O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

A morte do turista Ocidental

HAVIA UMA SERPENTE DE GENTE para ver o bastão do profeta Moisés. E pedacinhos da barba do Profeta metidos dentro de frasquinhos com tampas de ouro. Maomé. E réplicas da grande mesquita de Meca. O bastão de Moisés, presumivelmente o que abriu as águas do Mar Vermelho, parecia envernizado e acabado de sair da fábrica.

Imã fila de mais de um quilómetro, e como toda a gente ficava uns bons minutos a contemplar a barba e o resto, com o nariz encostado aos vidros, visitar o Topkapi na secção de relíquias do Islão tornou-se um trabalho de peregrino. É preciso usar a paciência e a fé.

O que não era o meu caso. A primeira vez que visitei o Topkapi, o grande palácio dos sultões otomanos, não havia ninguém. Abundavam os americanos, na maioria jovens, e os europeus, com o habitual viajante britânico, carregado de fleuma e de livros, bebericando gim ao fim da tarde nos hotéis de madeira de Sultanahmete a contemplar o Bósforo. O Harém tinha a fila do costume mas era curta e negociável. A secção das relíquias e do Islão não existia. O tesouro, com os diamantes e as esmeraldas, era a grande atracão.

Voltei várias vezes a Istambul e iam aparecendo os espanhóis e os portugueses, alguns nórdicos, os franceses. O turismo tem uma nova demografia. Não há americanos.

No Grande Bazar, os donos das lojas dizem que os americanos têm medo de viajar para países do Islão, mesmo países seculares como a Turquia. Desapareceram também de Marrocos, com excepção para os enclaves de cinco estrelas donde saem em expedições com carros fumados. Uma americana diz: podemos ser mortos em qualquer lado. Desde o 11 de Setembro, e das guerras do Iraque e do Afeganistão, os americanos tornaram-se insulares, contaminados pelo terror.
E o resto dos europeus? O número diminuiu muito.

A crise económica. Os espanhóis e italianos viajam ainda, um turismo jovem que não deixa dinheiro. A Turquia está cheia de turistas, tanto em Istambul como no sul, na região das praias de água verde. A demografia mudou. Apareceram os turistas russos, carregados de dinheiro, comprando ícones antigos no bazar, ícones que durante anos não tinham compradores. Comprando joalharia otomana. Os antiquários dizem que quase nada resta porque “os russos compraram tudo”. O ataque das térmitas. Milhões de rublos.

Apareceram os árabes ricos do Golfo, do Dubai e dos outros Emirados, de Omã, do Kuwait. Uma classe média que se distingue dos milionários sauditas que costumavam aparecer e desaparecer nos jatos e iates sem serem vistos. Esta nova classe média visita lugares da história e, sobretudo, da história do Islão. Apareceram os asiáticos, da Malásia, da Indonésia, de Singapura. Apareceram os indianos, outra nova classe média, milhares deles. A Índia é uma potência que vai bater a população chinesa dentro de anos. A nova classe média indiana é uma força económica que todos os países que precisam de turistas vão ter de cativar.

E, claro, os chineses. Por enquanto, os chineses viajam mais para a Itália e a Grã-Bretanha mas a Turquia é um destino turístico que se organizou para apanhar toda esta gente. Daí a secção de relíquias de Topkapi.

E a atenção ao turismo. Em Istambul, das toalhas dos restaurantes (rectângulos de papel) aos quadros e fotografias das paredes, os lugares contam a história de Bizâncio e de Constantinopla. Impossível visitar a cidade sem perceber e aprender a história da cidade, porque a história está impressa em todos os folhetos, em todos os espaços onde possa ser contada aos visitantes.

Istambul teve uma regeneração urbana notável. Recep Tayyp Erdogan foi presidente da câmara de 94 a 98 e a inteligência reformista com que geriu a cidade é a mesma com que gere o país. A Turquia é um país poderoso, e Portugal, a Espanha, etc. são os doentes da Europa.

Istambul limpou o Bósforo, fez a reabilitação urbana, arranjou as ruas, os transportes públicos, protegeu o património e a cultura. O passado. A cidade é um paraíso para quem goste de comer bem e barato, e as ruas têm uma vitalidade e uma alegria, com música em todas as esquinas. A população é jovem e a movida nocturna é superior à dos países do sul da Europa.

O que nós perdemos eles ganharam, turistas. Se Portugal quiser atrair a nova demografia, russos, árabes, chineses, indianos, vai ter que trabalhar mais e melhor.

O Algarve é um produto inferior, destruído pela má governação e pelo turismo de massas europeu. Lisboa (apesar das melhorias) continua uma cidade pobre e pindérica, cheia de má arquitetura, com uma Baixa que mete medo. Com cantas cheios de sem-abrigo. A gastronomia, as praias, a história e os museus e igrejas (para os que fazem a peregrinação cristã) precisam de mais visibilidade e, sobretudo, de uma ideia organizadora, que não existe no turismo português, apesar das campanhas inúteis em que gastámos milhões de euros.

Clara Ferreira Alves in Expresso de 21/04/12

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