lula levou a cabo e que o mundo inteiro teve de reconhecer. Não sei se Lula está ou não envolvido nas coisas de que a justiça o acusa, mas sei que a pretensão de resumir à corrupção do PT e ao “Lava-Jato” todos os problemas do Brasil revela uma grande ignorância. No topo, como o demonstrou o “Mensalão”, a corrupção deriva directamente de um sistema constitucional que, na prática, impede qualquer Presidente de governar sem de alguma forma comprar votos no Congresso. Mas o problema da corrupção no Brasil vai muito para além disso, pois começa no policia de patrulha e continua no médico do hospital. É um problema endémico e cultural, um veneno espalhado por toda a sociedade brasileira e cuja solução não é adivinhável. O “Lava-jato” não vai deixar pedra sobre pedra de todo o edifício político, administrativo e económico do Brasil. E depois?

Numa situação de decomposição geral em que todo o país vive hoje, a justiça podia funcionar como uma salvaguarda: o Estado de direito face ao estado de corrupção moral generalizada.
Mas o que se tem visto é outra coisa: a tentação de fazer a justiça que a rua e alguns media exigem leva a espezinhar princípios fundamentais de uma sociedade democrática regida pela lei. É sintomático que a Ordem dos Advogados Brasileiros tenha sentido a necessidade de lembrar o fundamento de tudo: ”Os fins nunca justificam os meios”. Porque há quem julgue que sim...até ao dia em que lhes baterem à porta. Há quem julgue que vale tudo e que os juízes justiceiros não devem deter-se em detalhes enquanto não puserem atrás das grades os que a rua e a imprensa tabloide julgou culpados. Já vimos este filme vezes suficientes para poder ignorar que acaba sempre mal. Num Estado de direito a sério não é tolerável que o juiz de instrução seja também o que faz o julgamento e dita a sentença. Não é tolerável que ordene e divulgue escutas entre um suspeito e o seu advogado. Não é tolerável, ao contrário do que aqui dizia na semana passada o representante sindical dos juízes brasileiros, que as escutas sejam divulgadas publicamente como forma de incentivar os julgamentos populares. Não é admissível, sob pena de qualquer país ser ingovernável, que um simples juiz de instrução possa escutar as conversas do Presidente da República e divulga-las para a imprensa, ao sabor da sua conveniência processual. Não é admissível, lá como cá, que as pessoas sejam presas para prestar declarações, inexistindo qualquer indício de fuga à justiça. É impossível não questionar, jurídica e eticamente, a figura da “delação premiada”, que pune o legitimo direito de negar a acusação, premiando os delatores, e sem qualquer garantia da veracidade do que se diz para salvar a pele. E, obviamente, só os incautos ou os de má-fé podem achar natural que um juiz de primeira instância (ainda  para mais publicamente engajado contra um político) impeça esse político de tomar posse como ministro, sem que isso ponha em causa de forma frontal o principio da separação de poderes e abra caminho a essa coisa que a direita detesta ouvir mas que é a qualificação adequada: uma República de Juízes. Sim, eu também acho que Lula nunca devia ter aceitado o expediente de que lançou mão para poder abrigar-se atrás de um tribunal superior e tendencialmente menos influenciável. Mas isso é fácil de dizer quando não se está numa situação em que se sente que o jogo é desigual e politicamente motivado.

O Brasil está à beira do abismo, e ninguém sabe como tudo isto vai acabar. Mas seria bom que os que têm mais responsabilidades, queiram ou não a condenação de Lula e do PT ou o impeachment de Dilma, não arrisquem deitar fora a criança com a água do banho. Que, por inadvertência ou desforra, não estejam a preparar o caminho para um golpe militar, que depois lamentarão “democraticamente” – como sucedeu com Carlos Lacerda, em 67, depois de realizar a bestialidade da ditadura militar que os seus inflamados escritos contra o governo constitucional de João Goulart ajudara a preparar. Um Brasil de novo fechado pelos militares 8e eles não precisam de muito para serem convencidos...) seria a desgraça final. Excepto para os que acham que é mais importante garantir a prisão de Lula a qualquer custo do que evitar que a democracia também vá presa.

