O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

2284 segundo Miguel Real, ou como o hoje, tal como o conheçemos, deixou de ter amanhã?

In publico 22.02.2015

Aos 61 anos, o filósofo, ensaísta e romancista Miguel Real lança mais um romance. Agora, em vez de ficcionar sobre a actualidade ou sobre a história, constrói uma utopia ficcional em que projecta o futuro: O Último Europeu, Edições D. Quixote.

Olhando para o que poderá ser o mundo em 2284, Miguel Real questiona e reflecte sobre o presente, as opções, as tendências, as divergências, as diferenças, os conflitos, as contradições. É um retrato duro das sociedades modernas e dos riscos que elas comportam, em especial a Europa, sobre cujo presente este pensador tem um olhar crítico.

Em entrevista ao PÚBLICO, Miguel Real reflecte sobre a situação de Portugal no pós-troika, mas também sobre a crise na União Europeia, a situação na Grécia e o conflito na Ucrânia. Isto sobre o agora, o tempo conjuntural. Mas faz uma análise prospectiva do tempo histórico das vidas presentes, a algumas décadas, assim como do tempo civilizacional, ou seja, o que poderá ser o mundo no início século XXII.

Ao fim de três anos de intervenção da troika o país tem mais condições de futuro?
Não, não tem. E o mais importante é que o país deixou de sonhar. O actual espírito europeu, que transformou a União Europeia numa empresa comercial estável, governada por balancetes, esse espírito contabilístico entrou totalmente na governação em Portugal, não quer dizer que não haja oposição. Nesse sentido, Portugal desenvolveu um imenso sentimento de medo em relação ao futuro, é o que diz o Boaventura de Sousa Santos, o José Gil. Uma insegurança terrível quanto ao futuro. E deixou de sonhar, de criar utopias, o que é absolutamente necessário para nos orientar a longo prazo na política.

Está a referir-se à classe política, criticou-a de forma violenta no passado, como a vê hoje?
A classe política é relativamente medíocre, em geral. Mas os seus principais representantes no Governo não fizeram nada para o merecer, a não ser ganhar eleições porque estavam lá. Não há uma ideia. Cavaco Silva no século XX, nos anos 80, defendeu um pouco o capitalismo popular.
Definiu-o já como o pior Presidente da República.
O pior da democracia. O Américo Thomaz é incomparável, esse era um ditador. Mas sob o comando de Cavaco Silva, que está há trinta anos no poder quase ininterrupto, o país tomou várias decisões que hoje se revelaram nefastas. O país desenvolveu mais o desejo de consumo do que a produção. As estatísticas mostram-no. É mais o consumo do que a produção e a formação. Há mais a formação burocrática, de caneta e lápis, do que uma formação científica de qualificação das pessoas. A prova disso é o aparecimento das universidades privadas, que eram universidades de caneta e papel.

E a classe política?
A classe política é uma classe que não o merece ser, é-o porque teve a ousadia de se apresentar a eleições e, face ao vazio de poder, substituir os anteriores, que era uma classe política extremamente bem formada, os constituintes, os pais da democracia, até meados da década de 80. Houve pessoas que se afastaram voluntariamente da política, como é o caso do professor Jorge de Miranda, para dar um exemplo de uma pessoa do PSD, do arco da governação, que é uma pessoa não só lúcida, como sábia, como honesta. A classe política foi tomada de assalto, sobretudo a governação, por um conjunto de funcionários das jotas que foram servilmente subindo degrau a degrau, limpando tudo em redor como os eucaliptos, até ao momento em que não há alternativa dentro dos partidos. As possíveis grandes alternativas, as alternativas de mérito fogem para a sua profissão, para a ciência, para as artes, para o comércio, para a economia, para as finanças.

Vivemos em democracia?
Há vários tipos de democracia. Do ponto de vista formal não podemos negar que há democracia, nos grandes princípios da Europa a democracia cumpre-se: há alternativas, há alternâncias, há possibilidade de contestação, há liberdade de expressão, de reunião, de manifestação, tudo isso é muito importante. Quem viveu antes do 25 de Abril não pode negar que este é o melhor regime.
Por que é que as pessoas deixam que os que caracteriza como medíocres dominem os partidos?
Creio que a mediocridade se mede pela ausência de princípios éticos, e as pessoas que fazem uma carreira na ciência, na indústria, no comércio, nas letras, na função pública e que são bem formadas têm alguma dificuldade em aceitar, por um lado, o servilismo em relação aos partidos, por outro lado, o maquiavelismo e o oportunismo a que as máquinas partidárias dão ensejo.

Há excepções?
Oferecem-se por vezes, sem dúvida. Lembro a candidatura a Presidente de Fernando Nobre, que imediatamente foi cilindrada por um conjunto de artificialismos políticos. Agostinho da Silva contava uma história da serra da Malcata, onde na década de 1960 havia cinco famílias num povoado. Três dessas famílias emigraram, sem saber a língua, com os costumes rurais que tinham, a mentalidade da Nossa Senhora de Fátima, mas tiveram a ousadia e a coragem de ir a salto para a Alemanha e a França. Quando mais tarde regressaram triunfantes, com uma família, um carro, uma casa, quem dominava a aldeia? Os que não tinham tido a coragem de partir. Dominavam a sacristia, o minimercado, a serração da madeira e também a junta de freguesia. Portugal é um pouco isso. As elites corajosas e ousadas são as que partem. Ficam cá, em parte pois não quero generalizar, os que não têm coragem de partir, ou seja, não têm coragem de inovar. A elite portuguesa reflecte hoje isso.

