Ainda não vimos nada!
É triste confessar, mas ainda estamos para ver até onde vão os revisores da História. Uma coisa é certa: com a ajuda dos movimentos anti-racistas, a colaboração de esquerdistas, a covardia de tanta gente de bem e o metabolismo habitual dos reaccionários, o movimento de correcção da História veio para ficar.
Serão anos de destruição de símbolos, de substituição de heróis, de censura de livros e de demolição de esculturas. Até de rectificação de monumentos. Além da revisão de programas escolares e da reescrita de manuais.
Tudo, com a consequente censura de livros considerados impróprios, seguida da substituição por novos livros estimados científicos, objectivos, democráticos e igualitários. A pujança deste movimento através do mundo é tal que nada conseguirá temperar os ânimos triunfadores dos novos censores, transformados em juízes da moral e árbitros da História.
Serão criadas comissões de correcção, com a missão de rever os manuais de História (e outras disciplinas sensíveis como o Português, a Literatura, a Geografia, o Meio Ambiente, as Relações Internacionais…), a fim de expurgar a visão bondosa do colonialismo, as interpretações glorificadoras dos descobrimentos e os símbolos de domínio branco, cristão, europeu e capitalista.
Comissões purificadoras procederão ao inventário das ruas e locais que devem mudar de nome, porque glorificam o papel dos colonialistas e dos traficantes de escravos. Farão ainda o levantamento das obras de arte públicas que prestam homenagem à política imperialista, assim como aos seus agentes. Já começou, aliás, com a substituição do Museu dos Descobrimentos pelo Memorial da Escravatura.
Teremos autoridades que tudo farão para retirar os objectos antes que as hordas cheguem e será o máximo de coragem de que serão capazes. Alguns concordarão com o seu depósito em pavilhões de sucata. Outros ainda deixarão destruir, gesto que incluirão na pasta de problemas resolvidos.
Entretanto, os Centros Comerciais Colombo e Vasco da Gama esperam pela hora fatal da mudança de nome.
Praças, ruas e avenidas das Descobertas, dos Descobrimentos e dos Navegantes, que abundam em Portugal, serão brevemente mudadas.
Preparemo-nos, pois, para remover monumentos com Albuquerque, Gama, Dias, Cão, Cabral, Magalhães e outros, além de, evidentemente, o Infante D. Henrique, o primeiro a passar no cadafalso. Luís de Camões e Fernando Pessoa terão o devido óbito. Os que cantaram os feitos dos exploradores e dos negreiros são tão perniciosos quanto os próprios. Talvez até mais, pois forjaram a identidade e deram sentido aos mitos da nação valente e imortal.
Esperemos para liquidar a toponímia que aluda a Serpa Pinto, Ivens, Capelo e Mouzinho, heróis entre os mais recentes facínoras. Sem esquecer, seguramente, uns notáveis heróis do colonialismo, Kaúlza de Arriaga, Costa Gomes, António de Spínola, Rosa Coutinho, Otelo Saraiva de Carvalho, Mário Tomé e Vasco Lourenço.
Não serão esquecidos os cineastas, compositores, pintores, escultores, escritores e arquitectos que, nas suas obras, elogiaram os colonialistas, cúmplices da escravatura, do genocídio e do racismo. Filmes e livros serão retirados do mercado.
Pinturas murais, azulejos, esculturas, baixos-relevos, frescos e painéis de todas as espécies serão destruídos ou cobertos de cal e ácido. Outras comissões terão o encargo de proceder ao levantamento das obras de arte e do património com origem na África, na Ásia e na América Latina e que se encontram em Portugal, em mãos privadas ou em instituições públicas, a fim de as remeter prontamente aos países donde são provenientes.
Os principais monumentos erectos em homenagem à expansão, a começar pelos Jerónimos e pela Torre de Belém, serão restaurados com o cuidado de lhes retirar os elementos de identidade colonialista. Os memoriais de homenagem aos mortos em guerras do Ultramar serão reconstruídos a fim de serem transformados em edifícios de denúncia do racismo. Não há liberdade nem igualdade enquanto estes símbolos sobreviverem.
Muitos pensam que a História é feita de progresso e desenvolvimento. De crescimento e melhoramento. Esperam que se caminhe do preconceito para o rigor. Do mito para o facto. Da submissão para a liberdade.
Infelizmente, tal não é verdade. Não é sempre verdade. Republicanos, corporativistas, fascistas, comunistas e até democratas mostraram, nos últimos séculos, que se dedicaram com interesse à revisão selectiva da História, assim como à censura e à manipulação.
E, se quisermos ir mais longe no tempo, não faltam exemplos. Quando os revolucionários franceses rebaptizaram a Catedral de Estrasburgo, passando a designá-la por Templo da Razão, não estavam a aumentar o grau de racionalidade das sociedades. Quando o altar-mor de Notre Dame foi chamado de Altar da Liberdade, caminharam alegremente da superstição para o preconceito.
E quando os bolchevistas ocuparam a Catedral de Kazab, em São Petersburgo e apelidaram o edifício de Museu das Religiões e do Ateísmo, não procuravam certamente a liberdade e o pluralismo. E também podemos convocar os Iconoclastas de Istambul, os Daesh de Palmira ou os Taliban de Bamiyan que destruíram símbolos, combateram a religião e tentaram apropriar-se tanto do presente como do passado.
Os senhores do seu tempo, monarcas, generais, bispos, políticos, capitalistas, deputados e sindicalistas gostam de marcar a sociedade, romper com o passado e afastar fantasmas. Deuses e comendadores, santos e revolucionários, habitam os seus pesadelos. Quem quer exercer o poder sobre o presente tem de destruir o passado.
Muitos de nós pensávamos, há cinquenta anos, que era necessário rever os manuais, repensar os mitos, submeter as crenças à prova do estudo, lutar contra a proclamação autoritária e defender com todas as forças o debate livre.
É possível que, a muitos, tenha ocorrido que faltava substituir uma ortodoxia dogmática por outra. Mas, para outros, o espírito era o de confronto de ideias, de debate permanente e de submissão à crítica pública.
O que hoje se receia é a nova dogmática feita de novos preconceitos. Não tenhamos ilusões.
Se as democracias não souberem resistir a esta espécie de vaga que se denomina libertadora e igualitária, mergulharão rapidamente em novas eras obscurantistas.
Artigo de António Barreto
In "Público" - 2020.06.15
O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.
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terça-feira, 16 de junho de 2020
segunda-feira, 9 de outubro de 2017
A comunicação social que temos
É simplesmente desmoralizante. Ver e ouvir os serviços de notícias das três ou quatro estações de televisão é pena capital. A banalidade reina. O lugar-comum impera. A linguagem é automática. A preguiça é virtude. O tosco é arte. A brutalidade passa por emoção. A vulgaridade é sinal de verdade. A boçalidade é prova do que é genuíno. A submissão ao poder e aos partidos é democracia. A falta de cultura e de inteligência é isenção profissional.
Os serviços de notícias de uma hora ou hora e meia, às vezes duas, quase únicos no mundo, são assim porque não se pode gastar dinheiro, não se quer ou não sabe trabalhar na redacção, porque não há quem estude nem quem pense. Os alinhamentos são idênticos de canal para canal. Quem marca a agenda dos noticiários são os partidos, os ministros e os treinadores de futebol. Quem estabelece os horários são as conferências de imprensa, as inaugurações, as visitas de ministros e os jogadores de futebol.
Os directos excitantes, sem matéria de excitação, são a jóia de qualquer serviço. Por tudo e nada, sai um directo. Figurão no aeroporto, comboio atrasado, treinador de futebol maldisposto, incêndio numa floresta, assassinato de criança e acidente com camião: sai um directo, com jornalista aprendiz a falar como se estivesse no meio da guerra civil, a fim de dar emoção e fazer humano.
Jornalistas em directo gaguejam palavreado sobre qualquer assunto: importante e humano é o directo, não editado, não pensado, não trabalhado, inculto, mal dito, mal soletrado, mal organizado, inútil, vago e vazio, mas sempre dito de um só fôlego para dar emoção! Repetem-se quilómetros de filme e horas de conversa tosca sobre incêndios de florestas e futebol. É o reino da preguiça e da estupidez.
É absoluto o desprezo por tudo quanto é estrangeiro, a não ser que haja muitos mortos e algum terrorismo pelo caminho. As questões políticas internacionais quase não existem ou são despejadas no fim. Outras, incluindo científicas e artísticas, são esquecidas. Quase não há comentadores isentos, ou especialistas competentes, mas há partidários fixos e políticos no activo, autarcas, deputados, o que for, incluindo políticos na reserva, políticos na espera e candidatos a qualquer coisa! Cultura? Será o ministro da dita. Ciência? Vai ser o secretário de Estado respectivo. Arte? Um director-geral chega.
Repetem-se as cenas pungentes, com lágrima de mãe, choro de criança, esgares de pai e tremores de voz de toda a gente. Não há respeito pela privacidade. Não há decoro nem pudor. Tudo em nome da informação em directo. Tudo supostamente por uma informação humanizada, quando o que se faz é puramente selvagem e predador. Assassinatos de familiares, raptos de crianças e mulheres, infanticídios, uxoricídios e outros homicídios ocupam horas de serviços.
A falta de critério profissional, inteligente e culto é proverbial. Qualquer tema importante, assunto de relevo ou notícia interessante pode ser interrompido por um treinador que fala, um jogador que chega, um futebolista que rosna ou um adepto que divaga.
Procuram-se presidentes e ministros nos corredores dos palácios, à entrada de tascas, à saída de reuniões e à porta de inaugurações. Dá-se a palavra passivamente a tudo quanto parece ter poder, ministro de preferência, responsável partidário a seguir. Os partidos fazem as notícias, quase as lêem e comentam-nas. Um pequeno partido de menos de 10% comanda canais e serviços de notícias.
A concepção do pluralismo é de uma total indigência: se uma notícia for comentada por cinco ou seis representantes dos partidos, há pluralismo! O mesmo pode repetir-se três ou quatro vezes no mesmo serviço de notícias! É o pluralismo dos papagaios no seu melhor!
Uma consolação: nisto, governos e partidos parecem-se uns com os outros. Como os canais de televisão.
