O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.

terça-feira, 7 de maio de 2013

Fadiga presidencial


por Manuel Maria Carrilho in DN 2/5/2013

A crise tende a multiplicar os impasses, os impasses tendem a aprofundar a crise. Assim se adensa, tanto na vida das pessoas como na das nações, o carrossel de todos os dramas. E o pior que nestas situações pode acontecer é ficar-se preso na teia do que Gregory Batteson designou uma vez como o "double bind".

Trata-se de um dilema que coloca uma pessoa ou uma comunidade perante mensagens ou exigências conflituantes, de tal modo que bloqueia qualquer saída, dando origem a comportamentos paradoxais. É o que acontece quando um professor diz a um aluno "para não ser tão obediente" - ele deve obedecer-lhe desobedecendo ou desobedecer-lhe obedecendo?
Aníbal Cavaco Silva já tinha revelado tendência para a criação deste tipo de situações paradoxísticas, colocando frequentemente os portugueses perante dilemas semelhantes, ao declinar variações discursivas que consistem em acentuar vivamente uma perspetiva para, logo depois, apontar no sentido oposto.

Foi assim que, depois de denunciar com vigor a espiral recessiva que ameaçava o País, veio defender sem equívocos a política que a provocou e os protagonistas que a incentivaram. Que, depois de denunciar a incompetência da troika, do seu memorando e do seu acompanhamento, veio exigir e aplaudir o seu cego cumprimento. Que, depois de denunciar a desorientação e a inação europeias e os seus custos, veio apelar à submissão aos seus mais contraproducentes ditames...

Que, no dia da comemoração da democracia instaurada no 25 de Abril, veio fazer a apologia da sua inutilidade, aconselhando o País a preparar-se para acolher mais ou menos de joelhos os imperativos do novo poder global, de matriz financeiro-especulativa, que hoje corrói todos os regimes democráticos.

Só faltava mesmo a cereja no bolo: e ela apareceu com a insólita aposta de fazer o País caminhar para o consenso através da intensificação dos antagonismos e em apelar à convergência político-partidária estimulando a desconfiança na democracia!

Este passo é, todos o reconheceram, dificilmente compatível com as funções de representação nacional, de mediação institucional e de pedagogia política que deveria caracterizar o exercício presidencial. Não admira por isso que, com esta espiral paradoxística de Cavaco Silva, o País dê crescentes sinais de um novo tipo de fadiga, a fadiga presidencial...

É que há, no bizarro apelo ao consenso do Presidente da República, dois problemas: um de timing e outro de conceito. O de timing remete-nos para o ano de 2009, e para a incompreensão da gravidade da crise que era já então uma evidência, e que devia ter dado lugar a um pedagógico esforço de abertura e de realismo.

A situação deveria ter levado o Presidente da República a procurar então uma solução governamental maioritária, dado que um governo minoritário vive quase sempre num registo de preocupação diária com a sua sobrevivência, o que o torna necessariamente débil e fugaz, como mais uma vez se viu!...O Presidente da República deixou passar a oportunidade, como depois deixaria passar outras...

O que nos leva ao segundo ponto, o do conceito. O consenso remete sempre ora para uma identidade de valores ora para um acordo de objetivos. Mas nem num caso nem no outro se trata de dados adquiridos ou inequívocos, sobretudo numa comunidade em crise, como hoje acontece.

É justamente por isso que o consenso exige uma magistratura presidencial extremamente trabalhosa e exigente do ponto de vista da comunicação e da pedagogia . Eleito por sufrágio direto dos portugueses, autónomo em relação aos partidos, livre das pressões do curto prazo e do imediato, é dele que se espera uma atenção ao essencial que permita criar os laços e estabelecer as relações que as políticas partidárias hoje dificilmente conseguem tecer.

Para o fazer não basta, todavia, jurar a constituição perante o Parlamento. Exige-se mais, requere--se um desígnio, uma visão, um sinal que atraia e focalize a hoje tão disputada atenção dos cidadãos. Exige-se proximidade, afeto, cumplicidade, conversa - o contrário do estilo mestre-escola, em que Cavaco Silva se especializou.

É onde Cavaco Silva mais tem falhado. A sua reação à generalizada crítica que o seu discurso do 25 de Abril suscitou diz realmente tudo: " depois não digam que eu não avisei!", comentou. Na verdade, o seu magistério foi sempre estritamente funcional, burocrático, minimalista, no limite vertiginosamente apolítico!...Uma im- prudência porque, como a política tem horror ao vazio, mais tarde ou mais cedo os acontecimentos tinham de o colocar de novo na arena político-partidária. Foi o que aconteceu com o discurso do 25 de Abril.

Cavaco Silva não só falhou o alvo do seu apelo ao consenso, como perdeu o "momentum" em que o podia fazer com autoridade e eficácia. Resta-lhe agora, aos olhos dos portugueses, vacilar - para usar os termos do filósofo Jean-François Lyotard - entre o litígio e o diferendo: enquanto o primeiro pode ficar pela discordância mais ou menos acentuada, já o segundo conduz ao conflito e à guerra. O tempo o dirá.

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