O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Armação de Pera: depois da tempestada vem a bonança, mas...

As previsões apontam para que estas situações se repitam no futuro, com maior frequência e com mais intensidade.
Devemos continuar a insistir na ocupação da orla costeira, como o temos feito até agora?

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Um pouco mais sobre Mandela...nunca é demais!


Por Joana Gorjao Henriques, in "Público", 6/12/2013



Quando estava na prisão, Mandela percebeu que se tivesse frio não ia adiantar escrever uma carta ao director a queixar-se; a única pessoa que lhe poderia trazer um cobertor seria o responsável pela secção da cela onde estava. Por isso, precisava de dialogar com os carcereiros.

A história foi contada pelo próprio Mandela ao jornalista sul-africano Allister Sparks, ex-director do Rand Daily Mail, e mais tarde correspondente dos jornais The Washington Post e The Observer.

“Mandela começou a conhecer os carcereiros e soube que eram muito mal pagos, não tinham estudos, tendiam a ter dificuldades e como era advogado ajudou-os, deu-lhes conselhos de borla”, conta-nos a partir da África do Sul o autor de vários livros, como The Mind of South Africa (1991) ou Beyond the Miracle: Inside the New South Africa (2006). “Ganhou a confiança deles, conseguiu saber por que é que tinham tanto medo dos negros sul-africanos e porque eram tão violentos. Percebeu que eles tinham medo: medo do número de negros, de que a maioria negra tomasse conta do poder e de que eles, brancos, fossem os primeiros a perder o emprego e a sofrer” — e conhecê-los era conhecer também muitos outros brancos sul-africanos.

Sparks foi nomeado em 1995 por Nelson Mandela para o conselho da South African Broadcasting Corporation, tornou-se o director de informação da estação em 1997, e conviveu com ele de perto. Usa a história do cobertor para chegar ao osso do que pensa ter sido o legado de um homem que teve um papel decisivo no fim de uma segregação racial de 46 anos (de 1948 a 1994 — oficialmente, com as primeiras eleições multiraciais). “A sua contribuição para a negociação de acordos foi esta capacidade de perceber a psicologia daqueles contra quem se estava a insurgir e depois encontrar um meio de anular o factor que estava a bloquear o acordo” – o medo. E repete: “A sua importância no movimento pelos direitos civis é isto, tem que se entender a psicologia do inimigo, das pessoas que estão a oprimir-nos e perceber: porque estão a oprimir-nos? Porque tendem a tornar-se violentos?”

A “estratégia do cobertor”, chamemos-lhe assim, serviu-lhe então depois nos tempos de liberdade. Desenvolvendo a capacidade de se colocar no lugar dos outros e de empatizar com eles, fez “gestos simples”, segundo Sparks, cheios de simbolismo. Nisso tornou-se “muito habilidoso”. Por exemplo, decidiu ir tomar chá com Betsie Schoombie, a viúva de um dos homens por detrás da ideologia do apartheid, Hendrik Verwoerd, primeiro-ministro entre 1958 e 1966. “Visitou-a, e tornou o facto público”, sublinhado que não temia perdoá-los em nome do sucesso da paz, mesmo depois dos 27 anos passados na prisão, de onde não saiu com rancor ou amargura em 1990. Outro exemplo da estratégia do cobertor: “Chamou todos os generais da minoria branca e disse-lhes: ‘Eu nunca poderei derrubar-vos, mas vocês nunca nos conseguirão matar a todos. É melhor entendermo-nos: eu mantenho-vos nos vossos postos mas é preciso ter generais negros também’.”

Mandela, o primeiro presidente negro da África do Sul, é o homem dos gestos. Não é apenas o jornalista sul-africano quem nos fala deles. Ao contrário do que aconteceu em outros casos, quando chegou ao poder em 1994 não propôs uma política de expulsão da minoria branca, lembra o italiano Livio Sansone, do departamento de Antropologia e Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia, a viver no Brasil há décadas. E, mais uma vez, soube utilizar “a política da cor” de forma inteligente, acrescenta-nos numa conversa por Skype a partir da Europa. Outro momento decisivo: quando quis manter um serviço de segurança composto por brancos. “O que foi simbólico: um presidente negro andar com um monte de polícias brancos… Ele era genial nesse aspecto. Manteve os seguranças brancos para mostrar que não tirava os brancos dos cargos deles.”