Por António Barreto
Os serviços de notícias de uma hora ou hora e meia, às vezes duas, quase únicos no mundo, são assim porque não se pode gastar dinheiro, não se quer ou não sabe trabalhar na redacção, porque não há quem estude nem quem pense. Os alinhamentos são idênticos de canal para canal. Quem marca a agenda dos noticiários são os partidos, os ministros e os treinadores de futebol. Quem estabelece os horários são as conferências de imprensa, as inaugurações, as visitas de ministros e os jogadores de futebol.
Os directos excitantes, sem matéria de excitação, são a jóia de qualquer serviço. Por tudo e nada, sai um directo. Figurão no aeroporto, comboio atrasado, treinador de futebol maldisposto, incêndio numa floresta, assassinato de criança e acidente com camião: sai um directo, com jornalista aprendiz a falar como se estivesse no meio da guerra civil, a fim de dar emoção e fazer humano.
Jornalistas em directo gaguejam palavreado sobre qualquer assunto: importante e humano é o directo, não editado, não pensado, não trabalhado, inculto, mal dito, mal soletrado, mal organizado, inútil, vago e vazio, mas sempre dito de um só fôlego para dar emoção! Repetem-se quilómetros de filme e horas de conversa tosca sobre incêndios de florestas e futebol. É o reino da preguiça e da estupidez.
É absoluto o desprezo por tudo quanto é estrangeiro, a não ser que haja muitos mortos e algum terrorismo pelo caminho. As questões políticas internacionais quase não existem ou são despejadas no fim. Outras, incluindo científicas e artísticas, são esquecidas. Quase não há comentadores isentos, ou especialistas competentes, mas há partidários fixos e políticos no activo, autarcas, deputados, o que for, incluindo políticos na reserva, políticos na espera e candidatos a qualquer coisa! Cultura? Será o ministro da dita. Ciência? Vai ser o secretário de Estado respectivo. Arte? Um director-geral chega.
Repetem-se as cenas pungentes, com lágrima de mãe, choro de criança, esgares de pai e tremores de voz de toda a gente. Não há respeito pela privacidade. Não há decoro nem pudor. Tudo em nome da informação em directo. Tudo supostamente por uma informação humanizada, quando o que se faz é puramente selvagem e predador. Assassinatos de familiares, raptos de crianças e mulheres, infanticídios, uxoricídios e outros homicídios ocupam horas de serviços.
A falta de critério profissional, inteligente e culto é proverbial. Qualquer tema importante, assunto de relevo ou notícia interessante pode ser interrompido por um treinador que fala, um jogador que chega, um futebolista que rosna ou um adepto que divaga.
Procuram-se presidentes e ministros nos corredores dos palácios, à entrada de tascas, à saída de reuniões e à porta de inaugurações. Dá-se a palavra passivamente a tudo quanto parece ter poder, ministro de preferência, responsável partidário a seguir. Os partidos fazem as notícias, quase as lêem e comentam-nas. Um pequeno partido de menos de 10% comanda canais e serviços de notícias.
A concepção do pluralismo é de uma total indigência: se uma notícia for comentada por cinco ou seis representantes dos partidos, há pluralismo! O mesmo pode repetir-se três ou quatro vezes no mesmo serviço de notícias! É o pluralismo dos papagaios no seu melhor!
Uma consolação: nisto, governos e partidos parecem-se uns com os outros. Como os canais de televisão.
Por António Barreto
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domingo, 28 de maio de 2017
Viver à custa dos outros...
Há quem faça disso um programa político: viver à custa dos outros! A defesa é paga pela América. As dívidas serão pagas pelos credores. Os investimentos pelos europeus. Os estrangeiros que paguem a nossa protecção.
Nas vésperas da cimeira da NATO em Bruxelas, o ministro da Defesa português prestou declarações às televisões. Não terão sido esclarecimentos formais, em ocasião oficial, mas o tom é elucidativo. Confirmou o ministro, com um sorriso de boa-fé, que era verdade que Portugal não cumpria os seus deveres para a segurança colectiva, nem sequer o compromisso mínimo estabelecido para a despesa com a defesa nacional, que é de 2% do PIB. Mas disse também que era preciso considerar a nossa contribuição qualitativa! Esta última é um mistério. As ilhas atlânticas? O mar? As praias? Algo que seja só nosso e mais ninguém tenha? Ou um jeito português especial?
Dos 28 membros da NATO, apenas cinco cumprem: Estados Unidos, Grã-Bretanha, Polónia, Estónia e Grécia. Todos os outros ficam abaixo dos 2%. Como Portugal, com 1,3%. Menção especial para a França, com 1,7%, a Alemanha 1,2%, a Itália 1,1% e a Espanha 0,9%!
Infelizmente, Donald Trump tem razão. Diz ele que os Estados Unidos não estão dispostos a pagar pelos outros sem que estes cumpram os seus compromissos. E ameaça os europeus. Não se sabe bem de quê, mas deve querer dizer coisa má. O problema é que, neste caso, está certo. Cada país membro da NATO tem de pagar pela sua defesa. A maior parte não paga os 2%. Preferem gastar com coisas mais agradáveis e entregar-se à protecção do poderio americano. A ideia é simples: tudo quanto ameaça a Europa ameaça também os americanos. Como estes são mais fortes e mais ricos, eles que se ocupem disso. E nem sequer a União tem uma política própria de defesa, muito menos uma capacidade autónoma.
Pode ainda recordar-se que, há quase vinte anos, a maioria dos partidos parlamentares (se bem me lembro, a única reserva foi do PCP...) acabou com o serviço militar obrigatório. Sem mais. Sem qualquer espécie de ideia sobre o que poderia ser uma contrapartida civil ou de solidariedade. Na verdade, foi a boa demagogia da facilidade e as velhas juventudes partidárias que forçaram a decisão! Mas a ideia estava dada: não se gasta com a defesa, há coisas mais importantes. E, de qualquer maneira, a NATO e os americanos estão aí para nos proteger.
Há actividades assim, em que alguém paga, alimenta ou mantém outrem! Eis uma relação que tem tradicionalmente um nome bem feio... E que se aplica às relações entre americanos e europeus na área da defesa.
Portugal não é um caso raro nem pior do que os outros. Há mais de vinte países da NATO que não respeitam os compromissos nem cumprem as suas obrigações. Dependem dos Estados Unidos. Até ao dia em que Donald Trump lhes dirá: "Não pagam pela vossa segurança? Então deixaremos nós de pagar. Ou não garantimos a vossa liberdade. Ou então exigimos contrapartidas políticas!" Nesse dia, toda a Europa, com excepção da Grã-Bretanha e pouco mais, se elevará contra a prepotência imperialista americana.
Esta atitude não está isolada. Faz lembrar a de tantos que entendem que os credores devem obedecer aos devedores e que aqueles a quem devemos dinheiro têm de fazer o que queremos e aceitar as nossas condições. Há quem faça disso um programa político: viver à custa dos outros! A defesa é paga pela América. As dívidas serão pagas pelos credores. Os investimentos pelos europeus. Os estrangeiros que paguem a nossa protecção. Devem também pagar os juros e as dívidas, assim como aceitar a renegociação e o perdão da dívida. E devem subsidiar o desenvolvimento. Há mesmo quem queira obrigar os estrangeiros a pagar pela educação em Portugal, dado que depois se aproveitam dos emigrantes portugueses, cuja formação foi paga pelo país. É tão conveniente ter o nosso patriotismo pago por outros! E a independência subsidiada!
Os povos e os Estados têm o direito de não pagar a defesa nem as Forças Armadas. Como têm o direito de pedir emprestado a fim de financiar os seus investimentos. Não têm é o direito de exigir que outros os defendam, que outros paguem os seus militares e que outros arrisquem a vida em sua defesa. Nem têm legitimidade para exigir que lhes paguem ou perdoem as dívidas. Em poucas palavras: não têm o direito de viver às custas dos outros, ao mesmo tempo que reclamam a independência e o direito a serem tratados como iguais. Até porque não são iguais. Nem independentes.
Por António Barreto
Nas vésperas da cimeira da NATO em Bruxelas, o ministro da Defesa português prestou declarações às televisões. Não terão sido esclarecimentos formais, em ocasião oficial, mas o tom é elucidativo. Confirmou o ministro, com um sorriso de boa-fé, que era verdade que Portugal não cumpria os seus deveres para a segurança colectiva, nem sequer o compromisso mínimo estabelecido para a despesa com a defesa nacional, que é de 2% do PIB. Mas disse também que era preciso considerar a nossa contribuição qualitativa! Esta última é um mistério. As ilhas atlânticas? O mar? As praias? Algo que seja só nosso e mais ninguém tenha? Ou um jeito português especial?
Dos 28 membros da NATO, apenas cinco cumprem: Estados Unidos, Grã-Bretanha, Polónia, Estónia e Grécia. Todos os outros ficam abaixo dos 2%. Como Portugal, com 1,3%. Menção especial para a França, com 1,7%, a Alemanha 1,2%, a Itália 1,1% e a Espanha 0,9%!
Infelizmente, Donald Trump tem razão. Diz ele que os Estados Unidos não estão dispostos a pagar pelos outros sem que estes cumpram os seus compromissos. E ameaça os europeus. Não se sabe bem de quê, mas deve querer dizer coisa má. O problema é que, neste caso, está certo. Cada país membro da NATO tem de pagar pela sua defesa. A maior parte não paga os 2%. Preferem gastar com coisas mais agradáveis e entregar-se à protecção do poderio americano. A ideia é simples: tudo quanto ameaça a Europa ameaça também os americanos. Como estes são mais fortes e mais ricos, eles que se ocupem disso. E nem sequer a União tem uma política própria de defesa, muito menos uma capacidade autónoma.
Pode ainda recordar-se que, há quase vinte anos, a maioria dos partidos parlamentares (se bem me lembro, a única reserva foi do PCP...) acabou com o serviço militar obrigatório. Sem mais. Sem qualquer espécie de ideia sobre o que poderia ser uma contrapartida civil ou de solidariedade. Na verdade, foi a boa demagogia da facilidade e as velhas juventudes partidárias que forçaram a decisão! Mas a ideia estava dada: não se gasta com a defesa, há coisas mais importantes. E, de qualquer maneira, a NATO e os americanos estão aí para nos proteger.
Há actividades assim, em que alguém paga, alimenta ou mantém outrem! Eis uma relação que tem tradicionalmente um nome bem feio... E que se aplica às relações entre americanos e europeus na área da defesa.
