por João Carlos
Espada, Publicado em 13 de Junho de 2009, jornal i
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"Trabalhe mais pela eliminação das maldades concretas do que pela realização do bem imaginário. "
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por João Carlos Espada, Publicado em 13 de Junho de
2009, jornal i
O
governo representativo ou popular surge, para Popper, como um dos instrumentos
para limitar o poder, e não como fonte de um poder absoluto que devesse ser
transferido de um ou de alguns para todos. O positivismo ético, alertou também
Popper, gera um relativismo desenfreado e, tal como a teoria da soberania
popular, abre caminho a um Estado ilimitado, um Estado que não conhece limites
morais.
Karl Raimund Popper nasceu em 1902, em Viena, e faleceu em 1994 em Kenley, Sul
de Londres. Bertrand Russell e Isaiah Berlin consideraram que a sua crítica ao
marxismo fora devastadora e definitiva. Russell chegou mesmo a dizer que o
livro de Popper "The Open Society and Its Enemies", de 1945, era uma
espécie de Bíblia das democracias ocidentais.É um facto que, em inúmeras
democracias ocidentais, os líderes políticos do centro-esquerda e do
centro-direita se reclamaram da influência popperiana. Na Alemanha Federal, o
chanceler social-democrata Helmut Schmidt e o chanceler democrata-cristão
Helmut Khol prefaciaram obras sobre ou de Karl Popper.
Em Portugal, Mário Soares e Diogo Freitas do
Amaral, entre outros, declararam-se admiradores do velho filósofo.
Tive o prazer de acompanhar cada um deles em visitas privadas a casa de Sir
Karl, em Kenley, em 1992 e 1993, respectivamente.
Winston
Churchill.
Até 1935, Karl Popper viveu basicamente em Viena de Áustria. Depois de uma
formação académica muito variada e de uma esporádica passagem pelo marxismo, quando
tinha dezasseis anos, doutora-se em Filosofia em 1928. Em 1934 publica o seu
primeiro livro, que se tornaria um clássico da filosofia da ciência: "A
Lógica da Descoberta Científica".
Apesar de ter sido publicado em alemão, o
livro teve impacto imediato em Inglaterra e gerou vários convites para
palestras por parte de universidades inglesas. Daí resultou um périplo inglês
de nove meses, em 1935-1936. Esses nove meses "tinham sido uma revelação e
uma inspiração", conta Popper na sua "Autobiografia Intelectual"
[Esfera do Caos, 2008]: "A honestidade e a decência das pessoas e o seu
forte sentimento de responsabilidade política deixaram em mim a mais forte
impressão."
Ainda assim, Popper observou com preocupação
que, mesmo em Inglaterra, ninguém nessa época parecia compreender a ameaça de
Hitler - com excepção da voz corajosa e isolada de Winston Churchill.
Desde essa altura, Karl Popper tornou-se um
admirador incondicional de Churchill.
Nova Zelândia.
Em Fevereiro de 1937, Popper embarcou para a
Nova Zelândia, onde obtivera um lugar de professor em Christ Church. Tinha
acabado de declinar um convite de Cambridge em benefício do seu amigo Fritz
Waisman, já nessa época perseguido pelos nazis. Apesar da tremenda carga de
horas lectivas a que foi submetido na Nova Zelândia, Popper lançou-se ao
trabalho e produziu duas obras magistrais - "A Pobreza do
Historicismo" e "A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos" - entre
1938 e 1943.
Apresentou-os como o seu "esforço de
guerra" contra os totalitarismos nazi e comunista. Regresso a Londres.
Ainda em 1945, Karl Popper recebe um convite de Friedrich Hayek para leccionar
na London School of Economics.
Desta vez o casal Popper aceitou o convite sem pestanejar. Em Janeiro de 1946
chegavam a Inglaterra, onde permaneceriam até ao final da vida, tornando-se
orgulhosos e felizes cidadãos britânicos. Em 1964, Karl Popper receberia da
rainha o título de Sir. Faleceu em 1994, na sua residência de Kenley, no Sul de
Londres, onde tive o privilégio de o visitar regularmente entre 1990 e 1994,
durante o meu doutoramento em Oxford, ao qual me candidatara com o seu apoio.
Todos os
cisnes são brancos?
Na base da filosofia do conhecimento de Popper, originalmente apresentada no
seu livro "Lógica da Descoberta Científica", está uma observação
muito simples que é costume designar por "assimetria dos enunciados
universais".
Esta assimetria reside no facto de que, enquanto nenhum número finito de
observações (positivas) permite validar definitivamente um enunciado universal,
basta uma observação (negativa) para o invalidar ou refutar. Por outras
palavras, e citando um exemplo que se tornou clássico: por mais cisnes brancos
que sejam encontrados, nunca podemos ter a certeza de que todos os cisnes são
brancos (pois amanhã alguém pode encontrar um cisne preto). Em contrapartida,
basta encontrar um cisne preto para ter a certeza de que é falso o enunciado
universal "todos os cisnes são brancos".Karl Popper fundou nesta
assimetria a sua teoria falibilista do conhecimento.
Argumentou que o conhecimento científico não assenta no chamado método
indutivo, mas numa contínua interacção entre conjecturas e refutações.
Enfrentando problemas, o cientista formula teorias conjecturais para tentar
resolvê-los. Essas teorias serão então submetidas a teste. Se forem refutadas,
serão corrigidas (ou simplesmente eliminadas) e darão origem a novas teorias,
que por sua vez voltarão a ser submetidas a teste. Mas, se não forem refutadas,
não serão consideradas provadas. Serão apenas corroboradas, admitindo-se que no
futuro poderão ainda vir a ser refutadas por testes mais rigorosos. O nosso
conhecimento é, por isso, fundamentalmente conjectural e progride por ensaio e
erro: "Sabemos muito pouco e cometemos muitos erros. Mas podemos aprender
com eles."
