Não podia haver uma guerra civil, mas podia haver uma matança e algumas figuras justificadamente trataram de se esconder ou de tomar precauções. Soares, com a cabeça a prémio, foi à Alameda.
Tirando as fantasias de Spínola, havia em 26 de Abril de 1974 três forças políticas: o Partido Comunista (que tinha um programa), o MFA (que estava armado) e Mário Soares, que a Europa conhecia e estimava. No I Governo Provisório, Soares foi ministro dos Negócios Estrangeiros, com o encargo de “negociar” a descolonização (na balbúrdia dos tempos a trapalhada era quase uma regra). Muita gente o criticou depois, sem perceber que nenhuma “negociação” era possível quando o exército se insurreccionara precisamente para sair de África. Ficava a Soares, pela ausência de outro qualquer aliado, o trabalho de estabelecer uma democracia contra a vontade do PC e do MFA.
O PC não queria impor aqui o “socialismo real” da Europa de Leste, que os russos não podiam sustentar. Como Cunhal se fartou de explicar, só queria uma “democracia de tipo diferente”, um conceito muito falado na guerra civil de Espanha e agora tirado do ferro-velho da seita. Em que consistia essa antiga monstruosidade? No meio da retórica do costume, consistia em fazer o Estado tomar conta dos “commanding heights” da economia (a energia – incluindo o petróleo – a banca, as seguradoras, a indústria pesada e as grandes propriedades fundiárias do sul). Ao resto de Portugal, o PC dava licença de ir à sua vidinha, com os sindicatos submetidos à CGTP e a administração central e local ocupada por militantes e por “amigos com provas”.
O bom povo compreendeu que este magnífico plano o levaria rapidamente à miséria e uma larga parte dos militares, duramente analfabetos, acharam que na sociedade do dr. Cunhal ficariam ao abrigo de qualquer represália, excepto evidentemente das represálias que o dr. Cunhal lhes resolvesse aplicar por desobediência ou “desvio” político. O problema do dr. Soares era instilar um pouco de bom senso e realismo em algumas cabeças do MFA; e ir resistindo ao assalto do PC ao Estado e às “culminâncias” da economia, uma benemérita actividade a que a “inteligência indígena” prestou os seus zelosos serviços.
Posto isto, o PS precisava também de reforçar a sua organização e de se estender a todo o país. Em 1974, o partido não ia além de algumas venerandas figuras da I República, de alguma Maçonaria e de cinco ou seis dúzias de drs., espalhados pelo Porto e por Lisboa. A geração da crise académica rejeitou quase completamente o que lhe parecia ser um instrumento do “sub-imperialismo” alemão. Não achava o PS “revolucionário” que lhe chegasse e fundou o MES (uma sombra do MIR chileno) e, quando o MES se desfez numa inqualificável loucura, os mais sensatos (11 ou 12, se isso) passaram a almoçar juntos num hotel de Lisboa, sob a designação de GIS (ou Grupo de Intervenção Socialista). Escusado será dizer que não intervieram em nada de consequente.
Mas, mesmo sem eles, Soares conseguiu suster ou moderar os golpes — porque eram verdadeiros golpes, preparados na sombra e executados à revelia dos poderes nominalmente legais — do PC e do MFA. Durante meses pôs na rua manifestações cada vez maiores de um povo que, ao contrário do “slogan”, se começava a desunir. Quando uma greve de tipógrafos (não de jornalistas) fechou o jornal socialista “A República”, Portugal e a Europa compreenderam de uma vez quem eram o MFA e o dr. Cunhal.
