O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.

sábado, 15 de junho de 2013

Suspender a democracia?


Por AGOSTINHO GUEDES* 28/05/2013, in “Publico”


Todos os anos, na primeira aula de Introdução ao Estudo do Direito que dou aos alunos recém-chegados à universidade, faço uma simulação: peço-lhes para imaginarem que o planeta sofreu um cataclismo de proporções bíblicas e que nós (eu e os alunos na sala) somos os únicos sobreviventes; depois, nesse contexto, peço-lhes que me digam o que fazer.

Invariavelmente, os alunos elegem como objetivo principal a sobrevivência, e constatam, em primeiro lugar, a necessidade de o grupo permanecer unido. O objetivo desta simulação é ajudar os alunos a perceber intuitivamente o que são e para que servem as leis.

De facto, num ambiente adverso, a probabilidade de sobrevivência é maior se as pessoas se mantiverem unidas; por outro lado, e cada vez mais, todos precisamos uns dos outros para ser felizes e realizados. Ao mesmo tempo, porém, cada pessoa tem os seus objetivos e interesses individuais e afirma constantemente a sua liberdade.

Esta tensão entre a liberdade individual e a necessidade de viver em sociedade gera risco de conflito, e por vezes conflito efetivo. O problema básico de qualquer comunidade humana é, pois, construir um sistema de organização da sociedade que preserve a liberdade de cada um e favoreça uma colaboração pacífica entre os seus membros, por forma a que os conflitos se resolvam sem recurso à violência (e para isso servem as leis).

Quando se discutem regimes políticos, é comum ouvir que a democracia é o “menos mau” dos regimes, numa crítica implícita ao sistema mas com o reconhecimento de que as alternativas são todas piores. Em tempos de crise e desencanto, esta crítica agudiza-se. Há pouco tempo, alguém até mencionou a necessidade de “suspender a democracia” para se conseguir debelar as causas da crise.

Modernamente, democracia significa governo do povo, governo dos cidadãos, de todos os cidadãos; significa que o poder político, o poder de fazer escolhas políticas (incluindo o poder de legislar) é exercido direta ou indiretamente pelos membros da comunidade — diretamente, através de mecanismos de escolha direta (como o referendo); indiretamente, através da eleição de “representantes” que são mandatados para tomar decisões em nome dos eleitores.

Existe algum consenso à volta da ideia de que qualquer sistema democrático assenta em dois valores: a liberdade e a igualdade (modernamente, acentua-se também a solidariedade).

Verdadeiramente, porém, o valor fundamental da democracia é o primado da dignidade de cada pessoa (v. o art.º 1.º da nossa Constituição). Deste valor derivam todos os outros, nomeadamente a igualdade (porque todas as pessoas têm igual dignidade) e a liberdade (sem liberdade não há dignidade).

Cada pessoa tem direito a ser respeitado, na sua individualidade e na sua liberdade, mas tem também o dever de respeitar o próximo, na sua individualidade e liberdade — este é o fundamento ético da democracia.

Suspender a democracia significa suspender o respeito que é devido a cada um de nós. É isso que queremos?

*O autor é director da Escola de Direito da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, e escreve segundo o Acordo Ortográfico.


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