No actual relativismo ético, idolatra-se o dinheiro e o consumo. Vivemos uma regressão civilizacional e estamos a voltar a um mundo mais desigual?
Socialmente mais desigual, inevitavelmente estamos. A Europa transformou-se numa empresa de negócios, uma grande empresa. As nações, os países são os sócios dessa empresa. A empresa fez-se para trocar, vender, comprar. Troca-se o Fiat italiano pelo Renault francês, este pelo Mercedes alemão. Ao tornar-se uma grande empresa, um grande grupo de negócios a que habitualmente chamamos mercado, a Europa conseguiu, após a Segunda Guerra Mundial, dar um grande impulso à economia, ou seja, à qualidade de vida e ao bem-estar dos povos. Até 1973 e à crise do petróleo, e no caso de Portugal desde a década de 60 até ao fim do século XX. Criou-se um bem-estar na Europa que não existiu nos séculos passados.

E isso não regride?
Qualquer guerra fará voltar imediatamente para trás. Mas até agora não houve uma guerra na Europa. A Europa tornou-se um grande hipermercado onde podemos encontrar nas prateleiras 16 marcas de iogurte e isso foi muito bom para os povos economicamente, mas também ao nível da formação do seu próprio corpo, o europeu vive muito mais tempo comparado com algumas décadas. Assim, não é por ser um grande mercado que é mau.

Então porquê?
O que corre mal é que no mercado domina a classe média, uma classe média que não tem capacidade de sonhar. Preocupa-se com o colégio dos filhos, os carros, com a roupa, com o consumo em geral, com os seguros médicos, com a herança que vai deixar aos filhos. Portanto, preocupa-se com um universo material, falta-lhe essa capacidade de criar utopias possíveis. Nesse sentido, a Europa melhorou quantitativamente, quanto perdeu qualitativamente capacidade de criar novas visões do mundo.

Vivemos hoje num mundo novo e diferente, essa capacidade de sonhar não é conseguida através do progresso da tecnologia?
Acertou em cheio. A única capacidade de sonho que o europeu tem, neste momento, está na tecnologia e na ciência. Se virmos um jornal, o departamento comercial da Europa está todo no jornal, até que chegamos à página da astronomia e da física, da medicina. Ainda esta semana o PÚBLICO falava do hambúrguer feito de células estaminais como uma solução para refugiados. Mas atenção, essa tecnologia e essa ciência só podem dar essa capacidade de sonho a vinte e a trinta anos se se subordinar a princípios éticos e a princípios de democracia política, porque a União Soviética também teve progressos técnicos enquanto ditadura.

Em O Último Europeu, citando um filósofo português, cujo nome não indica, diz que "os portugueses não trabalham, mas estão sempre ocupados". Esta frase é uma síntese?
É de Agostinho da Silva. O sonho dele era que todos os homens não trabalhassem mas estivessem sempre com actividades. É uma síntese que defende que o trabalho mecânico é explorador e não liberta. É o contrário do dístico de Auschwitz. O que Agostinho da Silva queria dizer está dentro da utopia. É que no futuro é possível, até por causa do desenvolvimento tecnológico e científico, sobretudo da Europa, onde haja um máximo de liberdade com um máximo de igualdade social. Esse seria o momento perfeito, o V Império mítico que a Europa procura. Houvesse pão sobre a mesa para todos, escola para os filhos, trabalho ou actividades para todos se sentirem realizados, hospitais para os idosos e uma tumba para morrer, porque, dizia ele, houve tempo em que não havia a vala comum. Não é muito pedir que cada político ao fazer uma lei tenha este objectivo.

Como vê a situação da Grécia?
A Grécia devolveu a capacidade de sonhar, trouxe essa capacidade, que François Hollande tinha também trazido, que o Podemos em Espanha também trouxe. É essa capacidade de sonho, de pensar a Europa com coesão social, com liberdade e, evidentemente, com igualdade e com justiça social. Atenção, isto não significa que eu esteja de acordo com as propostas do Syriza. Mas reconheço que abriu um novo horizonte à Europa. Só que esse horizonte vem tarde de mais. Na Europa, o poder é global, mas a política é nacional, os governos eleitos por parlamentos nacionais. Isso gera uma profunda contradição. Porque os povos nacionais sonham, é o caso de Portugal, de Espanha. E a burocracia não sonha, a burocracia governa a Europa governa a Europa como a tal empresa, de classe média, estável.

Isso gera frustração aos povos.
Certamente e regozijo dos burocratas, dos tecnocratas do poder. E por que é que eles são tecnocrata, contabilistas burocratas? Porque não nos dão uma visão de uma Europa melhor a dez, quinze, vinte anos. Passos Coelho e Cavaco Silva não apontam para um Portugal melhor. Pelo contrário. Ou mantém-se o mesmo, a austeridade, ou pior.

Entre os povos e a burocracia, quem pode decidir se a Grécia sai do euro?
Era preferível que a Grécia não saísse do euro. Mas é verdade que o conservadorismo europeu se arrepiou todo com a eleição deste novo primeiro-ministro grego. E tenta bloquear a Grécia. Mas a solução não está nem no Syriza nem no ministro das Finanças alemão. Um defende o dever moral alemão, o dever kantiano. O outro defende a capacidade de sonho. A solução está na continuidade sólida de uma classe média europeia, desde a Alemanha até à Grécia.