Portugal não é um caso raro nem pior do que os outros. Há mais de vinte países da NATO que não respeitam os compromissos nem cumprem as suas obrigações. Dependem dos Estados Unidos. Até ao dia em que Donald Trump lhes dirá: "Não pagam pela vossa segurança? Então deixaremos nós de pagar. Ou não garantimos a vossa liberdade. Ou então exigimos contrapartidas políticas!" Nesse dia, toda a Europa, com excepção da Grã-Bretanha e pouco mais, se elevará contra a prepotência imperialista americana.
Esta atitude não está isolada. Faz lembrar a de tantos que entendem que os credores devem obedecer aos devedores e que aqueles a quem devemos dinheiro têm de fazer o que queremos e aceitar as nossas condições. Há quem faça disso um programa político: viver à custa dos outros! A defesa é paga pela América. As dívidas serão pagas pelos credores. Os investimentos pelos europeus. Os estrangeiros que paguem a nossa protecção. Devem também pagar os juros e as dívidas, assim como aceitar a renegociação e o perdão da dívida. E devem subsidiar o desenvolvimento. Há mesmo quem queira obrigar os estrangeiros a pagar pela educação em Portugal, dado que depois se aproveitam dos emigrantes portugueses, cuja formação foi paga pelo país. É tão conveniente ter o nosso patriotismo pago por outros! E a independência subsidiada!
Os povos e os Estados têm o direito de não pagar a defesa nem as Forças Armadas. Como têm o direito de pedir emprestado a fim de financiar os seus investimentos. Não têm é o direito de exigir que outros os defendam, que outros paguem os seus militares e que outros arrisquem a vida em sua defesa. Nem têm legitimidade para exigir que lhes paguem ou perdoem as dívidas. Em poucas palavras: não têm o direito de viver às custas dos outros, ao mesmo tempo que reclamam a independência e o direito a serem tratados como iguais. Até porque não são iguais. Nem independentes.
Por António Barreto
quarta-feira, 26 de março de 2014
domingo, 20 de janeiro de 2013
“Este governo é cobarde”
António Barreto em entrevista ao Jornal i, que pode ser vista aqui
Quais são os seus votos para 2013?
Que haja uma alteração importante no modo como as autoridades, as forças políticas, as forças sociais, a população e os jornais encaram a discussão dos nossos problemas políticos, económicos e financeiros. Estou muito desconsolado e muito desgostoso pela maneira como as coisas estão a correr.
E como estão a correr?
O governo informa pouco e mal, a oposição quer saber pouco e mal, o tom geral da discussão é calunioso e boçal, as pessoas acusam-se umas às outras, nunca por menos de mentiroso, bandido, criminoso, aldrabão, intrujão… As coisas que se dizem no parlamento, as coisas que se dizem na televisão, as coisas que se dizem nos jornais tornam impossível qualquer espécie de discussão racional. Eu não sou dado a consensos, mas alguns são precisos ou não se vai a sítio algum.
Diz-se que esta é a geração mais bem preparada...
Eventualmente, pode ser uma geração muito bem preparada, mas não sei de que ponto de vista. Tecnicamente já se percebeu que não, têm falhado as previsões todas, têm falhado as discussões todas. Moralmente, acho que não. O clima geral de promiscuidade e de corrupção que há no país também não é a melhor preparação moral. Talvez tenha melhor preparação cultural ou a nível universitário… Nos modos e costumes de tratamento e de comportamento entre as classe dirigentes, políticas ou económicas também não se vê essa preparação.
Isso muda-se?
Não sei. Na minha idade já não se muda. A alteração vai ser longa, vai demorar anos a reparar, arranjar, vai levar anos a tentar recobrar. Não é pêra doce, não vai ser nada fácil, e a esperança de que as coisas podem ser depressa e bem é irrealista. Vão sobrar – já sobram hoje! – profundas cicatrizes e sequelas de difícil resolução. E é para isso que nós agora estamos lançados: anos e anos de recuperação.
Neste momento estão a abrir-se mais feridas ou já se estão a fechar algumas para que possam cicatrizar?
Não se está a fechar nada. Estão-se a abrir mais feridas e mais impossibilidade de as resolver. Sem um plano a médio prazo para levar a cabo nos próximos quatro, cinco, seis, sete, oito anos, nada se poderá fazer. Sem um entendimento político suficiente, o que envolverá uma parte do poder político ou do poder parlamentar mais considerável que a actual, o acordo não é possível. E já se percebeu não só que o acordo é periclitante, como a maioria é reduzida, como se percebeu que dentro da coligação há brechas profundas e feridas profundas, como dentro do próprio PSD, o partido maioritário, há brechas e fracturas profundas.
Sem consenso político Portugal não chega lá?
A incompreensão por parte da população ou das forças políticas, dos partidos políticos, de que sem isto não se consegue chegar a sítio nenhum é aflitiva. Parece que tem de se chegar ao desastre para depois se perceber o que é preciso para curar o desastre.
Qual o papel da população?
Pode votar ou exercer pressão aqui e ali.
Já votou…
Terá de votar outra vez, um dia, não sei quando. A população tem três maneiras de agir. Uma delas é votar, regularmente e periodicamente, que é assim que deve ser. Depois manifestar-se – e vai-se manifestando cada vez mais ao longo destes anos. Por fim, exercer pressão através das suas associações, das suas forças, dos seus sindicatos, das confederações.
“Se não houver nos próximos tempos uma grande reforma, Portugal corre o risco de sofrer uma revolução.” Sabe quem disse esta frase, em 2011?
Posso ter sido eu, até.
Foi. Mantém?
Mantenho.
Recentemente Mário Soares apelou à revolução. É disso que fala?
Eu não quero que haja uma revolução, eu não espero que haja uma revolução, considero que se houver uma revolução é negativo para o país, é negativo para a população, é negativo para a liberdade, é negativo para a democracia e é negativo para os direitos individuais. Limito- -me a recear que, se esta miopia das forças políticas continuar, se a ignorância do que são as condições necessárias para resolver os nossos problemas, esta incapacidade ou impossibilidade de entendimentos mais sólidos e mais profundos entre várias forças continuar. Continuarão a esticar a corda, continuarão a chegar relatórios do Fundo Monetário Internacional e mais medidas em que o objectivo essencial parece ser continuar a esfolar, a esfolar, a esfolar… E um dia acontece o mal. Um dia dá para o torto.
O governo vai tomando medidas, vai reformando. Vê-lhes coerência, concorda que é necessário reformar o Estado?
Se alguém quer reformar o Estado, o que eu acho muito bem, já devíamos ter começado há 15 anos, ou há dez, ou há cinco…
Ou agora?
Ou agora. Mas é preciso, em primeiro lugar, partilhar com a população o Estado que se pretende. Discutir os objectivos, os horizontes. Que Estado queremos? Grande, pequeno, rico, pobre, com força, sem força, com autoridade, descentralizado, concentrado? Como deve ser em relação à Europa, em relação aos municípios, às freguesias? Isto tudo tem de ser mais discutido, debatido, e só depois de se saber o que se quer, para onde se vai, se faz o caminho.
Como viu o relatório do FMI?
Devo dizer que é, em numerosos parágrafos, absolutamente justo, porque revela ou sublinha o que muitas pessoas sabem mas não querem dizer em público. Aliás, há muitas coisas que é o próprio governo que diz, mas faz com que seja o Fundo Monetário Internacional a dizer para não ter de ser o governo a fazê-lo. O que é ridículo, é de um altíssimo grau de cobardia.
Quais são as coisas que todos sabem e não querem assumir?
Sabe-se há muitos anos que tem de haver uma alteração nos funcionários públicos, uma alteração no Estado de protecção social, que há grupos sociais e grupos profissionais que são muitíssimo privilegiados em relação a outros e que vivemos assim durante 20 ou 30 anos, alegremente. Tudo isto é verdade e – eu li-o –, o relatório põe o dedo nessas feridas. Com certeza não são imbecis, não são estúpidos. Toda a gente diz: “Ah, tratam Portugal como se fosse a Indonésia, as Filipinas ou a Costa Rica porque para eles os países são todos iguais.” Não é verdade! Muito do que vem no relatório do FMI está perfeitamente identificado.
Como, por exemplo?
Tem-se medo de dizer que, no conjunto europeu, os professores são mais bem tratados que os professores dos outros países, ou que os funcionários públicos têm um regime global muito privilegiado em relação aos trabalhadores do privado, que há inúmeras excepções para os emigrantes, para os habitantes dos Açores, para os residentes na Madeira, para as pessoas do Interior, para os filhos dos emigrantes, para os filhos destes, daqueles e daqueloutros. Há inúmeras situações de privilégios e privilégios. Sabe--se isto tudo há muitos anos e os governos fogem sempre a discutir isso. Porque isso não dá votos, não serve para a demagogia. E então põe-se o FMI ao serviço.
O governo não assume as suas políticas?
Tem tentado mostrar à população que está a ser forçado a tomar estas medidas. São peripécias que se fazem todos os dias, mas neste caso tomaram uma dimensão mais séria. Já não são pequenas fugas para a imprensa, um papel que se deixa cair, são programas a sério, como o caso do FMI, do Banco Central, até da OCDE. Anuncia por interposta pessoa, para mostrar que as coisas vêm de fora para se desculpar e também para ter espaço de manobra, ver como as medidas são acolhidas. Considero tudo isto cenografia adolescente e fútil. A grande política não se faz assim.
Este governo é cobarde?
Acho que sim. Neste caso acho que sim, é um governo cobarde. O governo toma as medidas que tem de tomar, muitas delas terríveis e algumas justas, ainda por cima, e toma-as de supetão, manda para a rua, como quem atira pedras, bumba! Têm tido coragem para tomar medidas, mas era muito mais corajoso tornar as coisas públicas antes, discutir e envolver os parceiros sociais. Isso era coragem.
Não haveria o risco de não passar da discussão à acção?
Mas não há outra maneira de viver em paz e em democracia. Fazer as coisas inesperadamente, de supetão, é fazer as coisas mal feitas. É por isso que se fazem disparates uns atrás dos outros, com inconstitucionalidades. Há sempre um tempo de discussão e um tempo de decisão, mas este governo parece só gostar do tempo da decisão. O clima que vivemos em Portugal é muito pouco apropriado à resolução dos nossos problemas. O Conselho Económico e Social reúne pouco e mal, as autoridades públicas vão ao parlamento e é uma berraria pegada – não conheço nenhum parlamento no mundo, a não ser o italiano em período de crise com o Berlusconi ou o da Coreia do Sul, onde de vez em quando se pegam à pancada assim. O nosso parlamento não serve para discutir nada, nada. Não há clima de civilização, de boa educação, de racionalidade… Tenho impressão que quanto menos razão as pessoas têm mais insultam.
