O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Natália Correia por Baptista Bastos

Dizia que a minha mulher possuía um discernimento e uma sabedorias raros numa mulher da idade dela. Eram amigas e falavam das coisas da vida e do mundo. E, na madrugada da sua morte, estivera com ela e com o marido, Dórdio Guimarães, a uma mesa do Botequim, conversando avulsamente. Eu morava abaixo da colina da Graça, em Alfama, muito próximo do Botequim, que frequentava amiúde. Desci para casa eram quase três horas. Às 9 telefonaram-me de uma rádio: "Morreu Natália Correia."

Fez, agora [16 de Março] 18 anos, e parece que foi ontem, hoje, ainda há pouco. Esquecera-me da data. No "Público", a jornalista São José Almeida, com a grandeza habitual da sua prosa, lembrou-me da amiga e da enorme poetisa que a Natália foi. E daqui lho agradeço e bendigo.

Tem sido um pouco esquecida. A decência e a coragem política e ética pagam-se caro. Mas a obra e a vida dela justificam-na e dignificam-na e a nós. O prefácio que escreveu, propositadamente, para uma selecção da poesia barroca, é um ensaio definitivo. E muitos dos seus poemas fazem parte da selecta mais rigorosa da lírica portuguesa. A Natália Correia era belíssima, truculenta, libertária, capaz de enfrentar fosse o que fosse e quem fosse.

Dizia, na cara das pessoas o que delas pensava, sobretudo se o acto envolvesse canalhice, falta de carácter e vileza. Na sua casa da Rodrigo da Fonseca passaram, estiveram, discutiram, conspiraram o melhor da cultura portuguesa - e não só: estrangeiros célebres lá se amesendaram, como Henri Miller, por exemplo, discreteando acerca das coisas que ocorriam. Não é só a imensa poetisa que devemos honrar. É a corajosa editora de "Novas Cartas Portuguesas", de Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta; a notável animadora de "Poesias Eróticas Portuguesas", que a levou a tribunal; ou a autora de "Poema do País Emerso". Quando todas estas actividades faziam correr riscos enormes a quem as praticasse.

Sarcasta imparável, detentora de um talento múltiplo e absolutamente imprevisível, ela, um dia, enquanto deputada na Assembleia da República, ouviu o dr. José Morgado, representante do CDS, dizer [3 de Abril de 1982] o seguinte: "O acto sexual é para ter filhos." Natália ergueu-se da sua bancada e rematou:

Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino:
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai de um só rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração ! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada a excepção,
ficou capado o Morgado.

Nunca se eximiu de escarmentar políticos, escritores, artistas, jornalistas que tombassem sob a alçada das suas zombarias. A sua vitalidade parecia inesgotável e o seu génio imparável. O seu último marido, Dórdio Guimarães, vivia na sua adoração e na desvelada paixão que era a razão da sua vida. Pouco depois de Natália morrer, Dórdio seguiu-a. Havia-lhe dedicado poemas comovidos. Pode dizer-se que o Dórdio morreu de amor, ou da falta do amor de Natália.

Ela faz falta à vida portuguesa. E a pretensa rivalidade que alguns alimentavam, entre Natália e Sophia, não tinha razão de ser, senão o azedume e a intriga que, ainda hoje, vicejam nos meios literários. São duas grandes, extraordinárias mulheres, e duas poetisas excepcionais. Queira-se ou não, elas fazem parte do nosso património moral, estético e ético. Pertencem-nos na sua luminosa diversidade.

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