Miguel Sousa Tavares, in “Expresso” de 25 de Março de 2016, excerto do artigo intitulado “O Terror e o Medo”

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Esclarecimento cristalino na "Hora da Verdade"


Por considerarmos uma análise pedagógica e esclarecedora sobre a situação real que o pais vive, decidimos publicar este artigo de Miguel Sousa Tavares, no último Expresso:

A HORA DA VERDADE

Com a falta de senso político que o caracteriza, Passos Coelho vem agora propor ao PS uma “refundação do acordo com a troika”. Para começar, explicou-se mal: ele não pretende refundar o acordo, pretende sim dar-lhe cumprimento integral - o que até agora não fez. Refundar o acordo seria fazer ver aos nossos prestamistas que, nestes prazos e com estes juros, e sem políticas que devolvam vida à economia, jamais teremos salvação. Mas não é isso que ele quer, já o disse várias vezes. O que ele quer agora é um parceiro que o ajude a ocupar-se da parte difícil e complicada do acordo assinado com a troika e que era, segundo ele, o seu próprio programa eleitoral. Porque, um ano e meio volvido, tudo o que o Governo executou do acordo foi a parte fácil: mudou a lei laboral, diminuiu ordenados e subsídios na função pública, começou a privatizar (e mal), e arrasou o país com impostos. A parte difícil - que era reformar o Estado, reduzi-lo a uma dimensão sustentável, evitar que ele continue a roubar a economia, as poupanças e os postos de trabalho - nisso, o governo de Passos Coelho não mexeu ainda, salvo algumas minudências. As célebres “gorduras”, cujo corte radical esgotava todo o pensamento económico de Passos Coelho, foram cortadas onde podiam ser (sobretudo na Saúde) e rapidamente vão parar, porque, ao contrário do que a actual maioria fazia crer anteriormente e do que a demagogia populista afirma, não há muito mais por onde cortar, sabendo-se que todos aceitam cortes desde que não sejam atingidos por eles.

Para se ter uma ideia daquilo de que se trata e daquilo com que estamos confrontados, vale a pena olhar algumas realidades factuais:

- A despesa anual do Estado é de 78.000 milhões de euros e a receita, após todos os desaustinados aumentos de impostos, é de 70.000 milhões. A diferença é o défice;

-Acumulados ano após ano, os défices formam a dívida, que, neste momento está em 119% do PIB e em breve chegará aos 124% - e que é a herança que esta geração se prepara para deixar às seguintes. O serviço da dívida, apenas com juros, gasta hoje praticamente tanto como a Saúde e só por si é responsável por 80% do défice. A “ajuda” que nos permite sobreviver serve apenas para pagar os juros do que devemos.

-75% da despesa do Estado são representados por transferências a favor de pessoas - sob a forma de salários, subsídios, pensões de reforma. Com o que resta, o Estado tem de cumprir todas as outras funções essenciais que o caracterizam, como a Defesa, a Segurança Interna, a Justiça, os Negócios Estrangeiros. Tem de apoiar a agricultura, a indústria, as pescas, a cultura, o desporto, as regiões. Tem de construir e manter estradas, hospitais, escolas, edifícios públicos e empresas públicas de transportes, crónica e largamente deficitárias. E tem de acorrer ao serviço da dívida. Pode dar-se ao texto as voltas que se quiser: o dinheiro não chega.

-75% dos portugueses, entre funcionários públicos, magistrados, professores, médicos, militares, bolseiros, subsidiados, apoiados e reformados, estão financeiramente dependentes do Estado, na totalidade ou em parte.

