O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

“Do Estrado à Chucha: Uma História de Mercado(s) e Migalhas”

Diz-se por aí que Lisboa tem o Terreiro do Paço, Paris tem o Marché de Rungis, e Armação de Pêra… bem, Armação tem os restos de Silves. Literalmente. Corria o ano de 1958, e um visionário lisboeta — o arquiteto Paulo Henrique de Carvalho Cunha — desceu até à costa algarvia, armado de régua, esquadro e um “Plano Geral de Arranjo Urbanístico”. Palavra chique essa: arranjo. Porque arranjo foi precisamente o que se fez — e que grande “arranjo”! — com o velho mercado de peixe de Silves. A necessidade de um mercado em Armação já vinha de longe. As vendedeiras equilibravam peixe e legumes sobre estrados nas ruas, entre gaivotas e veraneantes. Era, digamos… um modelo de mercado ao ar livre avant-garde. E o povo clamava: “Queremos um mercado de verdade!” A Câmara de Silves, magnânima como sempre, respondeu à chamada. Mas em vez de gastar um tostão na construção de um mercado digno, decidiu reciclar — que é muito moderno — e despachou para a vila praiana o material da antiga praça de peixe de Silves. E assim, no glorioso dia 26 de junho de 1960, pelas 17 horas (hora exata para quem quer tapar o sol com a peneira), inaugurava-se, com pompa e peixinhos, o mercado remendado. Em Silves: um mercado novo, fresquinho. Em Armação: o cabaz da reciclagem. Claro que aquilo não servia para as necessidades da população, nem para os veraneantes, que já nessa altura exigiam mais do que sardinha ao sol. Resultado? A rua em redor foi-se transformando numa extensão não-planeada do mercado, onde cada vendedor plantava a sua banca como quem planta couves. Foram precisos mais de 15 anos de pedidos, súplicas e promessas em papel timbrado até que, finalmente, em 1979 — ano glorioso para a democracia e para o bacalhau seco — surgiu o atual mercado. Bonito? Funcional? Talvez. Mas já velhinho, cansado, a ranger das pernas como um banquinho de três pés. E agora, mais de 40 anos depois, os armacenenses olham para Silves e veem obras, pavilhões, centros culturais. E olham para o mercado da vila… e veem a mesma estrutura de sempre, com cheiro a sardinha e nostalgia. Pedem modernização. Recebem promessas. Pagam impostos. Recebem chuchas. Enquanto isso, os autarcas de Silves devem rir-se discretamente, talvez entre uma alfarroba e um café na esplanada do mercado novo da sede de concelho. E Armação de Pêra? Armação continua à espera. À espera que um novo plano urbano traga mais que remendos — e talvez, quem sabe, um mercado onde as bancas não fiquem com os pés na rua e os fregueses de molho até aos tornozelos. Porque, sejamos honestos: reciclar é bom. Mas reciclar a dignidade de uma freguesia inteira? Isso sim, cheira a peixe.

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