O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.
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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A opinião sensata de Baptista Bastos

Socialismo: procura-se e deseja-se?

Baptista Bastos, DN, 20/2/13


Ao contrário do que dizem línguas bífidas, o conclave de Coimbra, que reuniu distintos socialistas e alguns menos distintos, forneceu certos motivos de reflexão.

Exactamente pela circunstância de nada de relevante haver servido de pábulo a uma Imprensa tão deserta de ideias quanto a melancólica vida geral portuguesa.

Os jornais desejavam zaragata: o previsível "duelo" entre Seguro e Costa foi água chilra. António Costa saiu apoiando um triste documento de intenções, cujas essas, as intenções, eram alegremente nulas. Apelidado, apressadamente, de Documento de Coimbra, o virtuoso testemunho (diz-se por aí) devorou horas a graves pensadores do PS e nada exprime que suscite um debate, um sobressalto, uma inquietação, uma expectativa. Seguro pode descansar. Costa, muito astuto e politicamente mais preparado, fez umas negaças, recreou correligionários cabisbaixos com o rumo do PS, recuou e aguarda o momento propício para atacar de frente. E este não é o momento. Ninguém sabe quando o será, acaso nem o próprio Costa. Afinal está a proceder como Seguro o fez com Sócrates. Histórias de chacais emboscados. Saiu de Coimbra caído nos braços do secretário-geral, e muito feliz com aquela miséria toda. Quem estará realmente interessado em dirigir uma nave de loucos? Todos aguardam, nenhum sabe bem o quê.

Passos Coelho prossegue na tarefa de demolição a que se propôs. Ignora que não se altera um Estado e as suas estruturas sociais, culturais e morais com contas de subtrair. Galbraith, hoje esquecido, provou-o com os exemplos do nazismo e do fascismo. É impressionante a desfaçatez com que este homem nos mente, falando como quem se dirige a mentecaptos. 17 por cento de desempregados não o comovem nem demovem. Ameaça que a praga não vai parar. Estamos a morrer como pátria, como nação e como povo mas coisa alguma emociona estes macacos sem fé e sem sonhos. Ri, alarvemente, com o Vítor Gaspar ("um génio" na expressão dessoutro "génio", António Borges), e chega a ser comovente o preguiçoso desdém com que Paulo Portas é tratado pela parelha.

Chegados a este ponto, é lícito perguntar: até onde a democracia pode admitir e sustentar estas indignidades? E onde pára o dr. Cavaco?, auto-omitido por natureza, mas obrigado, pelas funções constitucionais, a fazer algo que impeça a ruptura total. E os socialistas, que "socialismo" ambicionam, se é que ambicionam algum "socialismo"? E, depois de Mário Soares o ter colocado na gaveta, não sufocou definitivamente?

A tempo: confesso-me extremamente sensibilizado com as manifestações de simpatia e, até, de estima, por mim recebidas, durante uns percalços de saúde que me obrigaram a hospitalização. Uma vez ainda, a minha gratidão a todos, e à mística de humanismo de todos aqueles que trabalham e defendem o Serviço Nacional de Saúde. Bem hajam!

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Que fazer?

Apesar de tudo cá estamos(4.1.13 Negocios online)


Não parece ser de bons auspícios o ano que ora começou. E lembrei-me de Jorge de Sena, o grande poeta, para fazer uma paráfrase de um dos seus poemas: "Que Portugal querem os portugueses para Portugal?" A verificar pelas manifestações da CGTP, e pela imponência do protesto registado em 15 de Setembro, que levou às ruas do País um milhão de pessoas, os portugueses são, demonstradamente, desafectos, deste Governo e desta política.

Mas esta política resulta da ideologia dominante na Europa, das indicações do Partido Popular Europeu (com inclinações evidentes para a extrema-direita), da incapacidade de a esquerda dispor de uma doutrina e de uma coesão necessárias à formação de uma frente comum e da ausência total de convicções.

Desapareceu a Europa de Adenauer, de De Gasperi, de Helmut Schmidt, de Willy Brandt, de Helmut Kohl, de De Gaulle, de Mitterrand, de Olof Palme, de Berlinguer, de Santiago Carrillo, de Cunhal, de Mário Soares, que configuraram e, amiúde, representaram o assim chamado "espírito europeu", no seu melhor como no seu pior. Foram substituídos por uma desavergonhada trupe de medíocres, cuja praga se estendeu aos mais diversos sectores da actividade humana.