-Apenas metade dos portugueses paga imposto sobre o rendimento e apenas um quarto das empresas paga imposto sobre os lucros. Os 2% de portugueses que mais pagam de IRS respondem por mais de 25% do total da colecta. No escalão mais alto, juntando todos os impostos e contribuições directas, é possível entregar ao Estado 70% do rendimento - mesmo que ele provenha exclusivamente do trabalho. Pode sempre defender-se que é possível fazer os “ricos” pagar ainda mais, mas a experiência recente ensina-nos que isso não garante, antes pelo contrário, o aumento da receita fiscal. Chama-se a isto “a curva de Laffer”, o momento a partir do qual o aumento continuado de impostos tem como consequência a descida da cobrança. Até porque, como escreveu esta semana Paulo Rangel, corre-se agora o sério risco de restaurar, por instinto de sobrevivência, uma cultura de fuga ao fisco sem remorsos, que tanto tempo e trabalho deu a erradicar entre nós.

-Em 1960, um trabalhador entrava no mercado de trabalho aos 17 anos, trabalhava em média 41 e vivia dois anos reformado. Quarenta anos depois, em 2000, começava a trabalhar aos 21, trabalhava 36 anos e vivia 15 reformado. Embora alguma coisa de importante tenha sido alterada com a reforma introduzida pelo ministro Viera da Silva no anterior governo, mantém-se de pé a insustentável equação entre o número de anos que se trabalha e se desconta para a Segurança Social e o número de anos que se vive da reforma - com a agravante de a esperança de vida cada vez maior ser sustentada em custos clínicos crescentes, a cargo do SNS.

-Em 1960, Portugal tinha 40% de pessoas com menos de 25 anos, hoje tem 20%. Tinha 8% de pessoas com mais de 65 anos, hoje tem 20%. E só neste ano, 65.000 jovens, sem trabalho nem futuro, emigraram. Quando só tivermos velhos, desempregados e emigrados, quem pagará as pensões de reforma e o SNS?

É disto que falamos quando falamos da sustentabilidade do Estado social e da própria solvência do Estado. Era disto que Passos Coelho deveria ter falado há ano e meio. Em vez disso, calou-se e tratou de destruir a economia para continuar a sustentar um Estado que não se atreveu a reformar. Agora, com o abismo à frente, ele tenta convocar o PS para fazer o que não teve e não tem coragem de fazer sozinho. Agora, depois de ano e meio a hostilizar o PS, a maltratar e a trair a UGT e a CIP, que tudo fizeram para lhe facilitar a vida, depois de ter ignorado arrogantemente todos os avisos que recebeu de todo o lado, Passos Coelho tenta encontrar aliados entre os que tratou como inimigos e descartou como inúteis.

Temo que seja já tarde. A UGT irá em breve mudar de secretário-geral e não vem aí outro João Proença. A CGTP mudou para uma linha estalinista pura e dura, à semelhança do seu novo secretário-geral. A classe média, que o Governo reduziu a classe remediada, de certeza que não confia nele nem no seu círculo íntimo de terroristas económicos para restaurar a confiança. E a rua despertou, conseguindo até juntar as tropas comunistas saudosas de novo sequestro da Assembleia da República ao peculiar sindicalismo dos estivadores do porto de Lisboa, ao estilo do sindicalismo dos anos 30 em Chicago. Resta o PS e o PS está entalado: sabe que a reforma do Estado é essencial, se realmente quiser defender o Estado social para os verdadeiramente necessitados (foi, aliás, isso que Sócrates começou a tentar fazer e por isso foi derrubado); mas também não pode agora aceitar um pacto de regime com quem passou ano e meio a desdenhar todos os outros, a recusar ouvir qualquer discordância e, sobretudo, a demonstrar uma absoluta incompetência e impreparação para governar.