E o dr. Cunhal e o MFA ficaram mais longe de resolver o seu grande problema: a eleição para a Constituinte. Prometida pelo programa original dos militares, sinal para o mundo da boa fé dos “revolucionários” do dia essa eleição tinha de se fazer e, simultaneamente, não se podia fazer. Se por acaso se fizesse, ganhava Soares e todo o plano de Cunhal e dos seus camaradas do MFA iria abaixo. E se por acaso não se fizesse a ilegitimidade do PREC (como na altura sentimentalmente se chamava ao delírio da esquerda) não deixaria a mais leve dúvida a ninguém. Felizmente uma parte do MFA, que se recusava a ser o braço forte da repressão comunista e a receber ordens do PC, insistiu na eleição e calou a facção mais excitada do exército. Em Abril de 1975, o povo desunido votou: à volta de 38 por cento em Soares e à volta de 12 por cento no PC.
Mas nem perante esta arrasadora evidência a “festa” terminou. À boa maneira leninista, a televisão e a imprensa insultavam e caricaturavam a Assembleia, houve cercos de operários indignados por causa dos representantes do país se atreverem a discutir os problemas do país, Cunhal garantia a uma senhora italiana (muito célebre nessa altura) que em Portugal nunca haveria uma “democracia burguesa”. A “inteligência” de cá desceu a abismos de indignidade a que raramente alguém desceu e a seguir andou anos a comprar do seu bolso os seus próprios livros, com o fim de purificar o mercado e de aparecer limpinha ao dr. Mário Soares.
A atmosfera de medo e de intimidação não parou com as eleições de 75. As manifestações continuavam, a censura apertou nos jornais, na RTP e nas rádios. José Saramago apelava à revolta no “Diário de Notícias”. Quem falava no parlamento ou em votos era um puro “burguês” dedicado a esmagar as “classes trabalhadoras”. E começaram a correr rumores de guerra civil. Os rumores eram absurdos por três razões. Primeiro, porque nenhuma das partes tinha dinheiro. Segundo, porque a “revolução” indisciplinara as tropas do PC (e a URSS proibira disparates). Terceiro, porque a gente de Otelo não passava de uma mascarada sem valor militar. Não podia haver uma guerra civil, mas podia haver uma matança e algumas figuras justificadamente trataram de se esconder ou de tomar precauções. Soares, com a cabeça a prémio, foi à Alameda e a seguir ajudou, à sua maneira, o golpe de 25 de Novembro, que removeu de cena os partidários do PREC.
Infelizmente, o dito PREC deixara Portugal em ruínas e os militares no centro do regime político. O Presidente da República (Eanes) comandava efectivamente o exército. O Conselho da Revolução, sem espécie de mandato, aprovava ou desaprovava a legislação da Assembleia, com o propósito de preservar intacta a sua preciosa “revolução”. Mas Soares, Balsemão, Freitas do Amaral e Mota Pinto, entre si e contra algumas facções internas no PS e mesmo no PSD, acabaram por meter os militares nos quartéis, sem lhes deixar um vestígio de influência política.
Nesse ponto crítico, Eanes, a meses de sair de Belém, decidiu organizar um novo partido para ele e para os amigos: o PRD. Mas Soares, entretanto eleito Presidente da República, não o deixou viver. À primeira oportunidade dissolveu a Assembleia, sabendo perfeitamente que ia entregar uma maioria a Cavaco. E, de facto, entregou, porque o PRD juntava só o oportunismo e ressentimento e sem poder não valia um cêntimo. Soares viu desfilar os seus inimigos íntimos pela televisão. Mas ganhou. Ganhámos nós.
VPV
O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.
domingo, 22 de janeiro de 2017
sábado, 21 de janeiro de 2017
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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017
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terça-feira, 17 de janeiro de 2017
segunda-feira, 16 de janeiro de 2017
Mesmo num cenário decrépito e decadente, resistir, remar contra a corrente na busca de terra firme, não goza da simpatia do poder incompetente!
