O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Noticia das servidões, por Baptista Bastos


O sr. Selassié, cujos patronímicos lembram os do antigo imperador da Etiópia, deu uma entrevista a jornalistas solícitos e zelosos, como se fosse o procônsul destoutro império. Se calhar é, e nós não queremos acreditar. Há, neste triste assunto, a absurda qualificação atribuída a um funcionário europeu, e a subserviência exasperante de quem devia respeitar, seriamente, as funções de jornalista, escalonando as prioridades de noticiário. Mas as coisas, neste país, estão como estão. A expressão da mediocridade coincide dramaticamente com as características de quem a promove. E o servilismo tomou carta de alforria. É um espectáculo deplorável assistir-se ao cortejo de subserviências quando os escriturários da troika vão ao Parlamento ou aos ministérios.

Somos tratados com displicente condescendência. Afinal, numa interpretação lisa e, acaso, aceitável, somos os pedintes e eles os curadores dessa nossa triste condição. A ela temos de nos sujeitar. Selassié produz afirmações tão extraordinárias quanto ignaras acerca do que somos, de quem somos e de como havemos de ser. O pessoal do Governo demonstra uma felicidade esfuziante com o convívio, e até Paulo Portas o admite, embora pouco à vontade. Aliás, não se percebe muito bem até onde o presidente do CDS vai suportar, com frustrados sorrisos, os permanentes vexames a que o submetem.

As declarações do sr. Selassié, que, na normalidade de situações políticas, nem sequer devia ser ouvido, só não são injuriosas porque imbecis. Já a senhora Merkel, num despudor acarinhado pelo reverente Passos Coelho, afirmara o íntimo e estremecido desejo de ver os portugueses muito felizes. Os comentadores do óbvio, emocionados, calaram fundo este auspício.

O povo, a nação, o próprio conceito de pátria estão subalternizados pelo comportamento desprezível de uma casta de emblema republicano na lapela, que passa ao lado das indignações, dos protestos, da miséria e da fome dos outros. A frase famosa de Passos Coelho, "custe o que custar", para justificar os desmandos da sua política, configura uma ideia de confronto, absolutamente detestável. A violência do discurso do poder e a prática governamental reenviam, na ordem da democracia política, para algo que excede o funcionamento processual. Parece que Pedro Passos Coelho incita à cólera e estimula o conflito, acaso para "fundamentar" e "legitimar" ulteriores acções repressivas. A indiferença da sua conduta não se harmoniza nem combina com o ideário democrático, sobre o qual tripudia com desprezo e arrogância. Este homem não nos serve, não serve o País, nada tem a ver com algo que nos diga respeito, é incompetente e sobranceiro.

Quando estrangeiros como Angela Merkel e Abebe Selassié dizem o que dizem, com a aquiescência de um Governo mudo, há qualquer coisa de podre na sociedade.
(Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico)
In: “Diário de Noticias” de 28.11.2012


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