Texto atribuido a José António Barreiros, advogado, pretensamente com o titulo "A trapeira do Job", remetido por email para este blogue, com pedido de publicação.
Sem podermos confirmar a sua autoria, podemos confirmar o seu interesse e utilidade na sua divulgação...
Isto que eu vou
dizer vai parecer ridículo a muita gente.
Mas houve um
tempo em que as pessoas se lembravam, ainda, da época da infância, da primeira
caneta de tinta-permanente, da primeira bicicleta, da idade adulta, das vezes
em que se comia fora, do primeiro frigorífico e do primeiro televisor, do
primeiro rádio, de quando tinham ido ao estrangeiro.
Houve um tempo
em que, nos lares, se aproveitava para a refeição seguinte o sobejante da
refeição anterior, em que, com ovos mexidos e a carne ou peixe restante, se
fazia "roupa velha". Tempos em que as camisas iam a mudar o colarinho
e os punhos do avesso, assim como os casacos, e se tingia a roupa usada, tempos
em que se punham meias-solas com protectores. Tempos em que ao mudar-se de sala
se apagava a luz, tempos em que se guardava o "fatinho de ver a Deus e à
sua Joana".
E não era só no
Portugal da mesquinhez salazarista. Na Inglaterra dos Lordes, na França dos
Luíses, a regra era esta. Em 1945 passava-se fome na Europa, a guerra matara
milhões e arrasara tudo quanto a selvajaria humana pode arrasar.
Houve tempos em
que se produzia o que se comia e se exportava. Em que o País tinha uma frota de
marinha mercante, fábricas, vinhas, searas.
Veio depois o
admirável mundo novo do crédito. Os novos pais tinham como filhos uns pivetes
tiranos, exigindo malcriadamente o último modelo de mil e um gadgets e
seus consumíveis, porque os filhos dos outros também tinham. Pais que se
enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os encravarem no lodo do
trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da sua potência
genital. Passou a ser tempo de gente em que era questão de pedigree
viver no condomínio fechado, e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas instigavam
em couché os feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas,
assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o símbolo de status
como a língua nos cães para a sua raça.
Foram anos em
que o Campo se tornou num imenso ressort de Turismo de Habitação, as
cidades uma festa permanente, entre o coktail party e a rave.
Houve quem pensasse até que um dia os Serviços seriam o único emprego futuro ou
com futuro.
O país que
produzia o que comíamos ficou para os labregos dos pais e primos parolos, de
quem os citadinos se envergonhavam, salvo quando regressavam à cidade dos fins
de semana com a mala do carro atulhada do que não lhes custara a cavar e às
vezes nem obrigado.
O país que
produzia o que se podia transaccionar, esse, ficou com o operariado da
ferrugem, empacotados como gado em dormitórios, e que os víamos chegar mortos
de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras bombas-relógio de raiva
contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na idiotização que a TV tornou
negócio.
Sob o oásis dos
edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo subterrâneo de quantos
aguentaram isto enquanto puderam, a sub-gente. Os intelectuais burgueses
teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito de classes sociais
tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas supunha que o real era apenas
uma noção, a teoria da informação substituía os cavalos-força da maquinaria
pelos megabytes de RAM da computação universal. Um dia os computadores
tudo fariam, o Ser-Humano tornava-se um acidente no barro de um oleiro velho e
tresloucado que, caído do Céu, morrera pregado a dois paus, e que julgava
chamar-se Deus, confundindo-se com o seu filho e mais uma trinitária pomba.
Às tantas, os da
cidade começaram a notar que não havia portugueses a servir à mesa, porque
estávamos a importar brasileiros, que não havia portugueses nas obras, porque
estávamos a importar negros e eslavos.
A chegada das
lojas-dos-trezentos já era alarme de que se estava a viver de pexibeque, mas a
folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas chinesas, porque já só havia
para comprar «balato». Mas o festim prosseguia e à sexta-feira as filas de
trânsito em Lisboa eram o caos e até ao dia quinze os táxis não tinham mãos a
medir.
Fora disto, os
ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão alentejano viu
sumir o velho latifundário absentista pelo novo turista absentista com o mesmo
monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais, claro, e sempre pela reforma
agrária, e vai um uísque de malte, sempre ao lado do povo, e já leu o New
Yorker?
A agiotagem
financeira, essa, ululava. Viviam do tempo, exploravam o tempo, do tempo que só
ao tal Deus pertencia, mas, esse, Nietzsche encontrara-o morto em Auschwitz.
Veio o crédito ao consumo, a Conta-Ordenado, veio tudo quanto pudesse ser o ter
sem pagar. Porque nenhum Banco quer que lhe devolvam o capital mutuado, quer é
esticar ao máximo o lucro que esse capital rende.
Aguilhoando pela
publicidade enganosa os bois que somos nós todos, os Bancos instigavam à
compra, ao leasing, ao renting, ao seja como for desde que tenha
e já, ao cartão, ao descoberto-autorizado.
Tudo quanto era
vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo futebolista, ou o que vocês
sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele Balcão bancário
buscar dinheiro, vendermos-nos ao dinheiro, enforcarmos-nos na figueira
infernal do dinheiro. Satanás ria. O Inferno começava na terra.
Claro que os da
política do poder, que vivem no pau de sebo perpétuo do fazer arrear,
puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o poder, querem a canalha
contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito servia-os. Com isso
comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à noite propaganda
governamental e, nos intervalos, imbelicidades e telefofocadas, que entre a
oligofrenia e a debilidade mental a diferença é nula. E, contentes,
cretinamente contentinhos, os portugueses tinham como tema de conversa a
telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e da noite e os comentários
políticos dos "analistas" que poupavam os nossos miolos de pensarem,
pensando por nós.
Estamos nisto.
Este
fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa.
Que
interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa altura,
em Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse
distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados
a alma do pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande parte de nós.
2 comentários:
A inebriante volúpia da corrida consumista. Como que um rebanho tresloucado em louca corrida, tudo devastando e trucicando à sua passagem; com todos os elementos possuídos, diabólicos, embrutecidos e alucinados, em lutas fraticidas para ser o primeiro a chegar à/o água/pódio social!
O balanço da catástrofe está a ser feito após o edonho desastre. Estamos a lamber a feridas e a contar os sobreviventes. Dos mortos não reza a história e sobre os escombros dos infernos, já se edificaram paraísos!
É Natal e por isso queremos acreditar que o Homem é pessoa de bem, capaz do melhor e do pior; agora é a vez do melhor, digerido que está o fel e o vinagre desta loucura colectiva.
Visito Armação de Pêra durante as férias, mas acho a vila suja e com muita construção.
Hoje tive uma agradável surpresa ao clicar no link do Blasfémias e verifiquei que Armação tinha algo mais do que está à vista.
Parabéns pelo trabalho, vou voltar cá.
Enviar um comentário