Na memória de Sílvio Humberto, economista, professor e fundador do Instituto Steve Biko (nome de um activista sul-africano da luta contra o apartheid), ficou também a perseverança de um líder que demonstrou ao mundo que era possível “equilibrar a arte de fazer política com as agruras do racismo”. “Uma das primeiras coisas com que o racismo acaba é com a humanidade e fica difícil restabelecer o diálogo com alguém que não te considera humano. Mandela conseguiu equilibrar as duas coisas, fazer a transição na África do Sul e saber o momento exacto de sair e de não se perpetuar no poder.” O também vereador da cidade de Salvador repete-nos a imagem dos “gestos”: “Ele deu uma lição de fazer política com o seu exemplo, com o seu gesto. É o gesto de quem tem a mão aberta, e está disposto a estender a mão ao outro em prole da África do Sul”. E não menos importante: só saiu da prisão quando “pôde lutar de igual para igual, com dignidade”.

Por isso, como diz Sparks, a África do Sul “adora-o”. “É um tesouro nacional, adorado por todas as raças no país”.

A luta armada
Mas Mandela passou por diversas fases na sua vida, nem todas tão conciliatórias quanto a imagem que ficou do Nobel da Paz dos últimos anos. Quando era novo, formou a ala militar do ANC (Spear of the Nation, abreviado MK). Não iria conseguir vencer uma luta por meios pacíficos, defendia. Gandhi tinha lançado a sua carreira política na África do Sul, e a sua postura era a de resistência passiva. “Mandela, na fase inicial, decidiu que enquanto se está a enfrentar um regime que usa armas não se podem usar meios pacíficos”, sublinha Sparks. “Mais tarde mudou a sua perspectiva, embora nunca abandonasse a estratégia militar. Enquanto estava na prisão percebeu que o braço armado que fundou podia ser um factor importante num acordo de negociação.”

Por outro lado, o não abdicar da luta armada foi um risco, porque poderia eventualmente desencadear uma guerra civil, lembra-nos em conversa telefónica o jornalista sul-africano Mondli Makhanya, antigo director do The Sunday Times sul-africano.

Durante as negociações com o então presidente Frederik Willem de Klerk, com quem chegou ao fim do apartheid, Mandela disse que ele era um homem íntegro, apesar de pertencer ao Partido Nacional, e “isso deu-lhe poder”. “Teve a visão para olhar além do imediato, e de dar um passo em direcção ao outro lado. Não tenho a certeza de que qualquer outro líder tenha sido capaz de dar esse passo e de tomar os riscos que ele tomou para convencer toda a gente. É uma qualidade fantástica.”

Outras qualidades, como líder: ser “muito firme”, diz Makhanya. Mas a coisa mais importante: “a sua humildade”. Isso vem do facto de Mandela não se colocar no lugar de quem dá ordens, mas de fazer a outra pessoa sentir que era tão importante quanto ele: “Podia relacionar-se com presidentes da mesma forma que se relacionava com as pessoas da rua.” Depois de ter saído da prisão e fazê-lo determinado a unir o país, Mandela não teve apenas uma liderança forte. Teve disponibilidade para perdoar, para deixar o passado para trás, e disse ainda aos sul-africanos que não deviam temer a democracia, acrescenta.

O milagre da sobrevivência
Esta capacidade invulgar de comunicação e de empatia tornou-o um símbolo, não apenas para negros mas para todos. Acima de tudo, diz Makhanya, Mandela lutou pela igualdade e pelos direitos humanos. Daí que este jornalista afirme: “Mandela não nos pertence, pertence ao mundo, é o nosso Mandela mas é também o Mandela do mundo”.