Mas não se chega a acordo por decreto, ou chega?
Por isso digo que tenho a impressão que os partidos, governo e oposição, vão precisar de chegar ao desastre para perceber que têm de mudar de comportamento. Isto vem nos livros. Há os que mudam por vontade e os que mudam por necessidade, e normalmente a necessidade vem depois do desastre.
O Presidente da República pode impedir o desastre?
O papel do Presidente da República é o papel que ele definiu para si próprio. E o papel que ele definiu para si próprio é o papel de última instância, último árbitro. Eu não estou de acordo, mas é o papel que ele definiu para si e que tem vindo a assumir.
Os políticos portugueses são banais?
A comparar com quê? São melhores na Espanha, na Itália, na França? Só se for a comparar com um período romântico. Os políticos europeus de hoje são muitíssimo parecidos uns com os outros. Falam uma linguagem codificada, apostam muito na demagogia eleitoral, estão absolutamente tolhidos pela imagem, pelo que parece, é-lhes mais ou menos indiferente o que é, o que deve ser ou o que pode ser, o espectáculo é que é importante. O efémero é que é importante. Há uma concepção quase comercial da vida política. O que importa é ganhar, ter uma margem grande, esmagar os outros. Podiam ser todos como Churchill ou Charles de Gaulle? Bem, eu também gostava de ter políticos como os do século xix em Portugal, pessoas interessantes, capazes de ter bons discursos, cultas, capazes de escrever artigos e livros. Não é o que temos, nem em Portugal, nem na Europa. Temos discursos estereotipados, lugares comuns, sistematicamente, da freguesia à autarquia, ao governo, à Comissão Europeia, ao banco central, às reuniões internacionais.
Mas há gente interessante, ou não?
Sim, mas ocupam-se menos de política. Ocupam-se do lazer, da cultura, da família, da profissão, do sexo, da música, do cinema… Acham que tudo isso é mais interessante que a política – até que a política um dia acabe por dar cabo deles. Então aí a sociedade voltará a interessar--se pela política.
Se houvesse um governo de emergência nacional, de salvação nacional…
Não me vai fazer aceitar nenhum dilema de impasse. As pessoas são o que são. Nestas condições, com as pessoas estúpidas, burras ou inteligentes, é o que temos e é com esses que temos de trabalhar. Não vamos mandar vir de Marte, ou japoneses… Quando falo numa grande coligação, é porque são essas as condições políticas.
O que ia perguntar-lhe era se esse governo seria fruto de eleições antecipadas ou de uma escolha presidencial...
Se o Presidente da República nomeia o governo, e se é eleito com essa missão, não sou contra. O presidente da República em França nomeia governo, o presidente nos EUA nomeia o governo. Acontece que a nossa constituição não lhe dá esse poder, tem de ser o parlamento a nomear o governo.
Passando para outras eleições, o que acha que vai acontecer nas autárquicas?
Em condições normais a abstenção aumentaria, tem sido essa a tendência nos últimos 20 anos. Agora a população está tão ácida, zangada, e sobretudo aflita, que há duas reacções contraditórias possíveis. Pode acontecer que a população queira aproveitar as eleições para castigar ou que, dadas as circunstâncias, as pessoas queiram mostrar indiferença e não votem.
Vê António José Seguro como alternativa ao actual governo?
Não, acho que é igual ao Dr. Passos Coelho. São iguais, um no poder, outro na oposição. Ambos têm uma linguagem e uma maneira de fazer política muito estereotipada. Ambos tiveram um interesse importante: nenhum estava muito interessado em falar com o outro. O primeiro-ministro não quis atrair o PS à discussão e ao Dr. Seguro – porque está meio dentro, meio fora, por causa da troika, porque queria estar longe de Sócrates –, dava-lhe jeito não ter responsabilidades a mais na discussão com o governo. Como acontece às vezes com os casais, não estavam de acordo em nada a não ser na separação.
E entre o CDS e o PSD, é mais o que os une ou o que os separa?
Ainda é superior o que os une. O problema é que o PP não quer pagar as favas dos méritos ou deméritos do outro, que são grandes. Quando o PP entra numa coligação, a primeira coisa que faz é pensar em que altura vai sair: no pico dos benefícios e no mais baixo dos inconvenientes. Por isso rapidamente lança o nervosismo. A questão é que o PP não tem espaço de crescimento à direita, só tem espaço de crescimento à esquerda, isto é, à custa do PSD. A concorrência ácida entre PSD e PP é superior à que existe entre o PSD e o PS, em que os dois têm espaço de crescimento à esquerda e à direita.
A situação a que o país chegou é fruto de muitas políticas. O que se pode fazer para, a partir de agora, se corrigirem desvios em tempo útil?
O quadro de uma revisão constitucional seria o ideal para isso, desde que tivéssemos tempo, um ou dois anos. Há qualquer coisa no domínio do escrutínio dos governos e da fiscalização das suas políticas que a meu ver devia ser revisto. Ainda hoje o Tribunal de Contas não tem poderes suficientes, nem de exame nem de fiscalização, para impedir que se prossiga na via errada. O Tribunal de Contas e instituições como o Supremo Tribunal de Justiça, o Supremo Tribunal Administrativo, a Procuradoria-Geral da República deviam ter uma intervenção mais funda para impedir erros e irregularidades sistemáticos. Não estou a sugerir – e repito muito sublinhado – que se penalize em tribunal e com pena de prisão quem governa mal. Estou a sugerir que o conjunto das entidades tenha poderes de travagem e de bloqueio de decisões.
A revisão constitucional é imperativa?
O que mais gostaria que acontecesse em Portugal, globalmente, é que fossemos capazes de pensar uma nova constituição com tempo e com razão. A impunidade política, financeira, do sector público, a maneira como o debate e o diálogo se processam, para não falar na organização da justiça, tudo isso exige uma revisão constitucional, não tenho qualquer dúvida.
Foi muito atacado porque disse que há muitos anos que sabe que as parcerias público-privadas têm cláusulas secretas. Porque veio dizer isso agora?
Este ano não foi a primeira vez que falei nisso, já o tinha feito há três anos na televisão. O que quero dizer é que criei a convicção, ao longo destes últimos seis anos, de que há cláusulas secretas nas PPP. Aliás, já fui ouvido pelo departamento de acção penal, pela Polícia Judiciária, pelo parlamento, já testemunhei por escrito e esclareci o que tinha a esclarecer. Mas um juiz do Tribunal de Contas disse expressamente que há cláusulas não sabidas e que os documentos das parcerias não estavam completos. Também já se fizeram revisões de contratos em que, de repente, o governo poupou mil milhões, oitocentos milhões. Se é tão fácil revê-los... Ainda hoje estou convencido que as autoridades já deviam ter feito uma análise completa de todos os contratos de parcerias público-privadas para saber se há ou não cláusulas secretas e de contingência. Temos o direito de saber.
A Fundação Francisco Manuel dos Santos, a que preside, elaborou um relatório sobe a justiça, que tem vindo a apresentar...
Concentrámo-nos na justiça económica. Os nossos autores fazem uma proposta de revisão global do Código do Processo Civil e consideram que há muitas coisas que pura e simplesmente têm de ser deitadas fora. São as conclusões de uma ampla análise de processos, de propostas de encarregados de contencioso, advogados e juízes. Temos programadas até Julho sessões públicas e de discussão para tentar levar a carta a Garcia, levar o recado até ao fim.
Sobre as fundações, o governo prometeu mundos e fundos, acabar com subsídio-dependentes... Ficou tudo na mesma?
Devo dizer que felizmente foi prorrogado mais seis meses o prazo para alterar os estatutos. O processo é longo, porque é preciso mudar órgãos sociais, reeleger curadores, fundadores, administrativos, etc. Em relação ao que se passou em geral, foi mais um caso de política precipitada. O governo, aliás, diz que prometeu à troika um prazo e teve de fazer a correr. Fez mal e está a corrigir a mão. Parece que daqui a pouco tempo há mais algumas fundações que vão ou desaparecer ou fundir-se ou ter regras diferentes. Esperemos que sim. Sem mortos nem feridos, mas é um exemplo de que fazer sob pressão é fazer mal.
Passa-se o mesmo com as privatizações?
Sim. A necessidade de privatizar com data marcada deve ser chumbada num exame de Economia do 12.o ano. Se quer vender qualquer coisa, não pode fazê-lo com a obrigação de um prazo, porque isso degrada o preço, degrada as condições, transforma o comprador em rei e senhor e o vendedor num lacaio e escravo, que foi o que aconteceu. A minha convicção é que as privatizações, a terem de se fazer, deviam ser feitas sem qualquer espécie de condição e prazo, correr os seus processos normais, que é ter vários interessados, discutir o que se pretende com a compra e com a venda. O que aqui não houve. Parece que houve uma privatização que correu muito bem e que os resultados deram mais dinheiro do que se estava à espera... Esse facto, para mim, não chega para aceitar a ideia geral de privatizar à força.
Há empresas sobre as quais as pessoas têm posições muito extremadas, a TAP é uma delas. Acredita que vai ser privada?
Não sei, sinceramente. As pessoas têm uma atitude muito dividida para com a TAP: não, nunca, jamais. Outras pensam o mesmo sobre a água ou sobre os cimentos. A aceitar estas razões, então tudo tem de ser público. Não há para mim nenhuma empresa pública que mereça uma consideração excepcional, a não ser a RTP.
Porque é que a RTP é um caso à parte?
Porque a minha convicção é que se trata de um serviço público. Há um serviço de elevação cultural da população – repare que eu não digo de informação, de entretenimento ou de interesses locais – que eu sei que os privados não fazem nem nunca farão. Porque custa dinheiro, é caro, e não gera lucros. E acho que um país, uma nação, um Estado tem o direito, mal feito fora, de dizer que vamos ocupar desta maneira a elevação cultural e moral do povo português.
E a televisão pública já presta hoje essa serviço cultural de que fala?
Não, a minha programação de um serviço público de televisão não é obviamente a da RTP actual. Teria de ser uma RTP diferente. Nos Estados Unidos há o PBS [Public Broadcasting Service], que são dezenas de canais organizados a nível local, nacional, etc. Eu não tenho um plano para o serviço público português, mas quero que ele exista e que garanta a elevação cultural, não quero que faça concursos, desporto, futebol, nem sequer informação, até porque a informação da RTP hoje não é melhor que a dos outros.