E a ideia de uma Europa da solidariedade e da unidade na diversidade da sua extraordinária cultura, dissolveu-se com a emergência de um capitalismo finalmente à vontade para pôr as garras de fora. Este processo é longo e larvar, que atinge a sua expressão mais hedionda com a implosão dos países de Leste.

Mas houve "experiências" anteriores, sobretudo em numerosos países da América Latina, onde as teorias económicas de Milton Friedman foram aplicadas, a ferro e fogo. Basta lembrarmo-nos do Chile, mas também da Argentina, do Brasil, do Uruguai, nos quais os golpes de Estado, apoiados pelos Estados Unidos, e estruturados por "especialistas" da CIA, constituíram uma sangueira sem nome.

Um pouco por todo o lado, as guerras e os golpes militares, as violências e as barbaridades têm fundado a história de um mundo aparentemente apaziguado e de uma Europa fautora de estabilidade e de sossego.

Tudo mentira, tudo um embuste com "branqueamentos" históricos dos mais miseráveis. Entre nós, o aparecimento, pós-25 de Abril, de uma geração de jovens turcos, na política, no jornalismo e na cultura, de um modo geral, que ambicionavam tomar as rédeas dos vários poderes, foi saudado com satisfação, mas apreensivamente. A descaracterização política que expunham, uma alegada distanciação ideológica e uma desenvoltura nascidas das aparentes facilidades criadas à sua volta produziram efeitos nefastos.

Uma concepção de amnésia histórica, antes de nós nada existia, encontrou terreno fértil no Portugal do dr. Cavaco, discípulo fiel, e ignaro, convém dizer, na Inglaterra da senhora Thatcher, e nos Estados Unidos de Ronald Reagan. 

Está por fazer, embora haja estudos e artigos dispersos, dos efeitos nefastos destas décadas, provocados por aqueles políticos.

Retenho na memória, entre outros episódios, a simpatia esfuziante com que a Thatcher foi visitar Pinochet, quando este esteve retido em Inglaterra, por intervenção do juiz Baltazar Garzón, que o acusara de crimes contra a humanidade.

De facto, as coisas possuem relações estranhas, ou não tão estranhas como isso. As famílias políticas e ideológicas estabelecem sempre laços que determinam a sua razão de ser e cimentam os seus interesses e objectivos. Pedro Passos Coelho pertence a essa parentela. E, acaso sem o saber, tem servido, no último ano e meio, de funâmbulo de uma experiência malvada, que nos arrasta para um beco sem saída. Claro que dispõe de cúmplices neste empreendimento medonho, o primeiro dos quais será, obviamente, o dr. Cavaco, não nos esquecendo dos apoios recíprocos dos banqueiros e seus bordões.

Temos de entender que, sem uma reviravolta na política europeia não haverá alterações na política portuguesa. E não deixa de causar um triste sorriso o foguetório com que certo sector português aplaudiu a vitória de François Hollande. Dali e dos seus nada há a esperar.

Encontramo-nos, pois, neste começo de ano, numa situação não apenas embaraçosa, como extremamente dramática. Que fazer? Esperar que as coisas se modifiquem por si, ou que ajamos em consonância com o violento cerco que nos fazem? E de que forma e modo vamos resistir? A verdade é que a História, sendo uma deusa cega, é-o para todos os lados, e que nada é imutável. E, apesar de tudo, cá estamos.
Bom ano, meus amigos!


b.bastos@netcabo.pt

domingo, 6 de janeiro de 2013

Noticia das servidões, por Baptista Bastos


O sr. Selassié, cujos patronímicos lembram os do antigo imperador da Etiópia, deu uma entrevista a jornalistas solícitos e zelosos, como se fosse o procônsul destoutro império. Se calhar é, e nós não queremos acreditar. Há, neste triste assunto, a absurda qualificação atribuída a um funcionário europeu, e a subserviência exasperante de quem devia respeitar, seriamente, as funções de jornalista, escalonando as prioridades de noticiário. Mas as coisas, neste país, estão como estão. A expressão da mediocridade coincide dramaticamente com as características de quem a promove. E o servilismo tomou carta de alforria. É um espectáculo deplorável assistir-se ao cortejo de subserviências quando os escriturários da troika vão ao Parlamento ou aos ministérios.