Como é possível recuperar essa classe média?
A Europa é o continente da classe média, desde a Grécia Antiga, só interrompeu alguns séculos na Idade Média. Depois continuou a ser a Europa da classe média romana. No Renascimento, a partir da formação das cidades a partir do século XII, a classe média voltou a nascer e impôs a burguesia. Foi a classe média que laicizou a Europa a partir do Renascimento, que separou a política da religião, o poder absoluto do poder moderado ou constitucional. A classe média é o perfumista francês, o gentleman inglês, o lavrador da Baviera, o comerciante italiano ou português. A classe média pode desaparecer em termos económicos mas não desaparece em termos mentais e em termos de longo prazo.

Mas tem um desafio, neste momento, que leva ao apetite dos nacionalismos?
Sim, o desafio da crise económica, por um lado, e o da crise de identidade, por outro. Mas a Europa desagrega-se, perde importância interna, perde importância internacional de cada vez que a classe média perde força. Vejamos: o Syriza governa a Grécia agora e por mais cinco ou oito anos, tentando restabelecer um mínimo de igualdade e de coesão social. Em França, Marie Le Pen ganha em 2017 as presidenciais. O Reino Unido sai da Europa, em referendo em 2017. Isto é uma hipótese plausível. E se assim for, sabe quem vai ser a grande âncora da Europa no futuro? É a classe média alemã. A Alemanha fica entalada entre uma França xenófoba, racista, desigual, com políticas antiemigração, com estatuto de gueto para os árabes e para os negros, se Marine Le Pen ganhar, e uma Rússia imperial. Entre uma extrema-direita e uma Rússia imperial, a Alemanha é obrigada a aliar-se à Polónia, hoje bastante liberal. Inimigos figadais serão obrigados a aliar-se. Portugal, Espanha e Grécia não contam, são pequenos países. A Europa do futuro desagrega-se e esta desagregação vai fazer com que esta Alemanha que hoje consideramos prepotente — e é — seja a âncora de uma futura Europa estável através da classe média.

Mas será uma Europa pequena?
Isso é difícil dizer, mas sim, uma Europa do Norte. A Alemanha e a Escandinávia. Eu tento perceber a Alemanha, tento perceber por que é que eles são assim. Depois da Segunda Guerra, foram o grande motor económico. Só que tem uma classe média burocrática que impõe a todo o continente. Isso gera reacções. A minha ideia não é defender a Alemanha ou a Grécia, mas sempre que a classe média se desagrega a Europa entra ou aproxima-se da guerra. A Alemanha é neste momento o esteio da classe média. Se a Europa se mantém forte face à América, face à Ásia, é pela Alemanha. Isso quer dizer que eu devo apoiar a política alemã a todos os níveis? Claro que não. Sobretudo, tudo o que seja contabilista burocrata e tecnocrata.

Esses seriam os "novos europeus"?
Não, no romance são os "velhos europeus". Tudo isso caminharia para os "clãs guerreiros", que são os mercenários que defendendo as empresas acabam por tomar conta das próprias empresas. Os "velhos europeus" são aqueles que hoje dominam a Europa e a governam como uma mercearia.

É uma Europa sem projecto?
Sim, e agressiva. A Alemanha é agressiva para Portugal, para a Espanha, para a Grécia.

Vive-se uma situação complicada na Ucrânia, a Rússia está menos forte no plano económico, logo mais perigosa no plano geoestratégico, até onde?
A Europa muda de mapa de cem em cem anos, desde o Renascimento. Portugal é dos países mais estáveis. A Europa mudou de mapa em 1945, com a Segunda Guerra Mundial, mudou de mapa em 1991, com a implosão da União Soviética. E ainda esta a mudar. O mapa não está estabilizado. A Rússia trabalha no sentido de se fortalecer geoestrategicamente. Quanto mais a Rússia quer ser imperial, menos democrata é, não há impérios democratas. Nesse sentido, o grande oposto à Europa é a Federação Russa. Mais do que o Estado Islâmico. Mas creio que devido ao elevadíssimo poderio das armas não se pode nunca cair em guerra, a não ser guerras localizadas nas fronteiras.

A Ucrânia não é um início de uma Terceira Guerra?
Não. A Ucrânia vai ser resolvida, a Ucrânia é um país que não existia, tem 25 anos, estava sempre na órbita da Rússia e dos seus aliados. Creio que nem a Alemanha, nem os Estados Unidos, nem a Polónia, nem a Europa no seu todo, vão abrir uma guerra na Europa, seria uma catástrofe total.

Mas há na Europa uma tenaz a leste e outra a sul.
Essas tenazes são as duas faces da ausência da classe média. Qualquer grande político na Europa neste momento tem de fortalecer a classe média, a classe média é o esteio da Europa. Foi a classe média que sonhou a razão científica, a razão filosófica, que levou à África, à Ásia, que abriu a Escola Pública, que fez o Sistema Nacional de Saúde.

Mas podemos estar a chegar ao fim do que é o mito do progresso iluminista? Esse reino da classe média pode deixar de existir, ou não? Restam os burocratas.
Está a falar da polémica sobre se chegamos ao fim do modernismo e se estamos no que se chama pós-modernismo. Eu estou convencido, sobretudo seguindo a lição de Jürgen Habermas e de Zygmunt Bauman, e de Onésimo Teotónio Almeida, em Portugal, de que a modernidade não acabou, que ainda não esgotámos a escola pública, o sistema de eleições, a separação entre os poderes, os direitos humanos, a ciência pública. E que estamos a passar por uma fase de desregulamento e fragmentação dos mercados europeus, ninguém tem dúvidas, mas ainda não há alternativa a esta Europa. Apostar nas políticas públicas que fizeram a Europa é apostar no único sonho que temos. E este é o desenvolvimento científico de modo a extirparmos a fome, o desenvolvimento ambiental no sentido de recriar harmonias com a natureza, o desenvolvimento da democracia no sentido de darmos a máxima liberdade e a máxima igualdade às pessoas, o desenvolvimento das tecnologias de modo a que as pessoas trabalhem cada vez menos e as máquinas trabalhem cada vez mais.