"A Economia do Hostel
Não se pode ter uma conversa sem ouvir “a minha ideia é fazer um hostel”. As pessoas desaguam na rara actividade económica que dá algum lucro. Para arredondarem os fins de mês e as pensões ou como modo de vida no desemprego. Enquanto durar o turismo, este é o resíduo de prosperidade que um sistema fiscal brutal e uma pobreza geral autorizam. Portugal não tem dinheiro. Não tem fluxos de capital nem stocks de capital. Não tem um sistema bancário funcional. Não tem um crescimento económico que assegure o pagamento da divida sem pedir mais emprestado. E não tem capacidade para sustentar o Estado social e a administração pública. Com o investimento público paralisado, os serviços públicos estão cm travão. Nos hospitais públicos falta equipamento, faltam medicamentos inovadores, faltam técnicos e as esperas são quilométricas sempre que há um surto de doenças de inverno. Os hospitais servem de asilo a velhos cujas famílias não têm meios de os cuidar. Na educação, basta averiguar a penúria das universidades e a sua incapacidade para renovar os quadros docentes e pagar salários decentes (existem jovens professores a trabalhar sem remuneração) para perceber a ginástica dos orçamentos e a falta de recursos financeiros que ditarão o envelhecimento e a degradação do ensino superior público. Dois e dois ainda não são cinco, embora às vezes pareça.
A máquina da justiça é o que é, incapaz de produzir uma acusação a tempo e horas e entregue à demagogia dos tabloides, corporativa e disfuncional. A rede de transportes públicos é desorganizada, obsoleta e controlada por sindicatos comunistas que resistem à mudança e determinam o calendário de trabalho com as greves.
O aeroporto de Lisboa mudou de nome mas não mudou de lugar e, atulhado de aviões, espera a hora da construção de um novo aeroporto para o qual não há dinheiro nem vai haver, a não ser que a Europa decida continuar a subsidiar-nos. Em compensação, a extensa rede de autoestradas, onde por cada cem metros construídos sobram uns trinta metros roubados, apresenta a sua esplendorosa desolação devido ao preço das portagens. Numa viagem ao Norte, pude apreciar autoestradas vazias e a dificuldade de lhes fugir visto que todos os caminhos da sinalética lá vão dar, como se as estradas nacionais se tivessem evaporado. A estrada nacional Lisboa-Porto está atulhada de camiões. No metro do Porto, o contrato dos swaps continua por resolver e talvez seja, como medisse um financeiro em Londres, cidade onde se julga a questão jurídica, o contrato mais estúpido que um Estado seria capaz de assinar. Responsáveis, para variar, não há, como na Caixa Geral de Depósitos, no BES/Novo Banco ou no Banif. A camarilha que manda nisto protege-se atrás dos partidos e só muda de poiso. Em Lisboa, a rede de transportes não tem racionalidade e a divida acumulada será paga pelos contribuintes. O Metro está decadente e é curto, servindo a periferia e não os habitantes e trabalhadores da cidade, a Carris circula vazia às horas de ponta no centro, os comboios da CP estão podres e os carros suburbanos enchem os cofres dos parques privados e da EMEL. A poluição e o congestionamento são insuportáveis, o ar na Avenida da Liberdade é irrespirável, e a Baixa e o centro histórico são, estranhamente, um ponto de escoamento. As mudanças na Avenida da Liberdade, inúteis, trouxeram mais carros para a cidade e afogaram as ruas paralelas de carros que tentam escapar. O Princípe Real, onde se vendem casinhas arruinadas a estrangeiros por dois milhões de euros, ou se fazem hostels, tem uma fila perpétua de carros, mesmo ao fim de semana. Cheira a gasolina queimada.
A austeridade obrigou a abandonar as preocupações ambientais, ou o magno problema da sustentabilidade, e não se vislumbra um traço de desígnio nesta área. A recolha de lixo em Lisboa é catastrófica, a limpeza das ruas é errática. A juntar a estes erros da capital, a mudança da divisão administrativa em freguesias apenas significou abandono e nula intervenção. Na minha rua, onde o lixo por recolher fica meses preso nas ervas daninhas nunca eliminadas, onde a iluminação pública está apagada, onde os pavimentos têm buracos e pedras da calçada espalhadas que fazem cair velhos e novos, onde o jardim é o jardim mais maltratado de Lisboa (estava impecável no tempo de João Soares, e nunca mais ficou assim), onde o estacionamento noturno é selvagem e onde os carros do lixo espalham mais lixo do que recolhem, a única beneficiação foram as riscas pintadas de fresco da EMEL, para recolher a multa, mais os pingos brancos no passeio. O amor pelos pavimentos do presidente da Câmara é um típico exemplo de micromanagement e falta de visão de conjunto que só beneficia os escolhidos da lotaria.