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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
ANTÓNIO BARRETO: QUESTÕES DE CIDADANIA
Questões de cidadania
.Advertência
Este foi o texto que apresentei em Coimbra durante uma reunião do Clube dos Rotários de Coimbra Olivais. Como se pode ver, nada de semelhante com as declarações que me são atribuídas a propósito dos direitos sociais e da crise.
NOS TEMPOS ACTUAIS, todos os dias assistimos à referência permanente aos direitos humanos e aos direitos dos cidadãos. Tudo se transformou em direitos. Vida, expressão, associação, deslocação, privacidade, bom nome e reputação, escola, cultura, saúde, segurança social, emprego, habitação... Há dias, um antigo presidente da República disse mesmo que “a água de boa qualidade é um direito humano fundamental”.
A esta explosão de direitos, parece nada haver a opor. Seria uma espécie de progresso das sociedades. Quanto mais direitos, mais igualdade, mais democracia, mais liberdade e mais segurança.
Contra esse optimismo inocente, há todavia reservas. A primeira é quase melancólica. Em princípio, não deveria haver direitos sem deveres e contrapartidas. Esse não parece ser o caso. A modernidade política e cultural incide sobretudo na proliferação dos direitos, não na confirmação dos deveres correspondentes. Os dirigentes políticos são pródigos em direitos, sobretudo nas leis e na Constituição, mas são aparentemente mais contidos na questão dos deveres. Na verdade, são assim porque não querem pagar o ónus eleitoral da afirmação de deveres, mas desejam colectar as vantagens do alargamento dos direitos. O que não impede que as leis correntes consagrem cada vez mais obrigações: taxas, pagamentos, multas, procedimentos, proibições, autorizações, licenças, alvarás, etc. Há mais direitos, menos deveres, mas os cidadãos são cada vez mais dependentes. Até porque são frequentes as obrigações que colidem directamente com direitos antigos. Por exemplo, os dispositivos de vigilância e controlo (chips dos automóveis, câmaras de vídeo, cartão único de cidadão, etc) contrariam os direitos de privacidade e de liberdade de deslocação.
A segunda reserva é mais séria. A identificação e a equiparação de direitos de várias espécies e de vantagens, privilégios, estatutos e benefícios só podem ser prejudiciais para o que é realmente importante: os direitos humanos e os direitos dos cidadãos. Na verdade, cada espécie de direitos tem a sua forma específica de garantia e de protecção. Ora, uma equiparação excessiva conduz necessariamente a uma banalização do significado e do conteúdo de cada direito. Uma falha ou uma violação do meu direito à integridade física ou de votar deve ser severamente punida: tanto o Estado como a sociedade têm o dever de proteger os meus direitos fundamentais e de castigar os prevaricadores. Violações contra esses direitos são crimes públicos. Não são comparáveis com falhas aos meus direitos ao emprego, ao trabalho, à habitação ou ao descanso. Por isso não se trata da mesma espécie de direitos.
Há cada vez mais a tendência para este alargamento de conceito. Hoje, a cidadania é uma soma vastíssima de direitos, incluindo, para além dos humanos, cívicos e políticos, os chamados direitos sociais, económicos, culturais, ao ambiente, à qualidade de vida e, por que não, à felicidade. Creio que esta tendência é errada. Tanto teoricamente como na vida prática.
É sobre as diferenças entre estes direitos e suas implicações que me proponho discorrer nesta sessão convosco.
Gostaria de, com algumas breves considerações, delimitar o conceito de cidadão. Não qualifico nem adjectivo o conceito. Um cidadão com mais ou menos poder é à mesma um cidadão. Um analfabeto é tão cidadão quanto um catedrático. Um cidadão com saúde ou doente é igualmente um cidadão. Um cidadão activo e empenhado na participação cívica e política é tão cidadão quanto um outro passivo, distante e alheado das causas comuns. Um cidadão preso e condenado por crime é um cidadão, mesmo se tem alguns dos seus direitos temporariamente limitados. Uma pessoa que vota é tão cidadão quanto aquela que se abstém. Um cidadão a viver num país onde existe um serviço público de saúde, de educação ou de segurança social é tão cidadão quanto um outro a viver num país onde não existe qualquer forma pública de prestação de cuidados de saúde. Mas um escravo não é um cidadão. E um estrangeiro, com menos direitos que os nacionais, não é um cidadão a parte inteira.
O mesmo digo dos conceitos de cidadania. Não qualifico esta última com adjectivos, qualificações ou circunstâncias. A cidadania não implica humanização ou decência. Um malfeitor é um cidadão. Um rebelde é um cidadão igual a um indivíduo conformado e bem comportado. A bondade, a decência e a eficiência são muito importantes na organização das sociedades e dos serviços públicos, mas não resultam da cidadania. Todos estes são conceitos que derivam de outros valores e de outras entidades. A moral pública, por exemplo. Ou a qualidade de um regime político. Ou ainda as tradições culturais de um povo. Finalmente, a exigência, certamente moral, mas também cultural, de comportamentos que respeitem os outros ou que valorizem a integridade e a autonomia dos seres humanos e dos contemporâneos. O homem que agride a mulher e os filhos, o automobilista que ameaça os transeuntes, o passante que falha nos seus deveres de prestação de apoio a quem corre o risco de morrer, o esperto que passa à frente nas filas dos serviços públicos, são, apesar do seu comportamento moralmente reprovável, eventualmente juridicamente condenável, todos cidadãos com os mesmos direitos e deveres.
Não esqueçamos, por outro lado, que os conceitos sobre os quais reflectimos são conceitos mutáveis que adquirem valor e sentido diferentes conforme os países, as culturas e os tempos históricos. Por exemplo, cidadão já foi uma maneira de distinguir os homens livres dos servos ou dos escravos que com eles conviviam. Tempos houve, com efeito, em que cidadãos livres e escravos coexistiam. Hoje, admitir tal hipótese é negar o sentido essencial de cidadania que deve ser universal. A cidadania já foi um privilégio com exclusão de outros, sendo hoje um estatuto de vocação universal e que dificilmente admite exclusão de outrem. A cidadania, em Roma, era o privilégio de alguns. Noutras circunstâncias, na Idade Média, também. Hoje, é a condição de todos.
A categoria de cidadão já foi uma distinção entre nacionais e estrangeiros. Hoje, do mesmo modo, a tendência universal é a de equiparar estrangeiros e cidadãos em quase todas as situações, até mesmo, último reduto, no cumprimento de deveres militares ou no exercício do direito de voto. A Constituição portuguesa, e bem a meu ver, estipula sem reservas (a não ser a da capacidade eleitoral e política) que os cidadãos estrangeiros residentes em Portugal gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres que os cidadãos nacionais. Mesmo a excepção eleitoral foi posta em causa, dado que já é possível, aos cidadãos da União Europeia, exercer alguns direitos de voto em país estrangeiro e em determinadas circunstâncias.
Convém pois reter que direitos, deveres e cidadania são conceitos mutáveis e diversos conforme os tempos e os locais.
A cidadania é uma instituição ou um valor razoavelmente positivo, composta de exigências e atributos, em geral direitos e deveres, que estabelecem os padrões de comportamento entre os indivíduos e entre eles e as instituições que organizam a sociedade. Os atributos da cidadania tendem a ser os mais universais possíveis, sem interferência ou qualificação ideológica, étnica, religiosa, sexual e outra. Ao contrário dos códigos de conduta de inspiração moral e religiosa, os direitos e deveres dos cidadãos tendem a ser neutros desse ponto de vista. As regras de auxílio, de cortesia, de respeito, de civilidade, de estacionamento, de vestuário de comportamento no espaço público são ditadas por critérios morais, jurídicos, religiosos e políticos, mas não pelo critério da cidadania. Por isso, num Estado de direito moderno, quando os critérios étnicos, culturais ou religiosos colidem com o critério da cidadania, este deverá sobrepor-se sempre que estiver em causa o espaço público, as relações entre todos os membros da comunidade e a igualdade de todos perante a lei.
Uma questão muito interessante é a que se traduz na nossa Constituição. Tradicionalmente, os direitos dos cidadãos eram limitados aos direitos fundamentais, aos direitos humanos, aos direitos cívicos e aos direitos políticos. Já se notava aqui um alargamento: os direitos humanos, mais vastos na sua concepção do que os direitos de cidadania, eram já identificados, na linguagem corrente, mas também na Constituição, com os direitos dos cidadãos.
No século XX, uma evolução interessante conduziu ao alargamento da noção de direitos. Em resumo e abreviando, foram sendo criados novos direitos e chegou a falar-se de direitos de segunda e terceira geração. Entre estes, os direitos sociais assumem especial relevo.
Em Portugal, muito particularmente, os direitos sociais foram equiparados aos direitos fundamentais. Formam um capítulo integrado na primeira parte da Constituição intitulada “Direitos e deveres fundamentais”. Nem todas as Constituições o fazem. Talvez a maior parte o não faça. Quer isto dizer que, na ordem jurídica portuguesa, o “direito à saúde”, o “direito ao trabalho”, o “direito à educação” ou o “direito ao alojamento” estão equiparados, para todos os efeitos, aos direitos tradicionais de primeira geração.
Há, evidentemente, problemas. A garantia do direito à vida, à livre expressão, ao voto, à associação e à deslocação é e deve ser oferecida pelo Estado e pela Justiça, a custo, se for necessário, de força e coacção. O mesmo já não pode ser dito do “direito à saúde”, o “direito ao trabalho” ou o “direito à habitação”. Quer isto dizer que, apesar de um tratamento jurídico que os equipara, estes direitos acabam por ter um significado diferente. Num caso, estaremos diante de direitos impositivos, que exigem garantias efectivas e cujas violações podem constituir crimes públicos. Noutro caso, no dos direitos sociais, estamos diante de direitos programáticos que se traduzem numa espécie de aconselhamento do Estado, dos governos e das instituições no sentido de resolver alguns problemas sociais como sejam o desemprego ou a doença. Os direitos sociais obedecem a um princípio ou critério de oportunidade. Os desempregados não têm garantido o seu direito ao trabalho e ao emprego, mas não é por isso que deixam de ser cidadãos, nem é por isso que têm razão de interpor processo seja a quem for.