Somos tratados com displicente condescendência. Afinal, numa interpretação lisa e, acaso, aceitável, somos os pedintes e eles os curadores dessa nossa triste condição. A ela temos de nos sujeitar. Selassié produz afirmações tão extraordinárias quanto ignaras acerca do que somos, de quem somos e de como havemos de ser. O pessoal do Governo demonstra uma felicidade esfuziante com o convívio, e até Paulo Portas o admite, embora pouco à vontade. Aliás, não se percebe muito bem até onde o presidente do CDS vai suportar, com frustrados sorrisos, os permanentes vexames a que o submetem.

As declarações do sr. Selassié, que, na normalidade de situações políticas, nem sequer devia ser ouvido, só não são injuriosas porque imbecis. Já a senhora Merkel, num despudor acarinhado pelo reverente Passos Coelho, afirmara o íntimo e estremecido desejo de ver os portugueses muito felizes. Os comentadores do óbvio, emocionados, calaram fundo este auspício.

O povo, a nação, o próprio conceito de pátria estão subalternizados pelo comportamento desprezível de uma casta de emblema republicano na lapela, que passa ao lado das indignações, dos protestos, da miséria e da fome dos outros. A frase famosa de Passos Coelho, "custe o que custar", para justificar os desmandos da sua política, configura uma ideia de confronto, absolutamente detestável. A violência do discurso do poder e a prática governamental reenviam, na ordem da democracia política, para algo que excede o funcionamento processual. Parece que Pedro Passos Coelho incita à cólera e estimula o conflito, acaso para "fundamentar" e "legitimar" ulteriores acções repressivas. A indiferença da sua conduta não se harmoniza nem combina com o ideário democrático, sobre o qual tripudia com desprezo e arrogância. Este homem não nos serve, não serve o País, nada tem a ver com algo que nos diga respeito, é incompetente e sobranceiro.

Quando estrangeiros como Angela Merkel e Abebe Selassié dizem o que dizem, com a aquiescência de um Governo mudo, há qualquer coisa de podre na sociedade.
(Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico)
In: “Diário de Noticias” de 28.11.2012


sábado, 5 de janeiro de 2013

Resistir, nunca desistir, por Baptista Bastos


Entrámos no ano de todos os perigos e de todos os medos. Ninguém ameniza as perspectivas, e o primeiro-ministro acentuou a nossa angústia afirmando que nunca as coisas, depois do 25 de Abril de 74, tinham estado tão escuras. Os seus apaniguados, contentíssimos, aplaudiram as declarações, considerando-as sinal de honrada "transparência". Esqueceram-se, evidentemente, de que, à esquerda e à direita, gente altamente qualificada e sensata já advertira da tragédia próxima. E Passos Coelho continua a não reconhecer, claramente, o que a aplicação da ideologia neoliberal nos tem feito. Nem o que essa ideologia significa de risco para a própria democracia, cada vez mais acanhada até ao ponto de constituir uma humilhação e um desespero intoleráveis para quem nela acredita.

O ano traz, portanto, malvados prenúncios. E, embora sabedor da nociva sorte que nos aguarda, Passos Coelho não move uma palha para inverter a funesta tendência. Não move ou não sabe mover. A representação do poder demonstra enorme desprezo pelos protestos de rua, pelos movimentos de massas (o 15 de Setembro testemunhou a recusa da apatia e da resignação, pelas razões que em si mesmo comportava), pelos depoimentos e pelas declarações veementes de economistas, sociólogos, políticos, alarmados com o caminho para o desastre a que o País é impelido. Interpelado sobre se a população aguenta o caudal de restrições, impostos e constrangimentos, o banqueiro sr. Ulrich admitiu: "Aguenta! Aguenta!", num escabroso convencimento, a roçar o insulto e o impudor. É em criaturas deste jaez e estilo que o primeiro-ministro se apoia, pois elas mesmas caracterizam um dos pilares em que assenta a ideologia que defende.

A ideologia. Eis a questão capital. E o novo paradigma político e social, que nos tem sido imposto, inscreve--se nessa nova experiência do capitalismo, como emergência de sair da crise por si criada.