A enumeração de desastres continuava mas falta-me o espaço.
Se os ventos na Europa deixarem de soprar a nosso favor, como decerto acontecerá, estamos à mercê de uma miséria especulativa como nunca conhecemos. Restam-nos o hostel e a Uber, servindo a nossa vocação para servir."
Clara Ferreira Alves, in Expresso
Não se pode ter uma conversa sem ouvir “a minha ideia é fazer um hostel”. As pessoas desaguam na rara actividade económica que dá algum lucro. Para arredondarem os fins de mês e as pensões ou como modo de vida no desemprego. Enquanto durar o turismo, este é o resíduo de prosperidade que um sistema fiscal brutal e uma pobreza geral autorizam. Portugal não tem dinheiro. Não tem fluxos de capital nem stocks de capital. Não tem um sistema bancário funcional. Não tem um crescimento económico que assegure o pagamento da divida sem pedir mais emprestado. E não tem capacidade para sustentar o Estado social e a administração pública. Com o investimento público paralisado, os serviços públicos estão cm travão. Nos hospitais públicos falta equipamento, faltam medicamentos inovadores, faltam técnicos e as esperas são quilométricas sempre que há um surto de doenças de inverno. Os hospitais servem de asilo a velhos cujas famílias não têm meios de os cuidar. Na educação, basta averiguar a penúria das universidades e a sua incapacidade para renovar os quadros docentes e pagar salários decentes (existem jovens professores a trabalhar sem remuneração) para perceber a ginástica dos orçamentos e a falta de recursos financeiros que ditarão o envelhecimento e a degradação do ensino superior público. Dois e dois ainda não são cinco, embora às vezes pareça.
A máquina da justiça é o que é, incapaz de produzir uma acusação a tempo e horas e entregue à demagogia dos tabloides, corporativa e disfuncional. A rede de transportes públicos é desorganizada, obsoleta e controlada por sindicatos comunistas que resistem à mudança e determinam o calendário de trabalho com as greves.
O aeroporto de Lisboa mudou de nome mas não mudou de lugar e, atulhado de aviões, espera a hora da construção de um novo aeroporto para o qual não há dinheiro nem vai haver, a não ser que a Europa decida continuar a subsidiar-nos. Em compensação, a extensa rede de autoestradas, onde por cada cem metros construídos sobram uns trinta metros roubados, apresenta a sua esplendorosa desolação devido ao preço das portagens. Numa viagem ao Norte, pude apreciar autoestradas vazias e a dificuldade de lhes fugir visto que todos os caminhos da sinalética lá vão dar, como se as estradas nacionais se tivessem evaporado. A estrada nacional Lisboa-Porto está atulhada de camiões. No metro do Porto, o contrato dos swaps continua por resolver e talvez seja, como medisse um financeiro em Londres, cidade onde se julga a questão jurídica, o contrato mais estúpido que um Estado seria capaz de assinar. Responsáveis, para variar, não há, como na Caixa Geral de Depósitos, no BES/Novo Banco ou no Banif. A camarilha que manda nisto protege-se atrás dos partidos e só muda de poiso. Em Lisboa, a rede de transportes não tem racionalidade e a divida acumulada será paga pelos contribuintes. O Metro está decadente e é curto, servindo a periferia e não os habitantes e trabalhadores da cidade, a Carris circula vazia às horas de ponta no centro, os comboios da CP estão podres e os carros suburbanos enchem os cofres dos parques privados e da EMEL. A poluição e o congestionamento são insuportáveis, o ar na Avenida da Liberdade é irrespirável, e a Baixa e o centro histórico são, estranhamente, um ponto de escoamento. As mudanças na Avenida da Liberdade, inúteis, trouxeram mais carros para a cidade e afogaram as ruas paralelas de carros que tentam escapar. O Princípe Real, onde se vendem casinhas arruinadas a estrangeiros por dois milhões de euros, ou se fazem hostels, tem uma fila perpétua de carros, mesmo ao fim de semana. Cheira a gasolina queimada.
