O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.
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terça-feira, 21 de setembro de 2010

O ZÉ POVINHO

Por Maria Filomena Mónica

ESTOU A ESCREVER isto a 10 de Junho [2009], um feriado cuja origem caiu no esquecimento. Em 1880, um grupo de intelectuais decidiu mostrar ao mundo que Portugal era um país culto, como se provaria pela celebração, naquela data, do terceiro centenário da morte de Luís de Camões. Como é óbvio, o impacto na cena internacional foi nulo. Após a República, veio o decreto consagrando o ócio e, com o Estado Novo, a designação de Dia de Camões, de Portugal e da Raça. O actual regime manteve o feriado, alterando a designação para Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. Não gostando de comemorações, muito menos de cariz nacionalista, optei por trabalhar como se nada fosse, do que resultou acabar o dia a pensar no Zé Povinho.

Cada país tem o símbolo que merece: a Inglaterra, o John Bull (um senhor rural e divertido), a França, a Marianne (uma mulher de seio revolucionário), a Alemanha, a Germânia (uma mocetona loira com uma espada na mão). Nós temos o Zé Povinho, nascido, pela pena de Rafael Bordalo Pinheiro, a 12 de Junho de 1875, no n.º 5 da revista A Lanterna Mágica. Ei-lo, no lado direito da imagem, coçando a cabeça, com ar apalermado. Dentro de um «trono», deparamo-nos com Fontes Pereira de Melo, a fazer de Santo António, tendo ao colo o rei D. Luís, como Menino Jesus. O pedinte é o ministro da Fazenda, Serpa Pimentel, com uma bandeja na mão, a fim de sacar moedas ao dito Zé. Não fosse o caldo entornar-se, está presente o Barão do Rio Zêzere, comandante da Guarda Municipal.

Poder-se-á pensar que, em 1875, o campónio estava a ser mais espoliado do que o costume. Não era o caso: depois de um triénio terrível, o de 1868/71, o país vivia dias bonançosos. As remessas dos emigrantes haviam recomeçado, a economia retomara o seu ritmo, a situação internacional acalmara. E, no entanto, nunca tantos intelectuais criticaram tanto o regime. É neste caldo de cultura que apareceu o Zé Povinho. Este foi evoluindo até acabar imortalizado na figura do saloio a fazer um manguito, a qual receberia a consagração derradeira sob a forma de uma escultura. O gesto tem sido interpretado como uma atitude corajosa, mas poucas coisas há mais desprezíveis do que um servo que, diante dos patrões, se curva, indo fazer manguitos para a cozinha.

A figura do Zé Povinho aparece noutras caricaturas, como a de 9 de Julho de 1880, publicada em O António Maria, na qual surge com uma albarda às costas. Dois anos depois, no Álbum das Glórias, a albarda está colocada no chão, podendo imaginar-se que alguém a voltará a colocar sobre o dorso popular. O texto que acompanha o desenho é de Ramalho Ortigão: «Como desenvolvimento, ele está pouco mais ou menos como se o tivessem desmamado ontem. De músculos, porém, de epiderme e de coiro, engrossou, endureceu e calejou como se quer, e, cumprindo com brio a missão que lhe cabe, ele paga e sua satisfatoriamente. De resto, dorme, reza e dá os vivas que são precisos.» Ramalho Ortigão, aliás a alma da festarola, declarava ambicionar ver o dia em que o Zé Povinho se transformasse em Povo.

O problema residia em que ninguém sabia o que este, o Povo, queria. Desde que não saísse das pocilgas que habitava, empunhando baionetas, ninguém dava a menor atenção às obscenidades a que, lá dentro, se entregava. Uma vez por outra, o Zé Povinho arregaçava as mangas, pegava num cacete e até corria um político a pontapé. Mas nunca o vemos tentando libertar-se da albarda. Leva, resmunga e amocha. O que não está sociologicamente errado. Um país rural pode conhecer, como conheceu, motins provocados pela fome, mas dificilmente dá origem a revoluções.