A regressão a que Pedro Passos Coelho nos obrigou contém uma incerteza dramática, que o atinge, atingindo-nos cruelmente. Ele abriu a caixa de Pandora e, agora, não sabe como fechá-la. É um tonto perigosíssimo. Arruinou a pátria, não somente a pátria política, social e económica mas, sobretudo, a pátria moral. Nem daqui a duas ou três décadas o desastre será remediado, diz quem sabe. O nefasto "rotativismo" ocultará ou dissimulará os erros e os crimes cometidos. Ninguém vai parar à cadeia, porque eles protegem-se uns aos outros, com o impudor de quem se reconhece acima de deus e do diabo.

É pungente assistir-se às torções do PS, como aos embustes, ao vazio de sentido dos discursos do PSD. Não desejo referir-me, neste texto, ao dr. Cavaco, por nojo e estrito resguardo mental. Desejo, isso sim, demonstrar o orgulho e a vaidade que sinto por pertencer a um povo como este, sofrido, cercado, mas decente e indomável.

Baptista Bastos, in “DN”, 2.1.2013

quarta-feira, 16 de março de 2011

Natália Correia por Baptista Bastos

Dizia que a minha mulher possuía um discernimento e uma sabedorias raros numa mulher da idade dela. Eram amigas e falavam das coisas da vida e do mundo. E, na madrugada da sua morte, estivera com ela e com o marido, Dórdio Guimarães, a uma mesa do Botequim, conversando avulsamente. Eu morava abaixo da colina da Graça, em Alfama, muito próximo do Botequim, que frequentava amiúde. Desci para casa eram quase três horas. Às 9 telefonaram-me de uma rádio: "Morreu Natália Correia."

Fez, agora [16 de Março] 18 anos, e parece que foi ontem, hoje, ainda há pouco. Esquecera-me da data. No "Público", a jornalista São José Almeida, com a grandeza habitual da sua prosa, lembrou-me da amiga e da enorme poetisa que a Natália foi. E daqui lho agradeço e bendigo.

Tem sido um pouco esquecida. A decência e a coragem política e ética pagam-se caro. Mas a obra e a vida dela justificam-na e dignificam-na e a nós. O prefácio que escreveu, propositadamente, para uma selecção da poesia barroca, é um ensaio definitivo. E muitos dos seus poemas fazem parte da selecta mais rigorosa da lírica portuguesa. A Natália Correia era belíssima, truculenta, libertária, capaz de enfrentar fosse o que fosse e quem fosse.

Dizia, na cara das pessoas o que delas pensava, sobretudo se o acto envolvesse canalhice, falta de carácter e vileza. Na sua casa da Rodrigo da Fonseca passaram, estiveram, discutiram, conspiraram o melhor da cultura portuguesa - e não só: estrangeiros célebres lá se amesendaram, como Henri Miller, por exemplo, discreteando acerca das coisas que ocorriam. Não é só a imensa poetisa que devemos honrar. É a corajosa editora de "Novas Cartas Portuguesas", de Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta; a notável animadora de "Poesias Eróticas Portuguesas", que a levou a tribunal; ou a autora de "Poema do País Emerso". Quando todas estas actividades faziam correr riscos enormes a quem as praticasse.

Sarcasta imparável, detentora de um talento múltiplo e absolutamente imprevisível, ela, um dia, enquanto deputada na Assembleia da República, ouviu o dr. José Morgado, representante do CDS, dizer [3 de Abril de 1982] o seguinte: "O acto sexual é para ter filhos." Natália ergueu-se da sua bancada e rematou:

Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino:
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai de um só rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração ! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada a excepção,
ficou capado o Morgado.

Nunca se eximiu de escarmentar políticos, escritores, artistas, jornalistas que tombassem sob a alçada das suas zombarias. A sua vitalidade parecia inesgotável e o seu génio imparável. O seu último marido, Dórdio Guimarães, vivia na sua adoração e na desvelada paixão que era a razão da sua vida. Pouco depois de Natália morrer, Dórdio seguiu-a. Havia-lhe dedicado poemas comovidos. Pode dizer-se que o Dórdio morreu de amor, ou da falta do amor de Natália.