A austeridade obrigou a abandonar as preocupações ambientais, ou o magno problema da sustentabilidade, e não se vislumbra um traço de desígnio nesta área. A recolha de lixo em Lisboa é catastrófica, a limpeza das ruas é errática. A juntar a estes erros da capital, a mudança da divisão administrativa em freguesias apenas significou abandono e nula intervenção. Na minha rua, onde o lixo por recolher fica meses preso nas ervas daninhas nunca eliminadas, onde a iluminação pública está apagada, onde os pavimentos têm buracos e pedras da calçada espalhadas que fazem cair velhos e novos, onde o jardim é o jardim mais maltratado de Lisboa (estava impecável no tempo de João Soares, e nunca mais ficou assim), onde o estacionamento noturno é selvagem e onde os carros do lixo espalham mais lixo do que recolhem, a única beneficiação foram as riscas pintadas de fresco da EMEL, para recolher a multa, mais os pingos brancos no passeio. O amor pelos pavimentos do presidente da Câmara é um típico exemplo de micromanagement e falta de visão de conjunto que só beneficia os escolhidos da lotaria.
A enumeração de desastres continuava mas falta-me o espaço.
Se os ventos na Europa deixarem de soprar a nosso favor, como decerto acontecerá, estamos à mercê de uma miséria especulativa como nunca conhecemos. Restam-nos o hostel e a Uber, servindo a nossa vocação para servir."
Clara Ferreira Alves, in Expresso
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domingo, 15 de janeiro de 2017
sexta-feira, 13 de janeiro de 2017
Povos Europeus: os alemães e nós
"Isto não é uma fábula
Alemães e portugueses são muitas vezes como cães e gatos. Sei do que falo porque cresci numa família habitada por ambas as espécies animais. Isto não quer dizer que não se possam entender lindamente - ou pelo menos conviver sem se morder ou arranhar. Mas não é um exercício fácil. As falhas de comunicação estão programadas: quando o gato agita a cauda e o cão a abana, isso significa alegria ou, pelo contrário, agressão iminente. E o ruído que fazem, é um rosnar ou ronrom? O meu tio-avô de Munique quis um dia saber porque é que duas mulheres à janela em Lisboa, em lados opostos da rua, estavam tão zangadas. Expliquei-lhe que estavam só a estender a roupa e a pôr a conversa em dia.
As diferenças pouco têm que ver com economia, com um país ser rico ou pobre. Nesse aspeto a história dá muitas cambalhotas. Há cem anos, o meu bisavô emigrou de uma das zonas mais pobres da Europa. Era alemão e emigrou do Sul da Alemanha para Portugal em busca de uma vida melhor (hoje a zona de onde veio é das mais ricas do mundo e exporta carros, parafusos e máquinas entre centenas de outros produtos para o mundo inteiro).
Exatamente um século depois de o meu bisavô Fritz ter vindo para cá, emigrei eu para a Alemanha. Como vivo desde a nascença entre as duas culturas, não tive de ir com uma esfregona às costas limpar corredores em hospitais alemães ou conduzir um táxi. Pude trabalhar como jornalista e autor para duas editoras em Frankfurt e Berlim. Mas o melhor momento foi o do regresso a Portugal. Nada como falar com pessoas que sorriem e que, quando nos tocam à porta, não é para se queixarem do barulho das crianças, mas para trazer um pratinho com pastéis de bacalhau acabados de fazer.