O regime monárquico só caiu, já Bordalo Pinheiro tinha morrido, quando a pequena burguesia urbana entrou em cena. Em 1910, após ter pedido a demissão do cargo de bibliotecário da Ajuda, por não querer engrossar «o abjecto número de percevejos que de um buraco estou vendo nojosamente cobrir o leito da governação», Ramalho Ortigão exilou-se em Paris. Afinal, o Povo não era aquilo com que tinha sonhado.

O que impressiona, ainda e sempre, é o facto de o Zé Povinho ser admirado. Feio, patego e bronco, representa o camponês no que este tem de mais grosseiro. Apesar de o governo lhe roubar os filhos para a tropa e de lhe arrecadar os tostões ganhos com o suor do seu rosto, o idiota continua a ostentar um sorriso alvar. A característica mais notória do símbolo nacional é, como se vê, a subserviência: não nos podemos orgulhar.

«GQ de Julho/Agosto 2009

sábado, 27 de março de 2010

Só nos faltava mais esta!


Por Maria Filomena Mónica

AO LONGO DOS SÉCULOS, enquanto o adultério feminino era fortemente criticado, o masculino era visto com tolerância, uma posição tanto mais cómica quanto era muitas vezes acompanhada da tese de que as mulheres não tinham prazer na cama, ou, alternativamente, como dizia Proudhon, que haveria dois tipos de mulher, a esposa e a prostituta. Do orgasmo, não queria saber a primeira; a segunda não pensava noutra coisa.

Depois que, em 1970, Germaine Greer publicou The Female Eunuch, o prazer feminino foi afirmado à exaustão. Assustados com tal possibilidade, os homens encolheram. A sua reacção, quer na versão simples quer na recalcada, foi sobretudo visível no macho latino, a que o género português pertence. Com a sua habitual lucidez, A. B. Kotter dizia há tempos: «Os homens portugueses ficam meninos toda a vida e finalmente acabam com complexos de masculinidade». Ninguém o expôs melhor.

De facto, os homens não podiam ficar inertes, pelo que recorreram ao velho truque de tornar científica a primeira palermice que lhe ocorresse. Uma equipa de investigação sueca acaba de afirmar que o adultério masculino estaria associado a uma variante genética, ou seja, que, de cada vez que um marido põe os palitos à mulher, isso não significa que tenha deixado de gostar dela, mas apenas que tem, no cérebro, um gene regulando a acção de uma hormona, a vasopressina, que o obriga a ser promíscuo. Num ápice, a sua responsabilidade desapareceu.

Perante isto, as mulheres têm um caminho a seguir: exigir dos noivos que se sujeitem a um teste que presumivelmente detectará se, no respectivo organismo, existem vestígios da tal vasopressina. Dado que, em cada cinco, apenas dois são potenciais adúlteros, fica ainda uma maioria de entre a qual poderão escolher. Uma vez que ninguém gosta de levar para casa uma mercadoria danificada – e um marido geneticamente infiel como tal deve ser rotulado – aconselho as jovens a seguir o meu conselho.

sábado, 9 de janeiro de 2010

TENHO MEDO DA JUSTIÇA DO MEU PAIS


A 17 deste mês, o Procurador da República – uma figura a quem os portugueses deveriam prestar mais atenção – declarou, durante o I Congresso de Investigação Criminal, que existe “uma deriva” no sistema de relacionamento entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária, tendo advertido para a existência de “um risco de policialização do inquérito”, após o que apontou a culpa aos investigadores policiais:”O MP[de que, note-se, ele é a cúpula] cada vez menos dirige os inquéritos e é encarado como excrescência que só vem importunar”. Acrescentou que a PJ considerava os magistrados “uns empatas”, para, em seguida, admitir falhas no próprio MP – “Há uma sobrecarga de processos que não permite a liderança de todos os processos” – e alertar para a falta de preparação específica destes magistrados.