Mandela é do mundo, e seria influenciado também por outros activistas do mundo. O historiador americano Clayborne Carson, escolhido pela família de Martin Luther King para editar e publicar os seus escritos, reconhece nele as influências do activista norte-americano no qual se especializou. A partir da Califórnia, Carson fala-nos da inspiração do boicote de Montgomery — em 1955, Rosa Parks recusou dar o seu lugar a um branco no autocarro (como era a regra) e desencadeou o movimento dos direitos civis liderado por King, o que levou ao fim da segregação racial nos EUA. “Na altura havia semelhanças entre as lutas nos Estados Unidos e na África do Sul”, lembra o também fundador do Instituto Martin Luther King na Universidade de Stanford, onde ensina. Aliás, quando foi aos EUA Mandela quis conhecer Rosa Parks. “Sei que ficou muito comovido, porque a via como uma pessoa crucial na luta dos afro-americanos”.

Nos anos 1980 a luta contra o apartheid foi apoiada pelos afro-americanos, que fizeram protestos à porta da embaixada sul-africana em Washington D.C. e pressão para que Ronald Reagan, então presidente, adoptasse medidas contra a África do Sul, recorda. E, curiosamente, “o maior protesto em Stanford não foi nos anos 1960 mas nos 1980 contra o apartheid”, diz. “Os americanos viam Mandela como líder, mas ele estava na prisão. Conheceram-no melhor depois quando saiu.”
Nos EUA Mandela é visto como alguém que fez uma “extensão internacional dos princípios de Martin Luther King” — e esses princípios são o de “um longo e paciente sofrimento”, completa Henry Gates, famoso especialista em estudos afro-americanos, professor na Universidade de Harvard. Quem sabe definir carisma, questiona retoricamente ao telefone de Cambridge, EUA, quando lhe falamos das suas características como líder. “A diferença entre King e Mandela é que nunca ninguém sonhou que King iria emergir como Presidente dos EUA e isto é diferente. Aqui nos EUA a acção política era mais um movimento moral, baseado em objecção de consciência e na tentativa de converter as cabeças e os corações dos cidadãos; no caso de Mandela foi um golpe, a tentativa de suplantar um partido por outro, e por isso resistiram tão violentamente.”

Mandela nunca desistiu nem capitulou, diz o também autor de vários programas de televisão. Sobreviveu aos anos na prisão e depois “apareceu como se fosse ontem!”, lembra entusiasmado. “Todos celebrámos este homem que era um super-homem.”

Gates guarda um poster original da primeira campanha política de Mandela, para o qual olha todos os dias quando acorda. Quando ele foi libertado da prisão, levou as filhas a assistir ao momento pela TV. “Na história ocidental dos negros nada é mais importante do que a sua sobrevivência e a eleição como presidente porque é um triunfo tão grande de uma oposição negra ao poder dominante”, diz. Não é por acaso que o professor fala em “sobrevivência”, como se tivesse sido um milagre. Nos EUA todos os grandes líderes do movimento dos direitos civis foram mortos: J.F. Kennedy, Malcolm X, o próprio Dr. King, como os americanos lhe chamam. “Mandela sobreviveu e dirigiu um país, é um milagre entre os negros.”

Optimismo e cor da riqueza
Não é como milagre que o sociólogo Éric Fassin, professor na École Normale Supérieure de Paris e especialista em temas raciais, define o legado de Mandela. Mas quase. A lição a tirar do papel de Mandela como activista pelos direitos civis resume-se numa palavra: “Optimismo”. Optimismo porque transmite a esperança, a quem está do lado do perdedor durante anos, de que pode um dia ganhar, diz-nos entre as aulas em Paris: “Aquilo que parecia ser algo que ia continuar para sempre — o apartheid — acabou. Mandela foi libertado e depois tornou-se presidente. A ideia de que, quando se está a perder, o impensável pode tornar-se viável é aplicável a todo o tipo de movimentos sociais e todas as situações. Pensemos no que se passa em Israel.”