Nos últimos três anos na Alemanha irritava-me a forma como Portugal era retratado. Em primeiro lugar, a maioria dos alemães pensa que as pessoas de Arcos de Valdevez a São Brás de Alportel andam de manhã à noite em elétricos amarelos. À exceção dos dias santos, quando imaginam os portugueses a pé ou de joelhos a caminho de Fátima. Um dos maiores diários alemães escreveu na primeira página que não se podia esperar muito de um país cuja gastronomia se limitava a sardinhas e bacalhau. Fiquei a espumar de raiva, porque sei como é desinteressante a alimentação alemã no dia-a-dia e como é rica a cozinha portuguesa a cada esquina. E, claro, não há reportagem ou documentário sobre Portugal que não ponha como música de fundo um fado lamechas ou, no melhor dos casos, o som de sofrimento dos Madredeus. A revista semanal alemã mais lida passou os últimos anos a retratar Portugal como um país de gente irresponsável pela forma como se endividou.
Quem na Alemanha se queixa do endividamento "irresponsável" dos portugueses esquece o elementar. Irresponsável foi, para começar, a forma como os bancos alemães, ao longo da última década e meia, forneceram aos bancos portugueses centenas de milhares de milhões. Os mesmos bancos alemães que, na Alemanha, só emprestam dinheiro para comprar casa a quem tem uma situação estável e um pé-de-meia razoável, disponibilizaram rios de dinheiro aos bancos portugueses, que, por sua vez, concediam créditos a jovens, com 100% de financiamento e a 50 anos. O dinheiro tem o efeito psicológico de uma droga, o que leva à questão: a culpa é do traficante que fornece a droga ou do viciado, após uma lavagem ao cérebro de anos para contrair empréstimos? Depois, Berlim aprovou para Portugal aquilo a que a comunicação social alemã refere sempre como "pacotes de ajuda" e "ajuda monetárias", como se fosse um plano de auxílio humanitário. É dar gato por lebre: de facto, a política ditada por Berlim limita-se a asfixiar os devedores e indiretamente a injetar dinheiro na banca portuguesa, para que os credores, os bancos alemães, não fiquem entalados. Falhas de comunicação: cães a rosnar e gatos a agitar perigosamente a cauda.
É bom os animais entenderem--se, mas o pastor-alemão está a deixar o lince-ibérico assanhado."
Miguel Szymanski, Correspondente do semanário Der Freitag e do Canal N-24, in DN de 12.01.2017
Alemães e portugueses são muitas vezes como cães e gatos. Sei do que falo porque cresci numa família habitada por ambas as espécies animais. Isto não quer dizer que não se possam entender lindamente - ou pelo menos conviver sem se morder ou arranhar. Mas não é um exercício fácil. As falhas de comunicação estão programadas: quando o gato agita a cauda e o cão a abana, isso significa alegria ou, pelo contrário, agressão iminente. E o ruído que fazem, é um rosnar ou ronrom? O meu tio-avô de Munique quis um dia saber porque é que duas mulheres à janela em Lisboa, em lados opostos da rua, estavam tão zangadas. Expliquei-lhe que estavam só a estender a roupa e a pôr a conversa em dia.
As diferenças pouco têm que ver com economia, com um país ser rico ou pobre. Nesse aspeto a história dá muitas cambalhotas. Há cem anos, o meu bisavô emigrou de uma das zonas mais pobres da Europa. Era alemão e emigrou do Sul da Alemanha para Portugal em busca de uma vida melhor (hoje a zona de onde veio é das mais ricas do mundo e exporta carros, parafusos e máquinas entre centenas de outros produtos para o mundo inteiro).
