Por AGOSTINHO
GUEDES* 28/05/2013, in “Publico”
Todos os anos,
na primeira aula de Introdução ao Estudo do Direito que dou aos alunos
recém-chegados à universidade, faço uma simulação: peço-lhes para imaginarem
que o planeta sofreu um cataclismo de proporções bíblicas e que nós (eu e os
alunos na sala) somos os únicos sobreviventes; depois, nesse contexto,
peço-lhes que me digam o que fazer.
Invariavelmente,
os alunos elegem como objetivo principal a sobrevivência, e constatam, em
primeiro lugar, a necessidade de o grupo permanecer unido. O objetivo desta
simulação é ajudar os alunos a perceber intuitivamente o que são e para que
servem as leis.
De facto, num
ambiente adverso, a probabilidade de sobrevivência é maior se as pessoas se
mantiverem unidas; por outro lado, e cada vez mais, todos precisamos uns dos
outros para ser felizes e realizados. Ao mesmo tempo, porém, cada pessoa tem os
seus objetivos e interesses individuais e afirma constantemente a sua
liberdade.
Esta tensão
entre a liberdade individual e a necessidade de viver em sociedade gera risco
de conflito, e por vezes conflito efetivo. O problema básico de qualquer
comunidade humana é, pois, construir um sistema de organização da sociedade que
preserve a liberdade de cada um e favoreça uma colaboração pacífica entre os
seus membros, por forma a que os conflitos se resolvam sem recurso à violência
(e para isso servem as leis).
Quando se
discutem regimes políticos, é comum ouvir que a democracia é o “menos mau” dos
regimes, numa crítica implícita ao sistema mas com o reconhecimento de que as
alternativas são todas piores. Em tempos de crise e desencanto, esta crítica
agudiza-se. Há pouco tempo, alguém até mencionou a necessidade de “suspender a
democracia” para se conseguir debelar as causas da crise.
Modernamente,
democracia significa governo do povo, governo dos cidadãos, de todos os
cidadãos; significa que o poder político, o poder de fazer escolhas políticas
(incluindo o poder de legislar) é exercido direta ou indiretamente pelos
membros da comunidade — diretamente, através de mecanismos de escolha direta
(como o referendo); indiretamente, através da eleição de “representantes” que
são mandatados para tomar decisões em nome dos eleitores.
Existe algum
consenso à volta da ideia de que qualquer sistema democrático assenta em dois
valores: a liberdade e a igualdade (modernamente, acentua-se também a
solidariedade).
Verdadeiramente,
porém, o valor fundamental da democracia é o primado da dignidade de cada
pessoa (v. o art.º 1.º da nossa Constituição). Deste valor derivam todos os
outros, nomeadamente a igualdade (porque todas as pessoas têm igual dignidade)
e a liberdade (sem liberdade não há dignidade).
Cada pessoa
tem direito a ser respeitado, na sua individualidade e na sua liberdade, mas
tem também o dever de respeitar o próximo, na sua individualidade e liberdade —
este é o fundamento ético da democracia.
Suspender a
democracia significa suspender o respeito que é devido a cada um de nós. É isso
que queremos?
*O autor é director da Escola de Direito
da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, e escreve segundo o Acordo
Ortográfico.
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