Na África do Sul, ao mesmo tempo que se lutava pelo fim do apartheid, outro movimento favorecia o separatismo negro, lembra Clayborne Carson. O que Mandela conseguiu foi não fazer do fim do apartheid “uma luta de negros contra brancos mas de brancos e negros a ultrapassarem as injustiças juntos”, algo que lhe garante ainda admiração única. “Mandela e o ANC eram consistentes a defender uma África do Sul multirracial.” Carson não tem dúvidas de que Mandela “será lembrado, ao lado de King e de Ghandi, como um dos três grandes nomes da liberdade humana e dos direitos humanos do século XX”.

Aí está, então, uma segunda razão para Éric Fassin usar a palavra “optimismo”: a luta pelo fim do apartheid foi uma batalha racial, mas as expectativas eram de que iria haver uma batalha de sangue, só que isso não aconteceu. Moral da história: “Nem todas as revoluções precisam de se transformar em sangue ou numa ditadura. O exemplo que Mandela deu foi que o impensável acontece e que a nação arco-íris até certo ponto funcionou. Não significa que o racismo desapareceu, não sou naïf, mas significa que África do Sul pode ultrapassar isto.”

O país após o apartheid
Se a admiração pelo Mandela dos tempos da luta na prisão contra o apartheid é quase geral, já a sua postura enquanto presidente da África do Sul e o seu lado conciliatório é menos consensual.

O “grande exemplo, brutal,” de alguém “tenaz, que falava muito na construção e apontava para o futuro” do Mandela da fase inicial ficou aquém das expectativas na fase posterior para o português Nuno Santos, sociólogo, conhecido como rapper Chullage e à frente de duas associações activistas, a Plataforma Gueto e a Khapaz. Envolvido com outros movimentos internacionais pela igualdade racial, e leitor de blogues de autores sul-africanos que andam na casa dos 30 anos, Nuno Santos fala de uma África do Sul onde formalmente a segregação racial acabou, mas onde na prática continuam a existir desigualdades entre brancos e negros. Há hoje uma burguesia negra sul-africana, mas “o acesso aos empregos”, por exemplo, “continua a ser altamente racializado”, as condições de vida melhoraram num par de cidades e no resto do país ainda há muitos que precisam de andar horas para buscar água potável e trabalham em “condições obscenas”, exemplifica.

O sul-africano Mondli Makhanya contextualiza: os problemas raciais na África do Sul agora são muito diferentes de há 20 anos. O que Mandela conseguiu durante os cinco anos em que esteve na presidência (1994-1999) foi “algo extraordinário”: “Mudou as condições de vida de muita gente, havia pessoas que não tinham electricidade, novas casas foram construídas para quem vivia em bairros de lata, muitos passaram a ter água potável”. Mas: “Há muita coisa a fazer.” Não há separação racial nas escolas, nos bares, nos autocarros, “as pessoas relacionam-se umas com as outras, ultrapassou-se a barreira da cor”, e isso deve-se, considera, ao que Mandela fez durante o seu mandato: “a reconciliação, reconstrução da nação”. A nível económico confirma as informações que Nuno Santos vai recebendo da sua rede: “A maior parte do dinheiro está em mãos brancas, a classe média é predominante branca e os pobres são negros. A maioria ainda vê a cor da riqueza como branca, e a cor da pobreza como negra. Isso afecta as relações, porque as pessoas pensam: ‘Para que serve a liberdade, se não há liberdade económica?’” Para ele, “o grande desafio de agora é passar da reconciliação para um equilíbrio económico.”

O herói do meio
O filósofo alemão Hans Magnus Enzensberger descreveu Mandela como “o herói do meio” e é assim que Livio Sansone o gosta de ver. Porque tanto ele como Frederik De Klerk tiveram “a coragem de fazer um acordo contra a maioria da vontade do povo”. Havia na África do Sul quem quisesse um ajuste de contas racial, e ambos “fizeram com que isso não acontecesse. É um símbolo importante.” Depois Mandela teve ainda a coragem de se “auto-exilar” — sair da política — e dizer: “‘Fiz a minha luta, agora deixo espaço para os outros’. Há poucos como ele”, conclui Sansone.