Exatamente um século depois de o meu bisavô Fritz ter vindo para cá, emigrei eu para a Alemanha. Como vivo desde a nascença entre as duas culturas, não tive de ir com uma esfregona às costas limpar corredores em hospitais alemães ou conduzir um táxi. Pude trabalhar como jornalista e autor para duas editoras em Frankfurt e Berlim. Mas o melhor momento foi o do regresso a Portugal. Nada como falar com pessoas que sorriem e que, quando nos tocam à porta, não é para se queixarem do barulho das crianças, mas para trazer um pratinho com pastéis de bacalhau acabados de fazer.
Nos últimos três anos na Alemanha irritava-me a forma como Portugal era retratado. Em primeiro lugar, a maioria dos alemães pensa que as pessoas de Arcos de Valdevez a São Brás de Alportel andam de manhã à noite em elétricos amarelos. À exceção dos dias santos, quando imaginam os portugueses a pé ou de joelhos a caminho de Fátima. Um dos maiores diários alemães escreveu na primeira página que não se podia esperar muito de um país cuja gastronomia se limitava a sardinhas e bacalhau. Fiquei a espumar de raiva, porque sei como é desinteressante a alimentação alemã no dia-a-dia e como é rica a cozinha portuguesa a cada esquina. E, claro, não há reportagem ou documentário sobre Portugal que não ponha como música de fundo um fado lamechas ou, no melhor dos casos, o som de sofrimento dos Madredeus. A revista semanal alemã mais lida passou os últimos anos a retratar Portugal como um país de gente irresponsável pela forma como se endividou.
Quem na Alemanha se queixa do endividamento "irresponsável" dos portugueses esquece o elementar. Irresponsável foi, para começar, a forma como os bancos alemães, ao longo da última década e meia, forneceram aos bancos portugueses centenas de milhares de milhões. Os mesmos bancos alemães que, na Alemanha, só emprestam dinheiro para comprar casa a quem tem uma situação estável e um pé-de-meia razoável, disponibilizaram rios de dinheiro aos bancos portugueses, que, por sua vez, concediam créditos a jovens, com 100% de financiamento e a 50 anos. O dinheiro tem o efeito psicológico de uma droga, o que leva à questão: a culpa é do traficante que fornece a droga ou do viciado, após uma lavagem ao cérebro de anos para contrair empréstimos? Depois, Berlim aprovou para Portugal aquilo a que a comunicação social alemã refere sempre como "pacotes de ajuda" e "ajuda monetárias", como se fosse um plano de auxílio humanitário. É dar gato por lebre: de facto, a política ditada por Berlim limita-se a asfixiar os devedores e indiretamente a injetar dinheiro na banca portuguesa, para que os credores, os bancos alemães, não fiquem entalados. Falhas de comunicação: cães a rosnar e gatos a agitar perigosamente a cauda.
É bom os animais entenderem--se, mas o pastor-alemão está a deixar o lince-ibérico assanhado."
Miguel Szymanski, Correspondente do semanário Der Freitag e do Canal N-24, in DN de 12.01.2017
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segunda-feira, 9 de janeiro de 2017
domingo, 8 de janeiro de 2017
sábado, 7 de janeiro de 2017
Coisas que o mundo inteiro deveria aprender com Portugal por Ruth Manus (blog no Estado de São Paulo)
26/11/2016, 13:39
Portugal é um país muito mais equilibrado do que a média e é muito maior do que parece. Acho que o mundo seria melhor se fosse um pouquinho mais parecido com Portugal.
Dentre as coisas que mais detesto, duas podem ser destacadas: ingratidão e pessimismo. Sou incuravelmente grata e otimista e, comemorando quase 2 anos em Lisboa, sinto que devo a Portugal o reconhecimento de coisas incríveis que existem aqui- embora pareça-me que muitos nem percebam.
Não estou dizendo que Portugal seja perfeito. Nenhum lugar é. Nem os portugueses são, nem os brasileiros, nem os alemães, nem ninguém. Mas para olharmos defeitos e pontos negativos basta abrir qualquer jornal, como fazemos diariamente. Mas acredito que Portugal tenha certas características nas quais o mundo inteiro deveria inspirar-se.