Não acredita que esteja a acabar o Modelo Social Europeu?
Não, não. O único grande sonho da Europa, a grande singularidade da Europa face à África, à Ásia e à América é o chamado Estado social. O único efeito de riqueza que a Europa produziu em quantidade foi durante a vigência do Estado social. É claro que tudo acaba e pode acabar. Mas neste momento, num horizonte de quinze a vinte anos, não há alternativa, a não ser a do Estado liberal, desigualitário, diferenciado socialmente, sem assistência médica dos idosos, que para Portugal seria ruinoso. Há dois milhões de pobres, há um milhão e meio de idosos a receber pensões de miséria.

O crescendo do populismo na Europa não pode ser um risco para a democracia?
Sem dúvida. Aliás, a democracia é o grande regime do risco, porque permite a explosão no seu interior – por isso é tão humanamente perfeita – das maiores contestações, desde o individualismo máximo até à formação de seitas religiosas de carácter fanático, ou de partidos de extrema-esquerda ou de extrema-direita. Quanto maiores os populismos mais a Europa entra em fragmentação e decadência. Amanhã, o populismo grego, junto com o populismo de Marine Le Pen e junto com o populismo do senhor Cameron, na Inglaterra – que também é populismo –, pode levar a que a Alemanha se torne o grande baluarte da futura Europa.

Quanto mais Podemos, menos podemos?
Exactamente, do ponto de vista europeu. Há que não caluniar a Alemanha. A Alemanha teve um grande passado. Teve um passado catastrófico mais recentemente, horrível, com o maior genocídio. Mas teve um passado democrático. Conseguiu suplantar a divisão entre as duas Alemanhas de uma maneira tão pacífica quanto burguesa. Talvez a futura Alemanha possa ser o futuro baluarte dos direitos humanos, dos direitos ambientais e da democracia. Isso não quer dizer que devamos ser servis com a Alemanha, mas a Alemanha não pode ser governada por burocratas, tem de ter homens como Helmut Kohl, que soube em quinze dias após a queda do Muro de Berlim exactamente o que tinha de fazer e como fazer. Era disso que nós precisávamos.

Quem ocupará o vazio da desagregação europeia? O "Império dos Mandarins"?
Estou convencido de que sim. Até agora tentei ser positivo com a Europa, falei da Europa nos últimos quinhentos anos, do Renascimento para cá, mas se pensarmos, a Europa dominou o mundo nos últimos três mil anos, descobriu e dominou a África, a Ásia, a América. Três mil anos é muito, a Europa possivelmente está a entrar numa decadência lenta que vai levar a um grande sono, entrará no século XXII num grande sono. Aí o continente que está mais bem preparado é inevitavelmente o asiático.

Há já dados concretos, a China está a comprar terras de cultivo em África e na América Latina, detém as dívidas das economias mais desenvolvidas. Em Portugal investe em empresas que o Estado privatiza. É a primeira economia mundial. Como vê a colonização do mundo pela China?
Se calhar temos de encontrar outra palavra, não é colonialismo, esse tempo já passou. É um império económico que avança primeiro e depois avançará o império político, quer dizer, a liderança política.

E com esse império político chegará também a falta de direitos humanos?
Não há tradição de direitos humanos na Ásia. A própria Índia subordina os direitos humanos a uma visão religiosa.

Conclui-se que o mundo é contraditório. Temos uma Europa em desagregação e em que a Alemanha é a âncora para o futuro, logo pode haver um futuro. Mas ao mesmo tempo parece que há um crescimento de um regime vindo da Ásia, em que não existem direitos humanos, democracia, ética kantiana.
Há aqui o choque de dois tempos. O tempo histórico conjuntural da Europa hoje, no século XXI. Neste, a Europa tem de ter as três bandeiras que fazem a sua singularidade no mundo inteiro: os direito humanos, os direitos ambientais e a democracia. Mas ao século XXII, ao século XXIII, não sei se isso chega e, portanto, admito que há um tempo civilizacional em que a Europa entra em decadência, atacada pelos árabes e pela Ásia. A Europa tem 500 milhões de habitantes, a China tem um bilhão e quatrocentos milhões, a Índia tem um bilhão e duzentos milhões. Quando o nível de armamento é tão sofisticado que qualquer guerra pode inviabilizar o território durante milhares de anos, devido a armas bacteriológicas e nucleares, a única possibilidade de os impérios se formarem é através do dinheiro. É o que a China está a fazer.

Nessa perspectiva e como antevê em O Último Europeu, admite o regresso do esclavangismo?
Admito que num futuro longínquo a escravatura se imponha novamente.

E quem serão os escravos?
Os escravos serão sempre os mais fracos. Mas não sei se serão os africanos, os europeus...

A evolução da economia, associada à falta de ética, pode levar a isso?
Sim. E a evolução da tecnologia também. Quando atingirmos cinquenta bilhões de habitantes na Terra, coloca-se um problema. E vamos atingi-los em 2070, coloca-se um gravíssimo problema, tem de haver água e comida para todos. E no século XXII, quando formos quinze bilhões, coloca-se ainda mais esse problema. Não estou a dizer que a China vá escravizar os europeus. No romance até os matam, mas é um romance.