E, todavia, talvez não haja outro caminho, como corajosamente escreveu Francisco Assis (que desgraça para Portugal que a lógica da mediocridade partidária lhe não tenha permitido estar agora à frente do PS!). Ainda há quinze dias, toda a gente se declarava em estado de choque com o “massacre fiscal” anunciado por Vítor Gaspar. Disse-se, escreveu-se, gritou-se, e com toda a razão, que a economia não sobreviveria a tamanho assalto. Pois é disso que se trata: escolher entre a sobrevivência da economia ou a do Estado que deixámos inchar irresponsavelmente. Podia chamar-se a isto um dilema, mas, na verdade é um falso dilema. Por razões ideológicas ou de oportunismo político, muitos não querem saber de contas nem de factos e vão desejar que nada mude. Quem não paga, vai querer que os outros continuem a pagar - mas também que haja empresas e trabalho e poupanças e investimentos. Mas não vai haver nada disso, porque deixar tudo na mesma é o caminho certo da ruína a curto prazo - que é justamente (não se deixem enganar) a aposta política de quem nunca se conformou verdadeiramente com a democracia e a economia de mercado. E, por isso, não estamos perante um dilema. Estamos perante uma inevitabilidade que, por mais que nos custe, não pode deixar de ser enfrentada. E agora, à 25ª hora, é o último momento de o fazer.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

in "Expresso" de 10.11.2012

domingo, 3 de abril de 2011

Assim não iremos lá! (Mesmo que por automatismo eleitoral o pareça)

Miguel Sousa Tavares no Expresso de Sábado, faz uma síntese terrível mas muito atenta do discurso titubeante do Dr. Passos Coelho ao longo dos últimos dias, a qual, pela sua importância esclarecedora importa transcrever, mesmo que de forma ainda mais reduzida:


24/3- Passos Coelho reconhece perante Bruxelas, que não tem nenhuma alternativa para apresentar ao PEC que ela apoiou e que ele chumbou: O mercado subiu os juros para 8,0%!


25/3- Passos Coelho anunciou uma alternativa ao PEC socialista: o aumento do IVA, para além de, com o voto dos mesmos que o ajudaram a chumbar o PEC, ter liquidado seis anos de tentativas de impor a avaliação aos professores. O mercado subiu os juros para 8,2%!


26/3- Passos Coelho, em vez do aumento do IVA, propõe o corte de salários e do 13º mês. O mercado, porque era sábado, não se pronunciou!


27/3- Passos Coelho afirma-se disponível para governar com o FMI. O mercado, porque era domingo, manteve-se omisso!


28/3- Passos Coelho sugere que se privatizasse a Caixa Geral de Depósitos. Os mercados reabriram e os juros subiram para 8,5%!


29/3- Passos Coelho explicou ao mundo através do “Wall Street Journal” que tinha chumbado o PEC 4, porque as medidas afinal eram insuficientes. Aos portugueses anunciou que o PSD ia finalmente pensar num programa de governo e um plano de “estabilização financeiro a médio prazo”. Os mercados subiram os juros para 8,8%!


30/3- O PSD apresenta um conjunto de banalidade e explica que mais não pode dizer para “não abrir o jogo” antes de tempo. Compreensivos, os mercados subiram as taxas para 9,1%.


Dizemos nós que temos boas razões para concluir que estamos entregues à bicharada.


O manequim da rua dos fanqueiros, na sua performance Sec. XXI, poderá ser um bom rapaz, honesto até, o que será sempre até prova em contrário, não só por mérito próprio mas também porque gozará de, nestas matérias, de presunção de inocência, o que sucede em resultado de séculos de civilização.


Sobre o que temos fundadas dúvidas (assentes numa ausência total de indicadores que este agente politico tenha alguma vez dado em tantos anos de actividade) é de que esteja à altura das incumbências que os baronetes do PSD lhe atribuíram, com autonomia e poder efectivos.


Certeza temos, pelo que já vem dito e por total convicção pessoal, é a de que jamais possa estar tal personagem à altura das necessidades do pais!


O problema é que o conhecido, testado e habitual bom senso eleitoral dos portugueses, está reduzido a pronunciar-se sobre a oferta partidária e os partidos, tal como os conhecemos, infelizmente, não esgotando as soluções possíveis, maniatam aquelas que catalogam de tal forma, que até parece a todos não existirem mais.