Herança e legado de Mandela como líder activista pelos direitos civis? A crença de que “é possível ter uma sociedade em que a diversidade não é considerada como problema mas como valor, um valor que tem que ser exercitado diariamente porque o racismo tem muitas armadilhas e sabemos que, às vezes, mudam-se as leis mas não a cabeça”, diz Sílvio Humberto. “É o que ele defendeu: se você é educado para odiar também pode ser educado para amar.”

Resultado de um momento catártico, ícone de um sofrimento colectivo de centenas de anos, ele era único, diz Sansone. Não haverá um segundo Mandela, considera, porque ele é produto de um tempo. Foi, como lhe chama, “o sonho colectivo de muitos”, porque o resto do mundo também estava empenhado em abolir o apartheid, “algo muito injusto e anti-histórico”. Uma personagem charmosa, sedutora, meiga, Mandela é ainda “um pouco um santo”. Não tem dúvidas: “Não vejo no horizonte um líder tão charmoso quanto Mandela.”

No fundo, a estratégia “do cobertor” pode ter sido eficaz, mas teve menos de estratégia no sentido cínico do termo, e mais de autenticidade. Allister Sparks lembra a singularidade do sucesso de Mandela em direcção aos opositores: “Projectava uma personalidade muito humana e calorosa até para os inimigos. Ele fazia-o de forma muito honesta. Esses gestos nunca pareciam falsos.”

domingo, 29 de dezembro de 2013

A última crónica

Por Rui Moreira, Publicado in Jornal de notícias em 2013-03-31



Nos últimos tempos, volta-se a falar de reindustrialização, e surgiram estudos e inúmeras opiniões sobre um assunto que é caro a toda a Europa. É um objetivo difícil de alcançar, no atual quadro europeu, e com as regras em vigor no comércio internacional. Principalmente em países como o nosso, onde a aposta foi diferente desde a adesão.

Por cá, ouvem-se especialistas, que nos explicam o que fazer, e como o fazer. Escutamos os políticos, que agora defendem a ressurreição de um modelo que ajudaram a condenar. O consenso é, por vezes, patético, quando é feito de lugares comuns e de meras intenções. E, por isso, a reindustrialização corre o risco de ser um segundo "cluster do mar", defendido pelos seus antigos coveiros, e por românticos bem-intencionados que não conhecem a realidade.

Portugal precisa de ser autossuficiente, tem de exportar mais e de substituir as importações, equilibrando o défice externo e criando emprego. Algo que só é possível com políticas transversais, que também tenham impacto no setor primário e nos serviços.

Para que isso seja possível, o país tem de favorecer o investimento privado, de promover a produtividade, de aumentar a competitividade. Não nos iludamos, contudo. Com uma moeda forte, num continente vulnerável ao dumping internacional, com a economia nacional em recessão, com custos de contexto elevados por influência dos setores não transacionáveis que escapam às regras da sã concorrência, suportando o sobrepeso do Estado, pagando uma taxa de juro muito mais alta do que os nossos vizinhos, não dispondo de matérias-primas, não podemos contar com milagres.

Antes de mais, é preciso conquistar a confiança dos investidores, sejam eles nacionais ou estrangeiros. Isso passa, por exemplo, por colocar um ponto final nas imponderabilidades legal e fiscal. Qualquer investidor sabe que corre todos os riscos inerentes ao seu negócio, mas não aceita estar à mercê de outros fatores imponderáveis. Não escolherá investir num país onde a justiça é morosa e, pior do que isso, improvável, ou onde há uma ameaça permanente de alterações fiscais que não podem ser precavidas.