No fim do livro, o último europeu tem 130 anos, está prestes a morrer e resta-lhe o livro que escreveu recordando a história da humanidade e a lembrança de uma vida democrática, de respeito e de bem-estar, que espera que seja levado ao futuro por um jovem casal na ilha do Pico. É definitivamente pessimista em relação ao futuro da humanidade?
O jovem casal é o optimismo.

terça-feira, 30 de junho de 2015

it is about power and democracy much more than money and economics.

NEW YORK – The rising crescendo of bickering and acrimony within Europe might seem to outsiders to be the inevitable result of the bitter endgame playing out between Greece and its creditors. In fact, European leaders are finally beginning to reveal the true nature of the ongoing debt dispute, and the answer is not pleasant: it is about power and democracy much more than money and economics.

Of course, the economics behind the program that the “troika” (the European Commission, the European Central Bank, and the International Monetary Fund) foisted on Greece five years ago has been abysmal, resulting in a 25% decline in the country’s GDP. I can think of no depression, ever, that has been so deliberate and had such catastrophic consequences: Greece’s rate of youth unemployment, for example, now exceeds 60%.

It is startling that the troika has refused to accept responsibility for any of this or admit how bad its forecasts and models have been. But what is even more surprising is that Europe’s leaders have not even learned. The troika is still demanding that Greece achieve a primary budget surplus (excluding interest payments) of 3.5% of GDP by 2018.

Economists around the world have condemned that target as punitive, because aiming for it will inevitably result in a deeper downturn. Indeed, even if Greece’s debt is restructured beyond anything imaginable, the country will remain in depression if voters there commit to the troika’s target in the snap referendum to be held this weekend.

In terms of transforming a large primary deficit into a surplus, few countries have accomplished anything like what the Greeks have achieved in the last five years. And, though the cost in terms of human suffering has been extremely high, the Greek government’s recent proposals went a long way toward meeting its creditors’ demands.

We should be clear: almost none of the huge amount of money loaned to Greece has actually gone there. It has gone to pay out private-sector creditors – including German and French banks. Greece has gotten but a pittance, but it has paid a high price to preserve these countries’ banking systems. The IMF and the other “official” creditors do not need the money that is being demanded. Under a business-as-usual scenario, the money received would most likely just be lent out again to Greece.

But, again, it’s not about the money. It’s about using “deadlines” to force Greece to knuckle under, and to accept the unacceptable – not only austerity measures, but other regressive and punitive policies.

But why would Europe do this? Why are European Union leaders resisting the referendum and refusing even to extend by a few days the June 30 deadline for Greece’s next payment to the IMF? Isn’t Europe all about democracy?

In January, Greece’s citizens voted for a government committed to ending austerity. If the government were simply fulfilling its campaign promises, it would already have rejected the proposal. But it wanted to give Greeks a chance to weigh in on this issue, so critical for their country’s future wellbeing.

That concern for popular legitimacy is incompatible with the politics of the eurozone, which was never a very democratic project. Most of its members’ governments did not seek their people’s approval to turn over their monetary sovereignty to the ECB. When Sweden’s did, Swedes said no. They understood that unemployment would rise if the country’s monetary policy were set by a central bank that focused single-mindedly on inflation (and also that there would be insufficient attention to financial stability). The economy would suffer, because the economic model underlying the eurozone was predicated on power relationships that disadvantaged workers.

And, sure enough, what we are seeing now, 16 years after the eurozone institutionalized those relationships, is the antithesis of democracy: Many European leaders want to see the end of Prime Minister Alexis Tsipras’s leftist government. After all, it is extremely inconvenient to have in Greece a government that is so opposed to the types of policies that have done so much to increase inequality in so many advanced countries, and that is so committed to curbing the unbridled power of wealth. They seem to believe that they can eventually bring down the Greek government by bullying it into accepting an agreement that contravenes its mandate.

It is hard to advise Greeks how to vote on July 5. Neither alternative – approval or rejection of the troika’s terms – will be easy, nor do both carry huge risks. A yes vote would mean depression almost without end. Perhaps a depleted country – one that has sold off all of its assets, and whose bright young people have emigrated – might finally get debt forgiveness; perhaps, having shriveled into a middle-income economy, Greece might finally be able to get assistance from the World Bank. All of this might happen in the next decade, or perhaps in the decade after that.

By contrast, a no vote would at least open the possibility that Greece, with its strong democratic tradition, might grasp its destiny in its own hands. Greeks might gain the opportunity to shape a future that, though perhaps not as prosperous as the past, is far more hopeful than the unconscionable torture of the present.
I know how I would vote.

Joseph E. Stiglitz https://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Stiglitz
https://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Stiglitz
The writer is a Nobel laureate in economics and University Professor at Columbia University.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

O paradoxo, a causa e a solução*

Portugal é um paradoxo.

Por um lado é o único pais da Europa e um dos poucos no mundo que foi à falência em pouco mais de três décadas (78/83/2011). Já foi ultrapassado em PIB per capita por cinco países do alargamento (Malta, Chipre, Eslovénia, Rep. Checa e Eslováquia) e tem a produtividade mais baixa da zona Euro (mesmo apenas 84% da grega que contudo tem menor % de população activa e maior taxa de desemprego).

Por outro lado, tem oito coisas para ser dos países mais ricos do mundo. Uma localização excelente entre os dois blocos económicos mais ricos do mundo; a 11ª maior zona marítima mundial; um clima ameno (sem tufões, nevões, verões tórridos); o português é a 5ª língua mais falada no mundo; e o 6º maior mercado mundial; um pais seguro; e uma força de trabalho apreciada no exterior (inquéritos colocam os portugueses sistematicamente entre os mais estimados).

Como explicar este paradoxo?

