por Manuel Maria Carrilho in DN
2/5/2013
A crise tende a multiplicar os impasses, os impasses
tendem a aprofundar a crise. Assim se adensa, tanto na vida das pessoas como na
das nações, o carrossel de todos os dramas. E o pior que nestas situações pode
acontecer é ficar-se preso na teia do que Gregory Batteson designou uma vez
como o "double bind".
Trata-se de um dilema que coloca uma pessoa ou uma
comunidade perante mensagens ou exigências conflituantes, de tal modo que
bloqueia qualquer saída, dando origem a comportamentos paradoxais. É o que
acontece quando um professor diz a um aluno "para não ser tão
obediente" - ele deve obedecer-lhe desobedecendo ou desobedecer-lhe
obedecendo?
Aníbal Cavaco Silva já tinha revelado tendência para a
criação deste tipo de situações paradoxísticas, colocando frequentemente os
portugueses perante dilemas semelhantes, ao declinar variações discursivas que
consistem em acentuar vivamente uma perspetiva para, logo depois, apontar no
sentido oposto.
Foi assim que, depois de denunciar com vigor a espiral
recessiva que ameaçava o País, veio defender sem equívocos a política que a
provocou e os protagonistas que a incentivaram. Que, depois de denunciar a
incompetência da troika, do seu memorando e do seu acompanhamento, veio exigir
e aplaudir o seu cego cumprimento. Que, depois de denunciar a desorientação e a
inação europeias e os seus custos, veio apelar à submissão aos seus mais
contraproducentes ditames...
Que, no dia da comemoração da democracia instaurada no
25 de Abril, veio fazer a apologia da sua inutilidade, aconselhando o País a
preparar-se para acolher mais ou menos de joelhos os imperativos do novo poder
global, de matriz financeiro-especulativa, que hoje corrói todos os regimes
democráticos.
Só faltava mesmo a cereja no bolo: e ela apareceu com
a insólita aposta de fazer o País caminhar para o consenso através da
intensificação dos antagonismos e em apelar à convergência político-partidária
estimulando a desconfiança na democracia!
Este passo é, todos o reconheceram, dificilmente
compatível com as funções de representação nacional, de mediação institucional
e de pedagogia política que deveria caracterizar o exercício presidencial. Não
admira por isso que, com esta espiral paradoxística de Cavaco Silva, o País dê
crescentes sinais de um novo tipo de fadiga, a fadiga presidencial...
É que há, no bizarro apelo ao consenso do Presidente
da República, dois problemas: um de timing e outro de conceito. O de timing
remete-nos para o ano de 2009, e para a incompreensão da gravidade da crise que
era já então uma evidência, e que devia ter dado lugar a um pedagógico esforço
de abertura e de realismo.
A situação deveria ter levado o Presidente da
República a procurar então uma solução governamental maioritária, dado que um
governo minoritário vive quase sempre num registo de preocupação diária com a
sua sobrevivência, o que o torna necessariamente débil e fugaz, como mais uma
vez se viu!...O Presidente da República deixou passar a oportunidade, como
depois deixaria passar outras...
O que nos leva ao segundo ponto, o do conceito. O
consenso remete sempre ora para uma identidade de valores ora para um acordo de
objetivos. Mas nem num caso nem no outro se trata de dados adquiridos ou
inequívocos, sobretudo numa comunidade em crise, como hoje acontece.
É justamente por isso que o consenso exige uma
magistratura presidencial extremamente trabalhosa e exigente do ponto de vista
da comunicação e da pedagogia . Eleito por sufrágio direto dos portugueses,
autónomo em relação aos partidos, livre das pressões do curto prazo e do
imediato, é dele que se espera uma atenção ao essencial que permita criar os
laços e estabelecer as relações que as políticas partidárias hoje dificilmente
conseguem tecer.
Para o fazer não basta, todavia, jurar a constituição
perante o Parlamento. Exige-se mais, requere--se um desígnio, uma visão, um
sinal que atraia e focalize a hoje tão disputada atenção dos cidadãos. Exige-se
proximidade, afeto, cumplicidade, conversa - o contrário do estilo mestre-escola,
em que Cavaco Silva se especializou.
É onde Cavaco Silva mais tem falhado. A sua reação à
generalizada crítica que o seu discurso do 25 de Abril suscitou diz realmente
tudo: " depois não digam que eu não avisei!", comentou. Na verdade, o
seu magistério foi sempre estritamente funcional, burocrático, minimalista, no
limite vertiginosamente apolítico!...Uma im- prudência porque, como a política
tem horror ao vazio, mais tarde ou mais cedo os acontecimentos tinham de o
colocar de novo na arena político-partidária. Foi o que aconteceu com o
discurso do 25 de Abril.
Cavaco Silva não só falhou o alvo do seu apelo ao
consenso, como perdeu o "momentum" em que o podia fazer com
autoridade e eficácia. Resta-lhe agora, aos olhos dos portugueses, vacilar -
para usar os termos do filósofo Jean-François Lyotard - entre o litígio e o
diferendo: enquanto o primeiro pode ficar pela discordância mais ou menos
acentuada, já o segundo conduz ao conflito e à guerra. O tempo o dirá.
Sem comentários:
Enviar um comentário