O Estado que temos representa, em função da riqueza que geramos, um pesado fardo que resulta em custos de contexto elevados. E, não podendo ser mais barato, terá de ser mais eficiente, muito mais eficiente, nomeadamente na aplicação da Justiça, na desburocratização e na regulação. Quanto ao investimento público e às políticas de fomento ao investimento privado, exige-se que o Estado seja parcimonioso, alocando os recursos escassos de acordo com critérios que concorram para o objetivo anunciado, dando preferência aos investimentos que têm efeitos multiplicadores na economia, invertendo a sua política centralizadora que prejudica as regiões que mais exportam e cujo tecido empresarial é mais resiliente. A criação de um ambiente favorável ao investimento não depende, ainda assim, exclusivamente do Estado Central. As cidades e as áreas metropolitanas dispõem, também elas, de instrumentos que podem ajudar a construir esse ambiente, fomentando a articulação interinstitucional, ligando a estratégia de atração de investimento à inovação, ao empreendedorismo e à regeneração urbana e social.

Tal como o Estado Central, também as autarquias necessitam de ser consequentes na alocação de recursos. Esse tema justificaria, só por si, uma outra crónica.

Sucede que esta é a minha última crónica neste jornal. Vou-me dedicar por inteiro a um projeto sobre o qual, por razões de ética e decência, nunca escrevi nesta coluna. Agradeço ao Jornal de Notícias por me ter concedido este espaço; a si, caro leitor, por me ter lido.

sábado, 28 de dezembro de 2013

A honra perdida de Cristhine Lagarde


Por Eduardo Pais Ferreira in jornal de Negócios em 17/12/2013

No passado fim-de-semana, em Sevilha, três cidadãos espanhóis, três cidadãos europeus, morreram em virtude de terem ingerido alimentos fora do prazo de validade. Com o pai sem emprego, viviam desde o início da crise a recolher cartões e outros restos pelas ruas, alimentando-se, basicamente, de comida, cujo prazo de validade fora ultrapassado e lhes era oferecida.

Estes três cidadãos não são os primeiros a morrer na sequência da crise económica e das políticas que a iriam permitir ultrapassar e que foram postas em prática há três anos. As ondas de suicídios na Grécia e Itália ainda estão presentes. A austeridade, que iria salvar a Europa, afinal mata.

Entre suicídios, mortes por subnutrição, crescimento de doenças como a tuberculose, depressões graves e aumento drástico do alcoolismo, aquilo que para muito são efeitos colaterais da crise a que não importa prestar atenção, vão-se sucedendo nos países sujeitos a ferozes medidas "austeritárias". Em, The Body Economis; Why AusterityKills, David Stuckler and Sanjay Basu, analisam o fenómeno com rigor e paixão em simultâneo.

A política de austeridade, acompanhada do seu cortejo de efeitos na saúde, no desemprego, na degradação dos serviços sociais, no aumento da pobreza, na destruição da classe média, na abrupta regressão do Produto Interno Bruto e, em termos mais gerais, por um impensável retrocesso civilizacional e social, tem sido o esteio mais visível daquilo que o Papa Francisco chama a política da exclusão.

O insucesso dessas políticas, ainda que mascarado com efémeras notícias de ligeiras melhorias dos pacientes e, agora, com o anunciado sucesso do fim do programa de apoio à Irlanda, deveria ter levado há muito ao seu abandono, não fossem elas ideias zombie, como lhes chama John Quincy, isto são ideias que, mesmo depois de mortas, continuam a aparecer.

De facto, ao longo destes anos, não surgiram quaisquer estudos científicos a fundamentar a política de austeridade e aqueles que tinham constituído os pilares sagrados – os estudos de Kenneth Rogoff – Carmen Reinhrdt e de Alessina e outros "Boconni boys" - foram perdendo a credibilidade científica.

Ao mesmo tempo, um conjunto de obras como o já citado The Body Economics, The Debtors Prision. Austerity versus Possibility, de Robert Kutzner e, sobretudo, Austerity. The Stoty of a Dangerous Idea de Mark Blyth vieram demonstrar o absurdo de uma política auto-lesiva que apenas conduz os países a situações cada vez mais difíceis.