A causa remonta a D. Luís da Cunha (mentor do Marquês de Pombal) que numa carta lhe referiu que os países pequenos necessitam mais de estratégia que os grandes, porque aqueles carecem dos recursos destes para se reerguerem em caso de queda.

No zénite do seu poder (1578), Portugal afastou-se da sua core competence com que criou o seu império: batalhas marítimas, ataques a fortificações e cidades costeiras, metendo-se pelo deserto a dentro para dar uma batalha campal, algo que não fazia há mais de cem anos (desde a batalha de Toro da sucessão dinástica ibérica em 1476).

Resultado: não houve nem plano de batalha, nem sequer ordem de inicio de combate. Morreu o rei. A elite. E de um exército de 23.000, cem (!) escaparam.

As consequências foram três. No curto prazo o centro de decisão passou para Castela e as possessões portuguesas negligenciadas foram tomadas pelos holandeses e ingleses, de Ormuz, a Salvador, a Luanda.

No médio prazo uma emigração incessante. E no longo prazo um circulo vicioso entre a emigração (em quantidade e qualidade) e o declínio (políticos, económicos, social e cultural).

Hoje Portugal tem 5 milhões de portugueses registados nos consulados no exterior e nos anos recentes o fluxo tem aumentado em quantidade e qualidade.

Depois de Malta, Portugal é o pais europeu com maior percentagem de população no exterior.

A solução é reconhecer como José Hermano Saraiva que somos poucos (15 milhões), mas se formos todos seremos suficientes e assim criar sinergia entre os 5 do exterior e os 10 do interior.

Em quatro áreas: turismo (só 4 em 10 brasileiros que passam pela Portela pernoitam em Portugal); social, facilitando p.e. a aquisição de segundas residências e o acesso às universidades e o acesso às universidades (há residências 42 milhões de jovens entre os 15-24 anos nos CPLP); económica (usar a diáspora para agentes de exportação para além do mercado da saudade); e financeira (benefícios fiscais aos residentes no exterior).

Em Janeiro uma iniciativa da AICEP reuniu mais de trinta líderes da diáspora que apresentaram 42 medidas para criar sinergia: desde o voto da internet, até articular as câmaras de comércio com as delegações da AICEP nas acções promocionais no exterior, até acabar com a dupla tributação dos reformados que regressam a Portugal (que em teoria acabou mas na prática não).

Em conclusão, criar sinergia entre os 5 e os 10 para transformar Portugal de um pais periférico na Europa em central no mundo.

Tal requer medidas e acções concretas.

Não discursos. Nem planos. Lembrando Shakespeare que dizia que “ a acção é a maior das eloquências” e Churchill cujo motto era “acção hoje”.



*Jorge A. Vasconcellos e Sá
Mestre Drucker School PhD Columbia University
Professor Catedrático
In “ Vida Económica” de 26 de Junho 2015

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Benfica

Associação Alemã de Viagens publica video de promoção, o SL Benfica é descrito de forma completa e extraordinária.

sábado, 20 de junho de 2015

Poema aos homens constipados - Lobo Antunes


Pachos na testa, terço na mão,

Uma botija, chá de limão,

Zaragatoas, vinho com mel,

Três aspirinas, creme na pele

Grito de medo, chamo a mulher.

Ai Lurdes que vou morrer.

Mede-me a febre, olha-me a goela,

Cala os miúdos, fecha a janela,

Não quero canja, nem a salada,

Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.

Se tu sonhasses como me sinto,

Já vejo a morte nunca te minto,

Já vejo o inferno, chamas, diabos,

Anjos estranhos, cornos e rabos,

Vejo demónios nas suas danças

Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo

Ai Lurdes, Lurdes fica comigo

Não é o pingo de uma torneira,

Põe-me a Santinha à cabeceira,

Compõe-me a colcha,

Fala ao prior,

Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,

Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.

Faz-me tisana e pão de ló,

Não te levantes que fico só,

Aqui sozinho a apodrecer,

Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer


António Lobo Antunes –
(Sátira aos HOMENS quando estão com gripe)










terça-feira, 16 de junho de 2015

domingo, 14 de junho de 2015

A burqa também existiu no Algarve: era o bioco e dava liberdade à mulher

Por Idálio Revez
14/06/2015 – in jornal Público

No século XIX, um antigo governador civil que não gostava de ver as mulheres todas tapadas decretou a abolição do uso do trajo tradicional de todas as ruas e templos. Agora, foi recriado um bioco moderno mas a cabeça fica destapada.

A mulher algarvia, há pouco mais de um século, também usou burqa mas sem conotações religiosas. À capa negra que se estendia da cabeça aos pés e só permitia ver os olhos, foi dado o nome de bioco ou rebuço. Um antigo governador civil, em nome da nova civilização, decretou que este traje tradicional fosse banido das ruas e templos. Agora, o bioco está de volta em versão moderna, com outras histórias para contar.

O antigo governador civil de Faro, Júlio Lourenço Pinto, nascido no Porto, viu nesta peça de vestuário “vestígios da dominação muçulmana” que entendia não terem razão de existir no final do século XIX. Vai daí, extinguiu o bioco. No seu livro de crónicas O Algarve, publicado em 1894, justifica: Trata-se de uma “máscara” que poderia dar azo a certas libertinagens. Uma das razões invocadas prende-se com a fidelidade conjugal. Imagine-se uma “frágil pecadora” que, vestida de forma a não ser reconhecida, poderia atirar-se “sem perigo a aventura amorosa-romanesca ou a façanha de infidelidade conjugal”, afirma. Por isso, servindo-se dos poderes que lhe estavam conferidos, decretou: “É proibido nas ruas e templos de todas as povoações deste distrito o uso dos chamados rebuços ou biocos de que as mulheres se servem escondendo o rosto”, refere o artigo 32, do Regulamento Policial do distrito, publicado a 6 de Setembro de 1892.