Ela faz falta à vida portuguesa. E a pretensa rivalidade que alguns alimentavam, entre Natália e Sophia, não tinha razão de ser, senão o azedume e a intriga que, ainda hoje, vicejam nos meios literários. São duas grandes, extraordinárias mulheres, e duas poetisas excepcionais. Queira-se ou não, elas fazem parte do nosso património moral, estético e ético. Pertencem-nos na sua luminosa diversidade.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A República ameaçada

Por Baptista-Bastos

"SEM DISCURSOS NEM TROMBETAS, os inimigos da República tomaram o poder na sociedade. Na primeira linha, o dinheiro e a imagem. A sua aliança sucedeu ao trono e ao altar." Eis as primeiras frases de um texto notável, de que só agora tive conhecimento, e no qual o autor, o dr. Miguel Veiga, advogado e intelectual que vive no Porto, procede a uma análise do estado actual das coisas. Quando a cultura deixa de ser o paradigma da relação com o outro, a colectividade perde o lugar confluente onde se cruzam os preceitos éticos e estéticos que a justificam.

Diz Miguel Veiga: "Agravando a opulência pela notoriedade, multiplicando a desigualdade dos rendimentos pela da consideração pública, ela ataca os fundamentos do orgulho da República: o desinteresse e o anonimato que subordinam os interesses e as vaidades ao interesse geral. A República não é um regime político entre outros. É um ideal e um combate." O texto foi lido em Arcos de Valdevez, há menos de dois meses, numa homenagem a Mário Soares, e a sua importância reflexiva não mereceu, da imprensa a atenção necessária. A imprensa, cada vez mais abandonada à futilidade e ao pequeno escândalo, aumenta a hipótese repressiva da conduta política.

Essa conduta política repressiva expressa-se nas formas mais diversas. A última das quais, porventura, a da tentativa de alteração dos códigos constitucionais. Lembremos que o autor principal dessa revisão, proposta pelo dr. Passos Coelho, é um importante dirigente da Causa Real, Paulo Teixeira Pinto, ex-banqueiro, convertido aos fascínios da pintura e da edição. A tomada do poder, na sociedade, pelos inimigos da República, de que fala Miguel Veiga, não é uma metáfora. A lassitude com que assistimos à destruição dos princípios e dos padrões fundamentais da ideia republicana é sinal da nossa indolência moral. Antero chamou-lhe a "decadência da alma". É-nos imposto um novo modelo de desenvolvimento que desrespeita os tempos do homem e cria uma violência social destruidora da espontaneidade, da imaginação e da própria vida associativa. Nada fazemos para nos opor. E aceitamos a identidade dominante, rudemente aplicada, sem nos insurgirmos contra esse notório abuso de poder. Não é ingénua a leviandade com que muitos jornalistas portugueses aceitam este totalitarismo mascarado de democracia de superfície. A leviandade nunca é ingénua. E o silêncio da memória não protege o homem dos perigos que sobre ele impendem.

As ameaças à República são reais e corroem a identidade da democracia. É cada vez mais difícil reapropriarmo-nos das heranças legadas há um século. E cada vez mais fácil fomentar o mal-entendido que tem levado ao desleixo de cuidarmos dessas heranças.
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«DN» de 22 Set 10

quinta-feira, 6 de maio de 2010

A necessidade da verdade em política

Por Baptista-Bastos

GRAVES SÁBIOS,severos economistas, rudes prospectivistas do mundo e das coisas advertem-nos que Portugal está à beira do abismo, e que seguirá a Grécia na bancarrota. Tanto o Governo como o dr. Cavaco afirmam que não; o País não está assim tão mau quanto isso. Talvez entenda uns e outros. No entanto, estas opiniões tão díspares, estas afirmações tão opostas quanto o sol e a noite o são, vão-nos deixando cada vez mais inquietos e alarmados.

O português, já de si cabisbaixo e macambúzio, tenta equilibrar-se com o uso, acaso imoderado, de ansiolíticos. São os jornais que o dizem. E as farmácias que o atestam. Cada um de nós vai pagar um montão de euros a fim de não deixar que o velho barco naufrague, avisa a Imprensa. Além daquelas florestias, não sabemos, rigorosamente, o que se passa.

O prof. Medina Carreira, cujas intervenções nas televisões me parecem exemplares lições de cidadania, pese embora o cariz pessimista do seu registo, não pára de nos dizer que os nossos governantes não só ocultam a verdade do cenário, como nos mentem com descaro e pouca vergonha. Até agora, só os estrangeiros vão dizendo coisas que nos aterrorizam. Nem José Sócrates nem Teixeira dos Santos nos falam claro: ao que parece, atenuam, com panos tépidos, a extensão gravosa dos nossos problemas.