Um caso interessante merece breve referência. Há um século ou século e meio, surgiu em vários países europeus a ideia de “escolaridade obrigatória”. Praticamente todos os países aderiram a este princípio e tornaram-no lei. Em certos casos, o princípio teve mesmo acolhimento constitucional. Qual a razão? Havia com certeza razões filosóficas, políticas e morais. Mas também havia outras. O Estado tinha interesse em obrigar os pais a enviar os filhos à escola. Militares, por exemplo: era necessário construir exércitos que falassem uma só língua e que se distinguissem dos outros. Económicas, sem dúvida: nas grandes empresas industriais, era indispensável comunicar e organizar o trabalho, o que só era possível com meios de comunicação formal numa só língua. Nacionalistas, com certeza: os Estados modernos nasceram, muitas vezes, com uma relação directa ao princípio de “uma língua, um povo, um Estado nacional”. Esta obrigatoriedade chegou a pontos inesperados, por exemplo, até à proibição de os pais instruírem os filhos em casa. Hoje, a escolaridade obrigatória é um conceito em perda de valor: foi substituído pelo “direito à educação”. Os objectivos são essencialmente os mesmos, suavizados e modificados pelos tempos e pela História, mas o critério primordial alterou-se: a obrigação transformou-se num direito.
Nos tempos que correm, as distinções são necessárias. A dignidade de cada variedade de direito é diferente. As garantias e a protecção do Estado e da Justiça também devem ser diferentes. Como diferentes são os deveres do Estado.
Diz-se com frequência que a pobreza, o desemprego, a falta de instrução ou o desconforto são atentados aos direitos dos cidadãos. Não é verdade. As condições sociais, económicas e culturais em que as pessoas vivem são condições para o exercício da cidadania, mas não constituem características do conteúdo desses direitos. As questões sociais e económicas podem facilitar e estimular ou dificultar o exercício dos direitos individuais e as condições de cidadania. Mas não são essenciais à definição dos direitos nem da cidadania. Um doente, um pobre, um deficiente, um rico e um analfabeto são sempre cidadãos. Um escravo não! Uma pessoa sem direitos individuais, sem direito de voto e sem liberdade de expressão e associação ou não é cidadão ou tem as suas capacidades de cidadania limitadas e coarctadas.
É verdade que as condições económicas e sociais condicionam os comportamentos individuais e colectivos, assim como as relações entre grupos e indivíduos. Como é verdade que os cidadãos que sofrem condições de despojamento, de miséria e de precariedade ou fragilidade não são talvez os mais aptos a exercitar os seus direitos de cidadão. Mas repare-se: são estes que muitas vezes permitem as pessoas lutar ou defender os seus interesses.
Há condições sociais, culturais e económicas que têm influência no exercício dos direitos dos cidadãos. A instrução, por exemplo. Saber ler e escrever, ter uma educação secundária, possuir uma formação profissional e uma cultura geral, ajudam fortemente à consciência dos direitos individuais e constitucionais, permitem melhor reclamá-los e defendê-los. Mas não são as condições sociais e económicas que criam esses direitos. Melhoram, as aptidões para o seu exercício, mas não os constituem, não lhes são essenciais.
Para terminar, uma rápida observação. Por que razão me empenho tanto em sublinhar a diferença entres estes direitos? Entre cidadania e moral? Entre civismo e decência? A primeira razão é porque não quero banalizar os direitos de cidadania. São, em certo sentido, mais invioláveis do que outros. São o princípio mesmo sobre o qual assentam as nossas instituições e a nossa liberdade. A segunda razão reside no paralelismo que estabeleço com a democracia. Também neste caso, para mim, o conceito não tem adjectivos nem qualificações. Democracia “económica”, “social” ou “cultural”: eis termos que não utilizo, nem lhes vejo utilidade. Democracia é um princípio político, um consenso, com dignidade constitucional, entre as classes dirigentes de um país e entre elas e a população. Esse consenso é estabelecido à volta de regras simples. Todos votam segundo a regra de uma pessoa um voto. O voto é secreto e individual. Quem vence governo e respeita a minoria. Há eleições periódicas e regulares. Todos se podem candidatar. Poucas mais são as regras. O resto, o acesso à cultura e à saúde, a frequência da escola e da universidade, a qualidade do ambiente e a tranquilidade das cidades, a harmonia nas relações humanas e a certeza do Direito são atributos das sociedades, dos seus princípios de organização moral e das suas tradições e costumes. Nada disso é democracia. Apesar de tudo isso ser tão bom quanto a democracia.
Rotary Club dos Olivais
Coimbra, 27 de Setembro de 2010
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segunda-feira, 26 de abril de 2010
António Barreto
"As revoluções são sempre incompletas, sempre"

Crítico do estado do País, António Barreto diz que Abril permitiu que os portugueses ficassem "um pouco mais iguais". Uma entrevista ao DN em que fala de Portugal e da política, de Cavaco Silva, José Sócrates e também de Passos Coelho.

Crítico do estado do País, António Barreto diz que Abril permitiu que os portugueses ficassem "um pouco mais iguais". Uma entrevista ao DN em que fala de Portugal e da política, de Cavaco Silva, José Sócrates e também de Passos Coelho.
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domingo, 4 de abril de 2010
Reforma do Estado por fazer
por António Barreto
EM PORTUGAL E NO MUNDO OCIDENTAL, há duas décadas, a palavra reforma transformou-se no santo-e-senha da política contemporânea. Para os governos, que as querem fazer ou fizeram; para as oposições, que denunciam os governos por as não fazer; para a sociedade civil que ora as deseja com entusiasmo, ora as receia e contraria com veemência; para as instituições internacionais, mais ou menos tecnocráticas, que as consideram sempre essenciais.
As reformas de que se fala, em todos os domínios da vida colectiva e pública, são as mais vastas e profundas que se possam imaginar: direitos dos cidadãos, educação, saúde, trabalho, segurança social, transportes, comunicações, regulação das actividades económicas, tudo necessitava de reformas a fim de permitir a mudança e o desenvolvimento. Parecia que um novo mundo se anunciava, com a globalização, a abertura das sociedades, a liberalização da economia e um novo conceito de liberdade e de direitos humanos. Boas ou más, com ou sem ideologia aparente, vivemos duas décadas de pressão para fazer reformas.
Este processo fez despertar a curiosidade: era interessante estudar as mudanças sociais em períodos mais largos do que normalmente se faz. Valia a pena olhar para três ou quatro décadas, de modo a englobar transformações políticas e outras de grande relevo, assim como a disseminação das novas ideias e a consolidação dos processos de mudança. E ao olhar para a mudança, verifica-se com curiosidade que, frequentemente, as mudanças sociais e económicas precedem as reformas. Muitas vezes, estas são feitas a fim de ajustar as instituições, o direito e as leis a novas realidades que os homens e as mulheres, as empresas e as associações, foram criando. Sublinho este facto importante: muitas mudanças, que obtiveram algum êxito ou que foram eficazes, fizeram-se sem recurso àquilo que se chama vulgarmente “reformas”, isto é, novas leis e novas instituições.
Desde que há dez ou quinze anos iniciei os meus estudos académicos sobre a mudança em Portugal, ao longo das últimas cinco ou seis décadas, impressionou-me sobretudo a rapidez com que muitas transformações se fizeram. Na demografia, na pluralidade, no estatuto das mulheres, nas actividades económicas, na organização do trabalho, na reconversão geopolítica da economia e da sociedade... Portugal exibia ritmos de mudança muito superiores aos dos outros países europeus. Tinha-se começado com atraso, é certo, mas a velocidade era indiscutível. Em muitos aspectos quantitativos, como a natalidade, o envelhecimento, a mortalidade, a alfabetização e a protecção social, foi-se muito longe, ultrapassaram-se mesmo níveis e padrões europeus, tudo em relativamente pouco tempo.
Mesmo assim, pensei quase sempre que se poderia ter ido mais longe. Era nítida a impressão de que se tinha perdido tempo, muito tempo. Com doze anos de guerra, muitos de autoritarismo e de sociedade fechada, com uma revolução e uma contra-revolução, com a nacionalização e a reprivatização, tinha-se perdido tempo. Talvez vinte, talvez trinta anos, quando comparados com outros países ocidentais.
Isso fazia com que, eventualmente, se explicasse o carácter inacabado de muitas reformas. Na verdade, em certos aspectos, como a Administração Pública, tinha-se demorado muito. Noutros, como na Educação e na Justiça, tinha-se assistido a uma grande alteração quantitativa, mas a pouco progresso qualitativo.
Ilustração rápida da educação. Níveis internacionais. Taxas de sucesso, de insucesso e de abandono. Pouca qualificação da força de trabalho. Reduzidos nível cultural dos diplomados.
Ilustração rápida da Justiça. Atrasos e demoras. Incerteza da justiça. Conflitos e querelas. Perda de prestígio e autoridade dos magistrados.
Por outro lado, à medida que avançávamos no tempo, fui percebendo que o ritmo de desenvolvimento, de crescimento e de mudança, abrandava ou estagnava. Com a demonstração evidente que, a partir de meados dos anos noventa, se assistia a uma espécie de esgotamento. Portugal começou a crescer e mudar menos do que a Europa.
Até aos anos noventa, os nossos termos de comparação eram os países europeus. Muito especialmente a Espanha, a Irlanda e a Grécia, nossos eternos parceiros de classificações internacionais. Perante eles, mostrávamos sinais de avanço e de rapidez. Uma vez mais, isto era verdade até aos anos noventa, altura em que, primeiro a Irlanda, depois a Espanha, exibiam resultados cada vez mais vantajosos. Acontece que, depois da viragem do século, passou a ser possível compararmo-nos com outros países, igualmente envolvidos em processos de mudança muito profundos. Foi então que comecei a reparar que os nossos registos mostravam uma segunda realidade: era possível fazer melhor e mais depressa. Países como a República Checa, a Polónia, a Hungria e a Eslovénia, entre outros, que atravessaram crises políticas e metamorfoses tão dramáticas quanto as nossas, desembaraçavam-se depressa dos fardos atávicos das sociedades fechadas e começavam a dar sinais de flexibilidade e de mudança que impressionavam. Alguns desses países exibiam, em particular, uma muito superior capacidade para atrair o investimento.
Foi a partir desta verificação que um novo tema foi surgindo: certos sectores da vida colectiva não mudavam, ou mudavam pouco, ou mudavam mal. Certas reformas, consideradas necessárias, era mais difíceis do que outras. Não quer isto dizer que haja reformas fáceis. Mas há umas mais difíceis do que outras.