Para começo de conversa, o mundo deveria aprender a cozinhar com os portugueses. Os franceses aprenderiam que aqueles pratos com porções minúsculas não alegram ninguém. Os alemães descobririam outros acompanhamentos além da batata. Os ingleses aprenderiam tudo do zero. Bacalhau e pastel de nata? Não. Estamos falando de muito mais. Arroz de pato, arroz de polvo, alheira, peixe fresco grelhado, ameijoas, plumas de porco preto, grelos salteados, arroz de tomate, baba de camelo, arroz doce, bolo de bolacha, ovos moles.
Mais do que isso, o mundo deveria aprender a se relacionar com a terra como os portugueses se relacionam. Conhecer a época das cerejas, das castanhas e da vindima. Saber que o porco é alentejano, que o vinho é do douro. Talvez o pequeno território permita que os portugueses conheçam melhor o trajeto dos alimentos até a sua mesa, diferente do que ocorre, por exemplo, no Brasil.
O mundo deveria saber ligar a terra à família e à história como os portugueses. A história da quinta do avô, as origens trasmontanas da família, as receitas típicas da aldeia onde nasceu a avó. O mundo não deveria deixar o passado escoar tão rapidamente por entre os dedos. E se alguns dizem que Portugal vive do passado, eu tenho certeza de que é isso o que os faz ter raízes tão fundas e fortes.
O mundo deveria ter o balanço entre a rigidez e a afeto que têm os portugueses.
De nada adiantam a simpatia e o carisma brasileiros se eles nos impedem de agir com a seriedade e a firmeza que determinados assuntos exigem. O deputado Jair Bolsonaro, que defende ideias piores que as de Donald Trump, emergiu como piada e hoje se fortalece como descuido no nosso cenário político. Nem Bolsonaro nem Trump passariam em Portugal. Os portugueses- de direita ou de esquerda- não riem desse tipo de figura, nem permitem que elas floresçam.
Ao mesmo tempo, de nada adianta o rigor japonês que acaba em suicídio, nem a frieza nórdica que resulta na ausência de vínculos. Os portugueses são dos poucos povos que sabem dosar rigidez e afeto, acidez e doçura, buscando sempre a medida correta de cada elemento, ainda que de forma inconsciente.
Todo país do mundo deveria ter uma data como o 25 de abril para celebrar. Se o Brasil tivesse definido uma data para celebrar o fim da ditadura, talvez não observássemos com tanta dor a fragilidade da nossa democracia. Todo país deveria fixar o que é passado e o que é futuro através de datas como essa.
Todo idioma deveria carregar afeto nas palavras corriqueiras como o português de Portugal carrega. Gosto de ser chamada de miúda. Gosto de ver os meninos brincando e ouvir seus pais chama-los carinhosamente de putos. Gosto do uso constante de diminutivos. Gosto de ouvir “magoei-te?” quando alguém pisa no meu pé. Gosto do uso das palavras de forma doce.
O mundo deveria aprender a ter modéstia como os portugueses -embora os portugueses devessem ter mais orgulho desse país do que costumam ter. Portugal usa suas melhores características para aproximar as pessoas, não para afastá-las. A arrogância que impera em tantos países europeus, passa bem longe dos portugueses.
O mundo deveria saber olhar para dentro e para fora como Portugal sabe. Portugal não vive centrado em si próprio como fazem os franceses e os norte americanos. Por outro lado, não ignora importantes questões internas, priorizando o que vem de fora, como ocorre com tantos países colonizados.
Portugal é um país muito mais equilibrado do que a média e é muito maior do que parece. Acho que o mundo seria melhor se fosse um pouquinho mais parecido com Portugal. Essa sorte, pelo menos, nós brasileiros tivemos.
Ruth Manus é advogada e professora universitária e assina um blogue no Estado de São Paulo, Retratos e relatos do cotidiano
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