Não é assim que se mobiliza a sociedade portuguesa. Confrontado com uma situação que se adivinha complexa e problemática, o português comum vive na incerteza de um conflito social de consequências imprevisíveis. E se, de repente, nos estoirar na cara a bancarrota. Já estivemos numa situação muito próxima, e até há uma história (por mim comprovada com o próprio) que pode ilustrar a época e os protagonistas. Certa madrugada, retiniu o telefone na casa de Mário Soares. O então primeiro-ministro acordou sobressaltado. Era o economista Silva Lopes, governador do Banco de Portugal, a informá-lo de que o País ia entrar em falência, logo pela manhã. Disse-lhe Mário Soares: "Agora vou continuar a dormir e, de manhã, quando acordar mais fresco, logo se verá." As coisas resolveram-se da maneira que se sabe.

Claro que os tempos eram outros e as personagens em questão possuíam uma fibra que, infelizmente, creio ter-se perdido. A verdade é que os portugueses tiveram conhecimento da situação em que Portugal se encontrava, e não se prostraram no desespero. Estávamos informados, e não a vozes dissonantes. A actual comparação com a Grécia é tão absurda quanto o paralelismo estabelecido pelo dr. Cavaco com a Islândia e a Irlanda. Em vez de nos esclarecer acerca de uma conduta alternativa, de nos dizer sobre como havemos de proceder, esta gente continua a sacralizar a política, ilustrando o repugnante axioma segundo o qual "em política e às mulheres nunca se diz a verdade."

Vivemos entre as fórmulas paradoxais que justificam a existência das ideologias, mas que não ajudam, em certos momentos históricos, as urgências imperiosas das nações. Há dias, Pedro Passos Coelho foi recebido por José Sócrates. Não se conhece o conteúdo da agenda das conversações. Sabe-se, porém, que este novo PSD (se assim o posso designar) expôs um projecto económico para melhorar o PEC, o que é um comportamento saudável, a merecer os nossos elogios, desde o momento que constitua, mesmo, uma alteração qualitativa. Miguel Relvas falou em uma volumosa quantia de poupança. Esperemos que o Governo discuta com os dirigentes sociais-democratas, e não se quede nesse autismo característico de quem só se ouve a si mesmo.

Todos nos dizem que a situação é delicada, mas ninguém, até agora, apresentou alternativas de solução que não sejam as habituais: aumentos de impostos, despedimentos na Função Pública, ataque aos serviços sociais, desde a educação à saúde, por aí fora. Os Governos do PS e do PSD são responsáveis, todos eles, pelo estado em que nos encontramos. Talvez mais, o PS, porque detentor do poder há imenso tempo. Mas não creio que a condição fosse melhor, caso o PSD tivesse sido Governo em tempo semelhante.

Pedro Passos Coelho não oculta a vocação neoliberal, cujo simples enunciado faz apavorar qualquer pessoa. Não creio, no entanto, que a época portuguesa seja propícia à sua prática. Como me parece despropositada aquela tineta de alterar a Constituição, ou a outra, mais bizarra embora antiga, de privatizar a RTP e a TAP. Mas a verdade é que a subida de Passos Coelho à presidência do PSD descrispou a política, assinalou a derrota estrondosa das estratégias de Pacheco Pereira, guru da dr.ª Manuela Ferreira Leite, e abalou, seriamente, o que resta do cavaquismo. Nada mau.

"Jornal de Negócios" de 23 Abril de 2010

quarta-feira, 8 de abril de 2009

O Ranço Salazarista, por Baptista Bastos

Cada vez mais nos afastamos uns dos outros. Trespassamo-nos sem nos ver.
Caminhamos nas ruas com a apática indiferença de sequer sabermos quem somos.
Nem interessados estamos em o saber.
Os dias deixaram de ser a aventura do imprevisto e a magia do improviso para se transformarem na amarga rotina do viver português e do existir em Portugal.

Deixámos cair a cultura da revolta. Não falamos de nós. Enredamo-nos na futilidade das coisas inúteis, como se fossem o atordoamento ou o sedativo das nossas dores. E as nossas dores não são, apenas, d'alma: são, também, dores físicas.