A superstição
marxista.
Entre as múltiplas consequências desta visão do progresso do conhecimento
encontram-se duas que terão particular importância para a filosofia política e
moral de Popper.
Em primeiro lugar, o chamado critério de demarcação entre asserções científicas
e não científicas: serão asserções científicas apenas aquelas que sejam
susceptíveis de teste, isto é, de refutação.
Este ponto será de crucial importância para a
crítica de Popper ao chamado historicismo marxista. Marx anunciara como lei
científica da história a inevitável passagem do capitalismo ao socialismo e
depois ao comunismo. Mas não definira qualquer horizonte temporal para essa
previsão. Isso na verdade significa que a previsão não é susceptível de teste.
Trata-se por isso apenas de uma profecia, uma superstição em nome da ciência.
Sociedade
aberta.
Uma segunda consequência da epistemologia de Popper reside na centralidade da
liberdade de crítica. A possibilidade de criticar uma teoria, de a submeter a
teste e de tentar refutá-la, é condição indispensável do progresso do
conhecimento.
É aqui que Popper vai fundar a distinção
fundamental entre sociedade aberta e sociedade fechada. Na primeira existe
espaço para a liberdade de crítica e para a gradual alteração ou conservação de
leis e costumes através da crítica racional. Na segunda, pelo contrário, leis e
costumes são vistos como tabus imunes à crítica e à avaliação pelos indivíduos.
No capítulo 10 da obra "A Sociedade Aberta e os seus Inimigos"
[Fragmentos, 1990], Karl Popper desenvolve uma poderosa e emocionada defesa do
ideal da sociedade aberta, fazendo recuar as suas origens à civilização
comercial, marítima, democrática e individualista do iluminismo ateniense do
século V a. C. - que o autor contrasta duramente com a tirania colectivista e
anticomercial de Esparta.
Contra a
soberania popular.
Sendo um intransigente defensor das democracias liberais, Popper é, contudo, um
crítico contundente das teorias usualmente associadas à democracia, em
particular a herdada de Rousseau - que entende a democracia como o regime
fundado na chamada "soberania popular". Popper começa por observar
que esta teoria da "soberania popular" se inscreve numa tradição de
definição do melhor regime político em termos da resposta à pergunta "quem
deve governar?". Mas esta pergunta, prossegue o autor, conduzirá sempre a
uma resposta paradoxal.
Se, por exemplo, o melhor regime for definido como aquele em que um - talvez o
mais sábio, ou o mais forte, ou o melhor - deve governar, então esse um pode,
segundo a definição do melhor regime, entregar o poder a alguns ou a todos,
dado que é a ele que cabe decidir ou governar.
Chegamos então a um paradoxo: uma decisão conforme à definição de melhor regime
conduz à destruição desse mesmo regime. Este paradoxo ocorrerá qualquer que
seja a resposta à pergunta "quem deve governar?" (um, alguns, ou
todos reunidos em colectivo) e decorre da própria natureza da pergunta - que
remete para uma resposta sobre pessoas e não sobre regras que permitam preservar
o melhor regime.
Estado limitado.
A teoria da democracia de Popper vai então decorrer da resposta a outro tipo de
pergunta: não sobre quem deve governar, mas sobre como evitar a tirania, como
garantir a mudança de governo sem violência. O meio para alcançar este
objectivo residirá então num conjunto de regras que permitam a alternância de
propostas concorrentes no exercício do poder e que impeçam que, uma vez
chegadas ao poder, qualquer delas possa anular as regras que lhe permitiram lá
chegar.
O governo representativo ou democrático surge então como uma, e apenas uma,
dessas regras. Elas incluem a separação de poderes, os freios e contrapesos, as
garantias legais - numa palavra, o governo constitucional ou limitado pela lei.
Nesta perspectiva, o governo representativo ou popular surge como um dos
instrumentos para limitar o poder, e não como fonte de um poder absoluto que
devesse ser transferido de um ou de alguns para todos.
Inimigos da sociedade aberta.
Entre os inimigos da sociedade aberta, Popper
aponta o positivismo ético, um elemento fundamental, embora pouco notado, do
marxismo e do nazismo.
O positivismo ético "sustenta não existirem outras normas para além das
leis que foram realmente consagradas (ou positivadas) e que portanto têm uma
existência positiva. Outros padrões são considerados produtos irreais da
imaginação". O problema óbvio com esta teoria é que ela impede qualquer
tipo de desafio moral às normas existentes e qualquer limite moral ao poder
político. Se não existem padrões morais além dos positivados na lei, a lei que
existe é a que deve existir. Esta teoria conduz ao princípio de que a força é o
direito.
Como tal, opõe-se radicalmente ao espírito da sociedade aberta: esta funda-se,
como vimos, na possibilidade de criticar e gradualmente alterar ou conservar
leis e costumes. O positivismo ético, ao decretar a inexistência de valores
morais para além dos contidos nas normas legais realmente existentes, conduz à
desmoralização da sociedade e, por essa via, à abolição do conceito de
liberdade e responsabilidade moral do indivíduo.
Este é talvez um dos aspectos mais
incompreendidos da obra de Popper.
A ideia de "abertura" foi captada por modas e teorias intelectuais
relativistas que Popper na verdade condenara como inimigos da sociedade aberta.
O positivismo ético, alertou Popper, gera um relativismo desenfreado e, tal
como a teoria da soberania popular, abre caminho a um Estado ilimitado, um
Estado que não reconhece limites morais.