Lurdes Silva, natural do Porto, “apaixonou-se” pelo bioco quando visitou o Museu do Trajo, em São Brás de Alportel – local onde se podem encontrar cópias de alguns exemplares. O amor à primeira vista por uma peça de vestuário, confessa, não é coisa rara. Mas, neste caso, houve mais do que isso. Esta professora da Universidade do Algarve, na área nas ciências económicas e empresariais, sentiu necessidade de mergulhar na cultura da região. “Levei dois anos a investigar a história desta peça”. Por fim, decidiu partilhar os conhecimentos e começou a produzir biocos colocando, no forro da peça, a história deste vestuário contada em português e inglês. Em 1922 no livro Os Pescadores, Raul Brandão dizia que se tratava de “um traje misterioso e atraente”, que alimentava especulações. Numa passagem da obra, referindo-se às mulheres de Olhão, escreve: “Quando saem, de negro envoltas nos biocos, parecem fantasmas. Passam, olham-nos e não as vemos”.

Mas qual é relação da burqa com o bioco? A burqa, diz Lurdes Silva, é uma “imposição masculina, aqui passa-se o contrário: o homem não quer que ela use, mas ela usa para ter mais liberdade”. Por conseguinte, os três modelos que concebeu, com design de Maria Caroço, puxam pelo lado estético da peça, sublinhando as histórias amorosas e o sentido da liberdade. Por isso, cada um tem a sua designação: mistério, tradição e paixão. O preço dos modelos recriados varia entre os 139 e os 159 euros.

Assim, a novidade deste Verão é um bioco, de um tecido leve, com grafitti assinado por Sen Silva – um artista com várias obras públicas em Olhão e com vários trabalhos expostos numa galeria em Almancil. “Tanto pode ser usado numa cerimónia, como numa festa sunset”, diz Lurdes Silva, referindo-se ao bioco “mistério”, uma peça sugerida pela cantora Viviane, a artista que integra o projecto ”Rua da Saudade”, em homenagem ao poeta Ary dos Santos, e canta “Do Chiado até ao Cais, e que se rendeu à recriação deste traje regional. As cores predominantes são o verde/figueira, o azul lusco-fusco do pôr-do-sol algarvio e o tijolo dos mercados de Olhão. Uma colecção destas peças vai estar patente ao público, na FIL, em Lisboa, entre 27 de Junho a 5 de Julho, numa mostra dedicada à inovação. Para já, no Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela, está patente, até 12 de Julho, na parte da tarde, uma exposição de biocos da autoria da artista plástica Joana Bandeira.

Bioco, um mito bem guardado

Mas nos finais do século XIX, a visão de Júlio Lourenço Pinto estava longe deste recente entusiasmo pelo bioco já que considerava que este não passava de um vestígio da cultura islâmica “sem elegância nem beleza”, feito de um tecido “negro sepulcral”, que não se coadunava com evolução civilizacional. Com alguma semelhança a este traje encontra-se o capelo, da ilha Terceira – que ainda faz parte do folclore açoriano e se tornou símbolo dessa região. No Algarve, a extinção oficial deu-se em 1892. Porém, continuou a ser usado em Olhão até meados dos anos 30 do século XX. O director do Museu do Trajo em São Brás de Alportel, Emanuel Sancho, diz que não passa de “um mito” a relação que se estabeleceu entre esta peça e o véu islâmico. “Há um século tapava-se a cabeça em toda a Europa – desde a Holanda, onde não havia biocos, até à Inglaterra e à França”, observa.


quinta-feira, 11 de junho de 2015

Necessidade/ Solidariedade: Um acto de comércio como outro qualquer!

Em Inglaterra, a cadeia de supermercados Waitrose, oferece uma moeda (uma chapa) a cada cliente que faz compras acima dum determinado valor.
O cliente, à saída, tem, normalmente, três caixas, cada uma em nome duma instituição social sediada no município, para receber as referidas moedas, de acordo com a opção do cliente.

Periodicamente, são contadas as moedas de cada caixa e a empresa entrega em dinheiro, à respectiva instituição, o valor correspondente, donativo esse que, diminui os seus lucros mas, também, tem o devido tratamento em termos de fiscalidade.

Em Portugal, as campanhas de solidariedade custam ao doador uma parte para a instituição, outra parte para o Estado e mais uma boa parte para a empresa que está a “operacionalizar” (?!...) a acção.

Um país de espertos... até a ajuda aos mais necessitados não escapa.
Entretanto nós ficamos quietos e calados, ou então, estupidificamos voluntariamente...
Triste, muito triste, mas é bom saber...

Leiam s.f.f. e repassem.

Programa de luta contra a fome. Nada é o que parece.

Ora vejamos:

Decorreu num destes fins de semana mais uma ação, louvável, do programa da luta contra a fome mas,....atentem no seguinte e façam o vosso juízo!

A recolha em hipermercados, segundo os telejornais, atingiu cerca de 2.644 toneladas! Ou seja 2.644.000 Kilos.

Se cada pessoa adquiriu no hipermercado 1 produto com vista à doação e lhe custou, digamos, 0.50 € (cinquenta cêntimos), faça a seguinte conta:

-2.644.000 kg x 0,50 € dá 1.322.000,00 € (Um milhão, trezentos e vinte e dois mil euros), total pago, à vista, nas caixas dos hipermercados.