Um grupo de autores tão prestigiados como Joseph Stiglitz, Paul Krugman, Robert Skideslky, Paul de Grawe ou Martin Wolf têm sido infatigáveis no seu labor e na crítica aos governos que, como afirmou, em Lisboa, De Grawe se esforçaram por ganhar o concurso de beleza da austeridade.

A austeridade a nível europeu tem tido, como sabemos, como mandantes implacáveis, a Comissão Europeia, a Alemanha e mais alguns países nórdicos, por um lado e o Fundo Monetário Internacional. Já quanto ao terceiro elemento da troika – o BCE - se não é visível o seu distanciamento no terreno, não se pode esquecer que foi Mario Draghi quem realmente salvou o euro, abandonando a ortodoxia de Trichet que, alegremente, conduzira a Europa pelas rotas do Titanic.

Impressiona, especialmente, pensar que a União Europeia – suposta de assentar numa união económica e política de um conjunto alargado de países – tenha defendido um política de igual sentido para todos eles sem perceber que o esforço de austeridade simultâneo em países em boa e má situação era um exercício totalmente errado. Uma daquelas ideias que um qualquer estudante de economia de um primeiro ano de um faculdade não amarrada a preconceitos ideológicos, rapidamente compreenderia e se esse estudante fosse, um pouco mais cínico, diria mesmo É a ideologia estúpido.

Os programas de assistência financeira – extremamente semelhantes, aliás, no seu desenho, ainda que nalguns casos objecto de negociação mais firme por parte de alguns governos, retomaram, de facto, o consenso de Washington, fortemente marcado por um neo-liberalismo e condicionados, ainda por cima, pela impossibilidade de recurso ao instrumento cambial, aproximaram-se perigosamente do "liquidacionismo" com que Andrew Mellon quis resolver a Grande Depressão. Liquidar as empresas, liquidar os trabalhadores, liquidar..., para depois construir um admirável mundo novo.

A influência do Fundo Monetário na concepção desses programas é, por demais evidente, ainda que alguns portugueses tenham chegado a reclamar a paternidade, certos do sucesso dos mesmos e, por isso, é especialmente importante analisar o que vem sucedendo a nível do Fundo.

Há praticamente um ano, Olivier Blanchard, um prestigiado académico, economista chefe do FMI, admitiu publicamente o erro que cometera ao subestimar os efeitos contraccionistas da austeridade, juntando-se aquilo que era já a opinião conhecida de alguns técnicos.

Christine Lagarde que, no início de toda esta história, dissera que Portugal não iria apenas sobreviver mas até crescer com o programa de austeridade, foi-se multiplicando em declarações que a distanciavam da austeridade, criando a maior perplexidade em todos os que assistiam à teimosia obstinada da troika.


Se não se podem deixar de ver laivos de hipocrisia ao longo da sua actuação, bem mais grave é a sua última afirmação crítica da austeridade e do seu ritmo: "Dissemo-lo porque é também uma questão de honra para o FMI reconhecer os seus erros quando eles são cometidos ou de reconhecer que alguns temas não foram suficientemente abordados e explorados a fundo".

Que pensar, com efeito, de alguém que pensa que lava a honra da instituição a que preside pela simples admissão de que errou sem sequer pedir, pelo menos, desculpa aos Estados a quem impôs programa errados, ou aos milhões de vítimas dessa política?

No mínimo, que a honra de Christine Lagarde se perdeu.

Naturalmente que não terá escapado aos leitores que o título deste artigo foi inspirado pela novela de Heinrich Boll, depois transposta para o cinema por Margarethe Von Trota e Volker Schlondorff , A Honra Perdida de Katharina Blum, que nos fala de uma jovem inocente destruída pelo sensacionalismo dos tablóides e pela histeria policial contra o terrorismo do Exército Vermelho. Naturalmente que o mesmo não acontecerá à presidente do FMI, que continuará a ser uma das mais poderosas pessoas do mundo e ficará de bem com a sua consciência porque admitiu o erro. Tudo é tão fácil para os poderosos.

Presidente do IDEFF. Professor Catedrático da FDL


sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

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