Pelo contributo objectivo que a sociedade civil, por omissão, confere ao monopólio dos partidos existentes e às politicas que defendem e empreendem, bem como à sua sustentabilidade, tem muito a repensar-se e com carácter de urgência!

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Paraísos prostituídos, por Miguel Sousa Tavares


Em muitos e muitos casos a razão pela qual o litoral alentejano e o barlavento algarvio foram saqueados, sem pudor nem vergonha, tem apenas um nome: corrupção.

Segunda feira, 28 de Julho de 2008 (http://aeiou.expresso.pt/paraisos-prostituidos=f376882#commentbox)

A primeira vez que passei uns dias de Verão em Porto Covo, ainda o Rui Veloso não tinha imortalizado a aldeia e a sua ilha do Pessegueiro. Pouco mais havia do que aquela simpática praceta central, de onde irradiavam três ou quatro ruas para baixo, em direcção ao mar, e duas ou três para os lados. Tinha nascido uma pequena urbanização de casas de piso térreo, uma das quais me foi emprestada por um amigo para lá passar uns quinze dias. Havia a praia em frente, magnífica, e a angustiante dúvida de escolher, entre três restaurantes, em qual deles se iria comer peixe, ao jantar.

Nos dois anos seguintes, arrastado pela paixão pela caça submarina, aluguei uma parte de casa em Vila Nova de Milfontes, com casa de banho autónoma e duche no pátio interior, ao ar livre. Instalei-me com o meu material de mergulho e um pequeno barco de borracha, no qual ia naufragando quando o motor pifou e comecei a ser arrastado pela corrente do rio Mira em direcção aos vagalhões à saída da baía. Mas não era o sítio adequado para caça submarina e rapidamente troquei a incerteza da minha destreza pelo esplendor de uma tasquinha branca, de quatro mesas apenas, onde escolhia de manhã o peixe que iria comer à noite. Foram dias de deslumbramento, naquela que eu achava ser provavelmente a mais bonita terra do litoral português.

Mas foi Lagos, claro, a primordial e mais duradoura das minhas paixões. Tudo o que eu possa escrever sobre a fantástica beleza da cidade caiada de branco, com ruas habitadas por burros e polvos secando ao sol pregados aos muros, uma gente feita de dignidade e delicadeza, praias como nenhumas outras em lado algum do mundo, a terra vermelha, pintada de figueiras e alfarrobeiras, prolongando-se até às falésias que ficavam douradas ao pôr-do-sol, enquanto as traineiras passavam ao largo em direcção aos seus campos de pesca nocturnos, tudo isso parece hoje demasiadamente belo para que alguém possa simplesmente acreditar. Se eu contasse, diriam que menti - e eu próprio, olhando hoje Lagos, também acho que seguramente foi mentira.

A partir de Lagos, fui descobrindo todo o barlavento algarvio, cuja luz é tão suave que parece suspensa, como se não fizesse parte do próprio ar. Descobri a solidão agreste de Sagres, onde se ia aos percebes ou apenas olhar o mar do Cabo de S. Vicente, na fortaleza, que era rude como o vento e o mar de Sagres, e hoje é uma casamata de betão que, ao que parece, se destina a homenagear a moderna arquitectura portuguesa. Descobri o charme antiquado da Praia da Rocha, onde se ia à noite ver as meninas de Portimão, ou o "souk" em cascata de Albufeira, onde se ia ver as inglesas e dançar no Sete e Meio. E descobri outras terras de pescadores e veraneantes, como Armação de Pêra ou Carvoeiro, praias de areia grossa e mar transparente como eu gosto, cigarras gritando de calor nas arribas, polvos tentando amedrontar-me quando os olhava debaixo de água.

Não vale a pena contar. Quem teve a sorte de viver, sabe do que falo; quem não viveu, não consegue sequer imaginar. Porque esse Sul que chegava a parecer irreal de tão belo, esse litoral alentejano e algarvio, não é hoje mais do que uma paisagem vergonhosamente prostituída. Sim, sim, eu sei: o desenvolvimento, o turismo, a balança comercial, os legítimos anseios das populações locais, essa extraordinária conquista de Abril que é o poder local. Eu sei, escusam de me dizer outra vez, porque eu já conheço de cor todas as razões e justificações. Não impede: prostituíram tudo, sacrificaram tudo ao dinheiro, à ganância e à construção civil. E não era preciso tanto nem tão horrível.