Lemos os jornais e não acreditamos. Lemos, é como quem diz - os que lêem.
As televisões são a vergonha do pensamento. Os comentadores tocam pela mesma pauta e sopram a mesma música. Há longos anos que a análise dos nossos problemas está entregue a pessoas que não suscitam inquietação em quem os ouve. Uma anestesia geral parece ter sido adicionada ao corpo da nação.

Um amigo meu, professor em Lille, envia-me um email. Há muitos anos, deixou Portugal. Esteve, agora, por aqui. Lança-me um apelo veemente e dorido: 'Que se passa com a nossa terra? Parece um país morto. A garra portuguesa foi aparada ou cortada por uma clique, espalhada por todos os sectores da vida nacional e que de tudo tomou conta. Indignem-se em massa, como dizia o Soares.

Nunca é de mais repetir o drama que se abateu sobre a maioria. Enquanto dois milhões de miúdos vivem na miséria, os bancos obtiveram lucros de 7,9 milhões por dia.
Há qualquer coisa de podre e de inquietantemente injusto nestes números. Dir-se-á que não há relação de causa e efeito. Há, claro que há. Qualquer economista sério encontrará associações entre os abismos da pobreza e da fome e os cumes ostensivos das riquezas adquiridas muitas vezes não se sabe como.

Prepara-se (preparam os 'socialistas modernos' de Sócrates) a privatização de quase tudo, especialmente da saúde, o mais rendível.

E o primeiro-ministro, naquela despudorada 'entrevista' à SIC, declama que está a defender o SNS! O desemprego atinge picos elevadíssimos. Sócrates diz exactamente o contrário. A mentira constitui, hoje, um desporto particularmente requintado. É impossível ver qualquer membro deste Governo sem ser assaltado por uma repugnância visceral. O carácter desta gente é inexistente. Nenhum deles vai aos jornais, às Televisões e às Rádios falar verdade, contar a evidência. E a evidência é a fome, a miséria, a tristeza do nosso amargo viver; os nossos velhos a morrer nos jardins, com reformas de não chegam para comer quanto mais para adquirir remédios; os nossos jovens a tentar a sorte no estrangeiro, ou a desafiar a morte nas drogas; a iliteracia, a ignorância, o túnel negro sem fim.

Diz-se que, nas próximas eleições, este agrupamento voltará a ganhar. Diz-se que a alternativa é pior. Diz-se que estamos desgraçados. Diz um general que recebe pressões constantes para encabeçar um movimento de indignação. Diz-se que, um dia destes, rebenta uma explosão social com imprevisíveis consequências. Diz a SEDES, com alguns anos de atraso, como, aliás, é seu timbre, que a crise é muito má. Diz-se, diz-se.

Bem gostaríamos de saber o que dizem Mário Soares, António Arnaut, Manuel Alegre, Ana Gomes, Ferro Rodrigues (não sei quem mais, porque socialistas, socialistas, poucos há) acerca deste descalabro.

Não é só dizer: é fazer, é agir. O facto, meramente circunstancial, de este PS ter conquistado a maioria absoluta não legitima as atrocidades governamentais, que sobem em
escalada. O paliativo da substituição do sinistro Correia de Campos pela dr.ª Ana Jorge não passa de isso mesmo: paliativo. Apenas para toldar os olhos de quem ainda deseja ver, porque há outros que não vêem porque não querem.

A aceitação acrítica das decisões governamentais está coligada com a cumplicidade. Quando Vieira da Silva expõe um ar compungido, perante os relatórios internacionais sobre a miséria portuguesa, alguém lhe devia dizer para ter vergonha. Não se resolve este magno problema com a distribuição de umas migalhas, que possuem sempre o aspecto da caridadezinha fascista. Um socialista a sério jamais procedia daquele modo. E há soluções adequadas. O acréscimo do desemprego está na base deste atroz retrocesso.

Vivemos num país que já nada tem a ver com o País de Abril. Aliás, penso,seriamente, que pouco tem a ver com a democracia. O quero, posso e mando de José Sócrates, o estilo hirto e autoritário, moldado em Cavaco, significa que nem tudo foi extirpado do que de pior existe nos políticos portugueses.

Há um ranço salazarista nesta gente. E, com a passagem dos dias, cada vez mais se me acentua a ideia de que a saída só reside na cultura da revolta.


Baptista Bastos

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