Que sectores terão conseguido operar transformações profundas e visíveis? Os exemplos são: as comunicações (incluindo as telecomunicações), a banca, a grande distribuição, um ou outro sector industrial, segmentos das actividades turísticas, uma parte importante da saúde, algumas áreas da ciência e da investigação científica e poucos mais. Já as mudanças nos sectores da agricultura, da floresta e do mar foram de outro sinal: reduzida a reconversão, definharam. Noutros casos, como a Administração Pública, a Educação e a Justiça, os sinais de mudança eram mais superficiais do que reais; os indícios de falhanço eram frequentes; a falta de consolidação da transformação era nítida. A ponto de ser relativamente consensual falar de crise da Justiça ou crise da Educação. Não nos mesmos termos em que se fala de crise económica, como desde há um ano, ou de outras crises periódicas. Naqueles casos, fala-se de crise há mais de dez ou quinze anos e percebe-se que se trata de crise estrutural, crónica. Compreende-se rapidamente que, naqueles sectores, as reformas são difíceis ou impossíveis.
Não é fácil, mas importa saber porquê. Tentar compreender. Para o que é necessário afastar certas causas que tanto estão presentes nestes como noutros sectores. A falta de recursos financeiros, por exemplo, tanto afecta a justiça como a saúde. Além de que, em termos relativos, os recursos financeiros para a educação parecem não ter faltado, a avaliar pelo crescimento dos orçamentos e da despesa que atingiu e ultrapassou mesmo as médias europeias.
A instabilidade política, outro exemplo, traduzida em quase trinta ministros para cada uma das pastas importantes em pouco mais de trinta anos: mas este fenómeno afecta todos os sectores, pelo que é difícil considerá-lo causa essencial do atraso e da resistência à mudança. Contribui talvez, mas não é decisivo.
Há pois que procurar alhures. É minha convicção que é o carácter fechado, protegido da emulação e da concorrência, avesso à comparação, governado pelos próprios interessados, organizado com modalidades de “closed shop” e submetido a muito fortes influências ideológicas que faz com a Justiça e a Educação estejam no estado em que estão, resistam à mudança, se oponham a reformas profundas e acabem por ter nefastas consequências na sociedade por inteiro.
Há muitas diferenças entre estes dois sectores. A Justiça, por exemplo, é integralmente de Estado e não deve ser privatizada. Enquanto a Educação inclui um vasto sector privado. Os profissionais da Justiça (Magistrados, advogados, oficiais e polícias) são em menor número do que o largo sector da Educação. Esta última consome uma muito elevada proporção da despesa pública, muito superior à da Justiça.
O que têm de comum? Serem sectores muito fortemente integrados, unificados, centralizados, regulados directamente pelo Estado, nos quais os principais responsáveis e operacionais são sobretudo funcionários públicos, estarem fechados a influências exteriores da sociedade ou das ciências, serem dominados por corpos profissionais organizados que capturaram a decisão e a organização dos respectivos sistemas.
A comparação entre a Educação e a Saúde, por exemplo, é elucidativa. Nesta última, o “ethos” científico é preponderante, enquanto na Educação é a “cartilha” ideológica que domina. A saúde está aberta e exposta à comparação internacional e às influências da ciência universal. A Educação está aberta às modas, é certo, mas as suas estruturas de poder protegem-na de transformações e mudanças.
Já na Justiça, o sistema é tal que se confundiu independência dos magistrados no acto de julgar, na sala do tribunal, com autogestão e domínio absoluto sobre a organização, as carreiras e os métodos.
A Justiça é imune às influências sociais, tal como a Educação é invulnerável às intervenções dos pais, dos autarcas e dos cientistas. Curiosamente, em ambos os sectores, a força dos sindicatos é enorme e traduz-se numa quase incontestada detenção do poder efectivo.
São estas as reformas difíceis: aquelas em que seria necessário abrir à sociedade, criar mecanismos que impeçam que partes importantes da soberania, no caso da Justiça, do Estado providência, no caso da Educação pública, sejam capturadas pelos interesses dos profissionais em proveito próprio. É destes e dos seus sindicatos que a Justiça portuguesa está refém.
A mais grave crise nacional, a da Justiça, cada vez mais visível e presente nos nossos dias, resulta em grande parte desta situação de autogestão, perante a incapacidade e a impotência dos poderes executivo e legislativo. E a maior crise pública do último ano, a que criou uma quase situação de guerra civil nas escolas, resulta igualmente da organização fechada, centralizada e unificada do sistema educativo, à margem dos cidadãos, dos pais, das comunidades locais, das empresas e dos autarcas, mas em proveito do ministério e dos sindicatos.
Não me peçam soluções, que as não conheço. Mal feito fora que uma só pessoa fosse capaz de se aventurar a produzir soluções e receitas para questões tão complexas. Mas sei do caminho. Este é aquele que, por um lado, exige dos órgãos competentes, o poder legislativo e executivo, a acção responsável que se impõe, especialmente no caso da Justiça. E é, por outro lado, o que promove o único meio de convencer o poder: o da influência da opinião pública. Só com participação e pressão dos cidadãos teremos uma qualquer reforma profunda e necessária tanto na Educação como na Justiça. Sobretudo na Justiça.
O meu argumento tem um fundamento. Nestas últimas décadas, fizeram-se as reformas que vinham da sociedade para o Estado. As que deveriam vir do Estado para a sociedade não se fizeram. Ou fizeram mal.
American Club - Lisboa, 17 de Novembro de 2009
EM PORTUGAL E NO MUNDO OCIDENTAL, há duas décadas, a palavra reforma transformou-se no santo-e-senha da política contemporânea. Para os governos, que as querem fazer ou fizeram; para as oposições, que denunciam os governos por as não fazer; para a sociedade civil que ora as deseja com entusiasmo, ora as receia e contraria com veemência; para as instituições internacionais, mais ou menos tecnocráticas, que as consideram sempre essenciais.
As reformas de que se fala, em todos os domínios da vida colectiva e pública, são as mais vastas e profundas que se possam imaginar: direitos dos cidadãos, educação, saúde, trabalho, segurança social, transportes, comunicações, regulação das actividades económicas, tudo necessitava de reformas a fim de permitir a mudança e o desenvolvimento. Parecia que um novo mundo se anunciava, com a globalização, a abertura das sociedades, a liberalização da economia e um novo conceito de liberdade e de direitos humanos. Boas ou más, com ou sem ideologia aparente, vivemos duas décadas de pressão para fazer reformas.
Este processo fez despertar a curiosidade: era interessante estudar as mudanças sociais em períodos mais largos do que normalmente se faz. Valia a pena olhar para três ou quatro décadas, de modo a englobar transformações políticas e outras de grande relevo, assim como a disseminação das novas ideias e a consolidação dos processos de mudança. E ao olhar para a mudança, verifica-se com curiosidade que, frequentemente, as mudanças sociais e económicas precedem as reformas. Muitas vezes, estas são feitas a fim de ajustar as instituições, o direito e as leis a novas realidades que os homens e as mulheres, as empresas e as associações, foram criando. Sublinho este facto importante: muitas mudanças, que obtiveram algum êxito ou que foram eficazes, fizeram-se sem recurso àquilo que se chama vulgarmente “reformas”, isto é, novas leis e novas instituições.
Desde que há dez ou quinze anos iniciei os meus estudos académicos sobre a mudança em Portugal, ao longo das últimas cinco ou seis décadas, impressionou-me sobretudo a rapidez com que muitas transformações se fizeram. Na demografia, na pluralidade, no estatuto das mulheres, nas actividades económicas, na organização do trabalho, na reconversão geopolítica da economia e da sociedade... Portugal exibia ritmos de mudança muito superiores aos dos outros países europeus. Tinha-se começado com atraso, é certo, mas a velocidade era indiscutível. Em muitos aspectos quantitativos, como a natalidade, o envelhecimento, a mortalidade, a alfabetização e a protecção social, foi-se muito longe, ultrapassaram-se mesmo níveis e padrões europeus, tudo em relativamente pouco tempo.
Mesmo assim, pensei quase sempre que se poderia ter ido mais longe. Era nítida a impressão de que se tinha perdido tempo, muito tempo. Com doze anos de guerra, muitos de autoritarismo e de sociedade fechada, com uma revolução e uma contra-revolução, com a nacionalização e a reprivatização, tinha-se perdido tempo. Talvez vinte, talvez trinta anos, quando comparados com outros países ocidentais.
Isso fazia com que, eventualmente, se explicasse o carácter inacabado de muitas reformas. Na verdade, em certos aspectos, como a Administração Pública, tinha-se demorado muito. Noutros, como na Educação e na Justiça, tinha-se assistido a uma grande alteração quantitativa, mas a pouco progresso qualitativo.
Ilustração rápida da educação. Níveis internacionais. Taxas de sucesso, de insucesso e de abandono. Pouca qualificação da força de trabalho. Reduzidos nível cultural dos diplomados.
Ilustração rápida da Justiça. Atrasos e demoras. Incerteza da justiça. Conflitos e querelas. Perda de prestígio e autoridade dos magistrados.
Por outro lado, à medida que avançávamos no tempo, fui percebendo que o ritmo de desenvolvimento, de crescimento e de mudança, abrandava ou estagnava. Com a demonstração evidente que, a partir de meados dos anos noventa, se assistia a uma espécie de esgotamento. Portugal começou a crescer e mudar menos do que a Europa.
Até aos anos noventa, os nossos termos de comparação eram os países europeus. Muito especialmente a Espanha, a Irlanda e a Grécia, nossos eternos parceiros de classificações internacionais. Perante eles, mostrávamos sinais de avanço e de rapidez. Uma vez mais, isto era verdade até aos anos noventa, altura em que, primeiro a Irlanda, depois a Espanha, exibiam resultados cada vez mais vantajosos. Acontece que, depois da viragem do século, passou a ser possível compararmo-nos com outros países, igualmente envolvidos em processos de mudança muito profundos. Foi então que comecei a reparar que os nossos registos mostravam uma segunda realidade: era possível fazer melhor e mais depressa. Países como a República Checa, a Polónia, a Hungria e a Eslovénia, entre outros, que atravessaram crises políticas e metamorfoses tão dramáticas quanto as nossas, desembaraçavam-se depressa dos fardos atávicos das sociedades fechadas e começavam a dar sinais de flexibilidade e de mudança que impressionavam. Alguns desses países exibiam, em particular, uma muito superior capacidade para atrair o investimento.