Conclusões:

a) Este “excesso” de consumo não ocorreria sem a campanha; Daí que constitua, pelo dito “excesso”, sempre um “bom negocio” para os supermercados.

b) Sem este consumo, exclusivamente motivado pelo binómio: necessidade/solidariedade, o Estado não auferiria o respectivo IVA daquelas transações “a mais”, assim como o IRC gerado nas contas dos supermercados, uma vez que, tal aumento de facturação, influencia obviamente o seu resultado anual, na medida do lucro liquido respectivo.

c) Mas...quanto auferiram, “à priori” o Estado e os Supermercados?

1. o Estado, pelo menos: 304.000,00 € (23% iva),acrescendo o IRC(?);

2. o Hipermercado, brutos: 396.600,00 € (margem de lucro de cerca de 30%).

3. Ora :1.+2.= €700.000,00 (setecentos mil euros).

Recorde-se que o volume do “negocio” motivado pela necessidade versus solidariedade, que as péssimas condições económicas dos destinatários ocasionam, foi de: €1.322.000,00 (Um milhão, trezentos e vinte e dois mil euros), logo:

Mais de 50% daquilo que você dá aos necessitados (mais precisamente: 52,95%) fica-se pelo Estado e Hipermercados...

Poucos reparam, tal como eu, em quem mais, comprovadamente, engorda com estas campanhas...

A ação da recolha e os milhares de voluntários que realizaram esta tarefa, são dignos da maior consideração social. Por parte de qualquer cidadão e não menos por parte do Estado! Mas que Estado?

O legislador (assembleia da República e, ou, Governo) (mandatário do cidadão-eleitor que lhe paga o salário) continua deslealmente distraído porquanto, face a tamanho desmando, apesar da sua estrutural verborreia legislativa, mantem uma lei do Mecenato cujo contributo é absolutamente inexistente, quando se lhe impunha ocupar-se da realidade que a todos entra pelos olhos adentro, concedendo ao binómio necessidade/solidariedade, os benefícios fiscais adequados ao mesmo, não o fazendo, ao serviço do confisco e seus apaniguados, num estado de direito formal, materialmente amputado, no seio do qual, cada vez com mais frequência, vai valendo tudo...

Na verdade, enquanto o Estado Social vai definhando, o Estado Cobrador de Impostos que o neoliberalismo vai impondo, conserva-se insensível às movimentações sociais de solidariedade promovidas pela iniciativa privada, típicas dos estados liberais, que pretende ser, na busca, pela via do absurdo, de soluções sociais de um “tipo novo” absolutamente invisíveis aos olhos dos mais atentos observadores e historiadores.

Na senda da receita e do negócio à boleia da necessidade/solidariedade do povo é útil voltar a recordar a catástrofe da Madeira – exemplo das circunstâncias especialmente propícias à verificação, destas mais valias - pela via da desgraça alheia, sendo sempre bom não esquecer:

- Porque é que os madeirenses, receberam apenas dois milhões de euros (2.000.000,00) da solidariedade nacional, quando o que foi doado foram dois milhões e 880 mil euros (2.880.000,00)?

Querem saber para onde foi esta "pequena" parcela de 880.000,00 € ???

A campanha a favor das vítimas do temporal na Madeira, através de chamadas telefónicas constituiu um atentado à solidariedade e um insulto à necessidade que a determina.

Pelas televisões, a promoção rezava assim: Preço da chamada 0,60 € + IVA.

Perfazendo 0,72 € no total.

O que dolosamente não se disse, é que o donativo que chegou (!!!) ao beneficiário madeirense foi de apenas 0,50 €.

Assim, oferecemos 0,50 € a quem carece da solidariedade, mas cobram-nos 0,72 €, mais 0,22 €, ou seja, 30%.

Quem beneficiou com esta diferença?

1º - a PT com 0,10 € (17%), isto é, a diferença dos 50 para os 60.
2º - o Estado com 0,12 € (20%), referente ao IVA sobre 0,60 €.

Através duma campanha de solidariedade motivada por uma catástrofe - as chamadas/doação - a PT manteve a sua margem de lucro, como se nada de socialmente relevante se passasse e o Estado, pela via do IVA, encaixou cirurgicamente a sua receita, fazendo vista grossa sobre a solidariedade efectiva como se duma chamada telefónica se tratasse, o que, convenhamos, constitui uma evidência inquestionável sobre a natureza da moral oficial e a sensibilidade dos colectores de impostos e da lei que os move e enquadra.

Ora, a RTP anunciou, com imensa satisfação, que o montante doado atingiu os 2.000.000,00 €.

Esqueceu-se, sintomaticamente, de informar que o povo solidário suportou mais 44%, ou seja, mais 880.000,00 €, repartidos entre a PT (400.000,00 €) e o Estado (480.000,00 €).

Assim, enquanto a PT, manteve a sua margem de lucro de 17%, num puro acto de solidariedade, o Estado, fez incidir o IVA, sobre um produto da mais pura generosidade, como se de um acto comercial se tratasse!!!

TRATAR A SOLIDARIEDADE COMO UM ACTO DE COMÉRCIO É UMA IMORALIDADE TOTALMENTE INACEITÁVEL E INDIGNA DE UM ESTADO DE DIREITO EM CONFESSADO ESTADO DE NECESSIDADE.

PARA ALÉM DE UM TRISTE ESBULHO À BOLSA DOS CIDADÃOS, CONSTITUI UMA AVILTANTE E PERIGOSA AMEAÇA Á SOLIDARIEDADE DO POVO PORTUGUÊS, o único activo de muitos de nós!


É dever de qualquer um de nós: DENUNCIAR!

Correio para:

Armação de Pêra em Revista

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