Furioso com esta intervenção, o director nacional adjunto da Policia Judiciária afirmou que a actuação da PJ era, por vezes, neutralizada “por actuações e práticas administrativas que o Estado de Direito não pode admitir”, facto cuja responsabilidade atribuía ao Ministério Público. Que devo concluir? Que o Dr. Souto Moura não controla quem deve?
Que o Dr. José Brás é um alarmista? Que não vivo num Estado de Direito?
Isto deixou-me tanto mais baralhada quanto, alguns dias antes, lera, no Público uma entrevista ao advogado Rodrigo Santiago, o qual, entre as acusações dirigidas ao sistema judicial português, destacava a forma de relacionamento entre o MP e a PJ. Segundo ele, a primeira instituição tendia a desculpar os erros da segunda, a qual teria adquirido hábitos perniciosos, tais como o de recorrer sistematicamente a escutas telefónicas, um método passível de ser utilizado nos gabinetes, que dispensaria os agentes de andarem, por ruas e vielas, à procura de provas. Por envolver gente importante e, por desta forma, ter sido alvo de atenção, o processo Casa Pia teve o mérito de alertar os portugueses para o facto de nem tudo correr bem dentro do mundo da justiça.


O tempo só veio confirmar antigas apreensões. Em 1992, ainda o povo dormia o sono dos justos, escrevi uma reportagem sobre a justiça em Portugal. A minha filha, que acabara de se licenciar em Direito, alertara-me para algumas deficiências, pelo que eu decidi ir até ao Tribunal da Boa Hora, a fim de, qual antropóloga, observar o que por lá se passava. A distribuição espacial pareceu-me insólita, uma vez que se não coadunava com o que vira nos filmes americanos e ingleses. Um amigo explicou-me que, segundo a tradição portuguesa, havia três níveis na sala de audiências: num estrado superior, sentava-se o juiz, o detentor da Verdade, num plano intermédio, o procurador do Ministério Público, que representava o Estado, e, num plano inferior, o advogado da defesa.

A encenação continuou a parecer-me anómala, pelo que não esqueci o assunto. Até descobrir que existem dois sistemas judiciais, o latino e o anglo-saxónico. O primeiro é de tipo inquisitorial, o segundo de natureza adversarial. No primeiro, o magistrado do Ministério Público pode mandar prender, determinar se o suspeito vai a julgamento, sendo ele quem, por fim, formula a acusação. Este método chegou-nos por vias pouco recomendáveis: a Igreja Católica, que o usou com conhecido êxito, e o Código Napoleónico, igualmente nefasto.


Por seu lado, a Grã-Bretanha e, mais tarde, as suas ex-colónias optaram por uma via diferente. A Magna Carta, um documento impressionante, que eu vi, com os meus próprios olhos, numa das vitrinas da Bodleian Library de Oxford, contem a seguinte clãusula:”Nenhum homem livre deverá ser detido ou encarcerado [...] excepto por intermédio de um julgamento legal feito pelos seus pares ou por intermédio da lei da nossa terra. A ninguém venderemos, a ninguém vedaremos [...] o direito e a justiça”. Este texto, imposto ao rei João de Inglaterra pelos barões rebeldes, em Junho de 1215, pretendia interditar os actos arbitrários do monarca. Era a primeira tentativa, na História, para distinguir entre poder legítimo e tirania.
Não surpreende que o Papa Inocente III a tivesse descrito como “ímpia”, “abominável” e “ilícita”.


Nos países de que Portugal faz parte o conceito de habeas corpus ( a obrigação de justificar publicamente a acusação) não está enraizado. Por muitos ajustes que se tenham feito nos sistemas da Europa continental, a Justiça permanece enviesada a favor da acusação. Há quem pense que, ao criar a figura do delegado do Ministério Público, o sistema inquisitorial iria proteger os arguidos da brutalidade da policia. Os magistrados do MP podem não ter por hábito espancar réus, mas, em última análise, prefiro uma sova à concentração de poderes nas suas mãos. Nada de mais grave se pode dizer de um sistema de justiça.

Maria Filomena Mónica, 26 de Março de 2006, in: Público

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