Foi a partir desta verificação que um novo tema foi surgindo: certos sectores da vida colectiva não mudavam, ou mudavam pouco, ou mudavam mal. Certas reformas, consideradas necessárias, era mais difíceis do que outras. Não quer isto dizer que haja reformas fáceis. Mas há umas mais difíceis do que outras.
Que sectores terão conseguido operar transformações profundas e visíveis? Os exemplos são: as comunicações (incluindo as telecomunicações), a banca, a grande distribuição, um ou outro sector industrial, segmentos das actividades turísticas, uma parte importante da saúde, algumas áreas da ciência e da investigação científica e poucos mais. Já as mudanças nos sectores da agricultura, da floresta e do mar foram de outro sinal: reduzida a reconversão, definharam. Noutros casos, como a Administração Pública, a Educação e a Justiça, os sinais de mudança eram mais superficiais do que reais; os indícios de falhanço eram frequentes; a falta de consolidação da transformação era nítida. A ponto de ser relativamente consensual falar de crise da Justiça ou crise da Educação. Não nos mesmos termos em que se fala de crise económica, como desde há um ano, ou de outras crises periódicas. Naqueles casos, fala-se de crise há mais de dez ou quinze anos e percebe-se que se trata de crise estrutural, crónica. Compreende-se rapidamente que, naqueles sectores, as reformas são difíceis ou impossíveis.
Não é fácil, mas importa saber porquê. Tentar compreender. Para o que é necessário afastar certas causas que tanto estão presentes nestes como noutros sectores. A falta de recursos financeiros, por exemplo, tanto afecta a justiça como a saúde. Além de que, em termos relativos, os recursos financeiros para a educação parecem não ter faltado, a avaliar pelo crescimento dos orçamentos e da despesa que atingiu e ultrapassou mesmo as médias europeias.
A instabilidade política, outro exemplo, traduzida em quase trinta ministros para cada uma das pastas importantes em pouco mais de trinta anos: mas este fenómeno afecta todos os sectores, pelo que é difícil considerá-lo causa essencial do atraso e da resistência à mudança. Contribui talvez, mas não é decisivo.
Há pois que procurar alhures. É minha convicção que é o carácter fechado, protegido da emulação e da concorrência, avesso à comparação, governado pelos próprios interessados, organizado com modalidades de “closed shop” e submetido a muito fortes influências ideológicas que faz com a Justiça e a Educação estejam no estado em que estão, resistam à mudança, se oponham a reformas profundas e acabem por ter nefastas consequências na sociedade por inteiro.
Há muitas diferenças entre estes dois sectores. A Justiça, por exemplo, é integralmente de Estado e não deve ser privatizada. Enquanto a Educação inclui um vasto sector privado. Os profissionais da Justiça (Magistrados, advogados, oficiais e polícias) são em menor número do que o largo sector da Educação. Esta última consome uma muito elevada proporção da despesa pública, muito superior à da Justiça.
O que têm de comum? Serem sectores muito fortemente integrados, unificados, centralizados, regulados directamente pelo Estado, nos quais os principais responsáveis e operacionais são sobretudo funcionários públicos, estarem fechados a influências exteriores da sociedade ou das ciências, serem dominados por corpos profissionais organizados que capturaram a decisão e a organização dos respectivos sistemas.
A comparação entre a Educação e a Saúde, por exemplo, é elucidativa. Nesta última, o “ethos” científico é preponderante, enquanto na Educação é a “cartilha” ideológica que domina. A saúde está aberta e exposta à comparação internacional e às influências da ciência universal. A Educação está aberta às modas, é certo, mas as suas estruturas de poder protegem-na de transformações e mudanças.
Já na Justiça, o sistema é tal que se confundiu independência dos magistrados no acto de julgar, na sala do tribunal, com autogestão e domínio absoluto sobre a organização, as carreiras e os métodos.
A Justiça é imune às influências sociais, tal como a Educação é invulnerável às intervenções dos pais, dos autarcas e dos cientistas. Curiosamente, em ambos os sectores, a força dos sindicatos é enorme e traduz-se numa quase incontestada detenção do poder efectivo.
São estas as reformas difíceis: aquelas em que seria necessário abrir à sociedade, criar mecanismos que impeçam que partes importantes da soberania, no caso da Justiça, do Estado providência, no caso da Educação pública, sejam capturadas pelos interesses dos profissionais em proveito próprio. É destes e dos seus sindicatos que a Justiça portuguesa está refém.
A mais grave crise nacional, a da Justiça, cada vez mais visível e presente nos nossos dias, resulta em grande parte desta situação de autogestão, perante a incapacidade e a impotência dos poderes executivo e legislativo. E a maior crise pública do último ano, a que criou uma quase situação de guerra civil nas escolas, resulta igualmente da organização fechada, centralizada e unificada do sistema educativo, à margem dos cidadãos, dos pais, das comunidades locais, das empresas e dos autarcas, mas em proveito do ministério e dos sindicatos.
Não me peçam soluções, que as não conheço. Mal feito fora que uma só pessoa fosse capaz de se aventurar a produzir soluções e receitas para questões tão complexas. Mas sei do caminho. Este é aquele que, por um lado, exige dos órgãos competentes, o poder legislativo e executivo, a acção responsável que se impõe, especialmente no caso da Justiça. E é, por outro lado, o que promove o único meio de convencer o poder: o da influência da opinião pública. Só com participação e pressão dos cidadãos teremos uma qualquer reforma profunda e necessária tanto na Educação como na Justiça. Sobretudo na Justiça.
O meu argumento tem um fundamento. Nestas últimas décadas, fizeram-se as reformas que vinham da sociedade para o Estado. As que deveriam vir do Estado para a sociedade não se fizeram. Ou fizeram mal.
American Club - Lisboa, 17 de Novembro de 2009
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quinta-feira, 6 de agosto de 2009
“Nenhum partido fez o diagnóstico sério do país”
Em entrevista ao Diário Económico, António Barreto dá-lhes pela medida grossa:
..."Quando a crise económica e financeira rebentou, os países mais afectados criaram pacotes de emergência para salvar as economias, os bancos e as empresas. Nos senados e nos parlamentos, Governos e oposição discutiram exaustivamente como canalizar as ajudas financeiras e que empresas nacionalizar."
"Em Portugal não chegou a haver um debate sério sobre o pacote de medidas" e na Assembleia da República "houve berraria pegada, de manhã à noite". A comparação é feita por António Barreto e ilustra aquilo que para o sociólogo é a falta de respeito que os deputados portugueses têm pelo Parlamento e pelos cidadãos que os elegeram.
..."Quando a crise económica e financeira rebentou, os países mais afectados criaram pacotes de emergência para salvar as economias, os bancos e as empresas. Nos senados e nos parlamentos, Governos e oposição discutiram exaustivamente como canalizar as ajudas financeiras e que empresas nacionalizar."
"Em Portugal não chegou a haver um debate sério sobre o pacote de medidas" e na Assembleia da República "houve berraria pegada, de manhã à noite". A comparação é feita por António Barreto e ilustra aquilo que para o sociólogo é a falta de respeito que os deputados portugueses têm pelo Parlamento e pelos cidadãos que os elegeram.
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terça-feira, 28 de outubro de 2008
QUADRO DE HONRA

SÓCRATES E A LIBERDADE,
por António Barreto in 'Publico'

Pode parecer caricatura, mas essas tontices tiveram uma vida longa e inspiraram decisões, legislação e comportamentos públicos.
Durante anos, sob a designação de diálogo democrático, a hesitação e o adiamento foram sendo cultivados, enquanto a autoridade ia sendo posta em causa. Na escola, muito especialmente, a autoridade do professor foi quase totalmente destruída.
EM TRAÇO GROSSO, esta moda tinha como princípio a liberdade. Os denunciadores dos 'fascistas' faziam-no por causa da liberdade. Os demolidores da autoridade agiam em nome da liberdade. Sabemos que isso era aparência: muitos condenavam a autoridade dos outros, nunca a sua própria; ou defendiam a sua liberdade, jamais a dos outros. Mas enfim, a liberdade foi o santo e a senha da nova sociedade e das novas culturas. Como é costume com os excessos, toda a gente deixou de prestar atenção aos que, uma vez por outra, apareciam a defender a liberdade ou a denunciar formas abusivas de autoridade. A tal ponto que os candidatos a déspota começaram a sentir que era fácil atentar, aqui e ali, contra a liberdade: a capacidade de reacção da população estava no mais baixo.



A nova lei de controlo do tráfego telefónico permite escutar e guardar os dados técnicos (origem e destino) de todos os telefonemas durante pelo menos um ano. Os novos modelos de bilhete de identidade e de carta de condução, com acumulação de dados pessoais e registos históricos, são meios intrusivos. A vídeovigilância, sem limites de situações, de espaços e de tempo, é um claro abuso. A repressão e as represálias exercidas sobre funcionários são já publicamente conhecidas e geralmente temidas A politização dos serviços de informação e a sua dependência directa da Presidência do Conselho de Ministros revela as intenções e os apetites do Primeiro-ministro. A interdição de partidos com menos de 5.000 militantes inscritos e a necessidade de os partidos enviarem ao Estado a lista nominal dos seus membros é um acto de prepotência. A pesada mão do governo agiu na Caixa Geral de Depósitos e no Banco Comercial Português com intuitos evidentes de submeter essas empresas e de, através delas, condicionar os capitalistas, obrigando-os a gestos amistosos. A retirada dos nomes dos santos de centenas de escolas (e quem sabe se também, depois, de instituições, cidades e localidades) é um acto ridículo de fundamentalismo intolerante. As interferências do governo nos serviços de rádio e televisão, públicos ou privados, assim como na 'comunicação social' em geral, sucedem-se. A legislação sobre a segurança alimentar e a actuação da ASAE ultrapassaram todos os limites imagináveis da decência e do respeito pelas pessoas. A lei contra o tabaco está destituída de qualquer equilíbrio e reduz a liberdade.

TEMOS DE RECONHECER: tão inquietante quanto esta tendência insaciável para o despotismo e a concentração de poder é a falta de reacção dos cidadãos. A passividade de tanta gente. Será anestesia? Resignação? Acordo? Só se for medo...
António Barreto in 'Publico'
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