Podiam, de facto, ter escolhido ter menos turistas em vez de quererem albergar todos os selvagens da Europa, que nem sequer justificam em receitas os danos que em seu nome foram causados. Podiam ter construído com regras e planeamento e um mínimo de bom gosto. Podiam ter percebido que a qualidade de vida e a beleza daquelas terras garantiam trezentos anos de prosperidade, em vez de trinta de lucros a qualquer preço.

E todos os anos, por esta altura, percorrendo estas terras que guardo na memória como a mais incurável das feridas, faço-me a mesma pergunta: Porquê? Porquê tanta devastação, tanto horror, tanta construção, tanta estupidez? Tanto prédio estilo-Brandoa, tanto guindaste, tanto barulho de obras eternas, tanta rotunda, tanta 'escultura' do primo do cunhado do presidente da câmara, e sempre as mesmas estradas, os mesmos (isto é, nenhuns) lugares de estacionamento, os mesmos (isto é, nenhuns) espaços verdes? Não, nem mesmo o mais incompetente dos autarcas pode olhar para aquilo e não entender a monumental obra de exaltação da estupidez humana que está à vista.

Não, não é apenas incompetência, nem mau gosto levado ao extremo, nem simples estupidez. Em muitos e muitos casos a razão pela qual o litoral alentejano e o barlavento algarvio foram saqueados, sem pudor nem vergonha, tem apenas um nome: corrupção. Acuso essa exaltante conquista de Abril, que é o poder local, de ter destruído, por ganância dos seus eleitos, todo ou quase todo o litoral português. Acuso agora José Sócrates de não ter tido a coragem política de cumprir uma das promessas do seu programa eleitoral, que era a de progressivamente financiar as autarquias a partir do Orçamento do Estado, em exclusivo, deixando de lhes permitir financiarem-se também com as receitas locais do imobiliário - deste modo impedindo que quem mais construção autoriza, mais receitas tenha. Acuso o Governo de José Sócrates de ter feito pior ainda, inventando essa coisa nefasta dos projectos PIN (de interesse nacional!), ao abrigo dos quais é o Governo Central que vem autorizando megaconstruções que as próprias autarquias acham de mais.

Acuso esta gente que só sabe governar para eleições, que não tem sequer amor algum à terra que os viu nascer, que enche a boca de palavrões tais como "preservação do ambiente" e "crescimento sustentado" e que não é mais do que baba nas suas bocas, de serem os piores inimigos que o país tem. Gente que não ama Portugal, que não respeita o que herdou, que não tem vergonha do que vai deixar.

Eu sei que não serve de nada. Ando a escrever isto há trinta anos, em batalhas sucessivamente perdidas - ontem por uma praia, hoje por um rio, amanhã por uma lagoa. E lembro-me sempre da frase recente de um autarca algarvio contemplando a beleza ainda preservada da Ria de Alvor e sonhando com a sua urbanização: "A natureza também tem de nos dar alguma coisa em troca!". Está tudo dito e não adiante dizer mais nada.

Acordo às oito da manhã destas férias algarvias, longamente suspiradas, com o ruído de chapas onduladas desabando, martelos industriais batendo no betão e um pequeno exército de romenos e ucranianos construindo mais um projecto PIN numa paisagem outrora oficialmente protegida. "É o progresso!", suspiro para mim mesmo, tentando em vão voltar a adormecer. Sim, o progresso cresce por todos os lados, sem tempo a perder, sem lugar para hesitações, como um susto. Tenho saudades, sim, dos sustos que os polvos me pregavam no silêncio do fundo do mar. E tenho saudades de muitas outras coisas, como o polvo do mar. Sim, eu sei: estou a ficar velho.

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