O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Esclarecimento cristalino na "Hora da Verdade"


Por considerarmos uma análise pedagógica e esclarecedora sobre a situação real que o pais vive, decidimos publicar este artigo de Miguel Sousa Tavares, no último Expresso:

A HORA DA VERDADE

Com a falta de senso político que o caracteriza, Passos Coelho vem agora propor ao PS uma “refundação do acordo com a troika”. Para começar, explicou-se mal: ele não pretende refundar o acordo, pretende sim dar-lhe cumprimento integral - o que até agora não fez. Refundar o acordo seria fazer ver aos nossos prestamistas que, nestes prazos e com estes juros, e sem políticas que devolvam vida à economia, jamais teremos salvação. Mas não é isso que ele quer, já o disse várias vezes. O que ele quer agora é um parceiro que o ajude a ocupar-se da parte difícil e complicada do acordo assinado com a troika e que era, segundo ele, o seu próprio programa eleitoral. Porque, um ano e meio volvido, tudo o que o Governo executou do acordo foi a parte fácil: mudou a lei laboral, diminuiu ordenados e subsídios na função pública, começou a privatizar (e mal), e arrasou o país com impostos. A parte difícil - que era reformar o Estado, reduzi-lo a uma dimensão sustentável, evitar que ele continue a roubar a economia, as poupanças e os postos de trabalho - nisso, o governo de Passos Coelho não mexeu ainda, salvo algumas minudências. As célebres “gorduras”, cujo corte radical esgotava todo o pensamento económico de Passos Coelho, foram cortadas onde podiam ser (sobretudo na Saúde) e rapidamente vão parar, porque, ao contrário do que a actual maioria fazia crer anteriormente e do que a demagogia populista afirma, não há muito mais por onde cortar, sabendo-se que todos aceitam cortes desde que não sejam atingidos por eles.

Para se ter uma ideia daquilo de que se trata e daquilo com que estamos confrontados, vale a pena olhar algumas realidades factuais:

- A despesa anual do Estado é de 78.000 milhões de euros e a receita, após todos os desaustinados aumentos de impostos, é de 70.000 milhões. A diferença é o défice;

-Acumulados ano após ano, os défices formam a dívida, que, neste momento está em 119% do PIB e em breve chegará aos 124% - e que é a herança que esta geração se prepara para deixar às seguintes. O serviço da dívida, apenas com juros, gasta hoje praticamente tanto como a Saúde e só por si é responsável por 80% do défice. A “ajuda” que nos permite sobreviver serve apenas para pagar os juros do que devemos.

-75% da despesa do Estado são representados por transferências a favor de pessoas - sob a forma de salários, subsídios, pensões de reforma. Com o que resta, o Estado tem de cumprir todas as outras funções essenciais que o caracterizam, como a Defesa, a Segurança Interna, a Justiça, os Negócios Estrangeiros. Tem de apoiar a agricultura, a indústria, as pescas, a cultura, o desporto, as regiões. Tem de construir e manter estradas, hospitais, escolas, edifícios públicos e empresas públicas de transportes, crónica e largamente deficitárias. E tem de acorrer ao serviço da dívida. Pode dar-se ao texto as voltas que se quiser: o dinheiro não chega.

-75% dos portugueses, entre funcionários públicos, magistrados, professores, médicos, militares, bolseiros, subsidiados, apoiados e reformados, estão financeiramente dependentes do Estado, na totalidade ou em parte.

-Apenas metade dos portugueses paga imposto sobre o rendimento e apenas um quarto das empresas paga imposto sobre os lucros. Os 2% de portugueses que mais pagam de IRS respondem por mais de 25% do total da colecta. No escalão mais alto, juntando todos os impostos e contribuições directas, é possível entregar ao Estado 70% do rendimento - mesmo que ele provenha exclusivamente do trabalho. Pode sempre defender-se que é possível fazer os “ricos” pagar ainda mais, mas a experiência recente ensina-nos que isso não garante, antes pelo contrário, o aumento da receita fiscal. Chama-se a isto “a curva de Laffer”, o momento a partir do qual o aumento continuado de impostos tem como consequência a descida da cobrança. Até porque, como escreveu esta semana Paulo Rangel, corre-se agora o sério risco de restaurar, por instinto de sobrevivência, uma cultura de fuga ao fisco sem remorsos, que tanto tempo e trabalho deu a erradicar entre nós.

-Em 1960, um trabalhador entrava no mercado de trabalho aos 17 anos, trabalhava em média 41 e vivia dois anos reformado. Quarenta anos depois, em 2000, começava a trabalhar aos 21, trabalhava 36 anos e vivia 15 reformado. Embora alguma coisa de importante tenha sido alterada com a reforma introduzida pelo ministro Viera da Silva no anterior governo, mantém-se de pé a insustentável equação entre o número de anos que se trabalha e se desconta para a Segurança Social e o número de anos que se vive da reforma - com a agravante de a esperança de vida cada vez maior ser sustentada em custos clínicos crescentes, a cargo do SNS.

-Em 1960, Portugal tinha 40% de pessoas com menos de 25 anos, hoje tem 20%. Tinha 8% de pessoas com mais de 65 anos, hoje tem 20%. E só neste ano, 65.000 jovens, sem trabalho nem futuro, emigraram. Quando só tivermos velhos, desempregados e emigrados, quem pagará as pensões de reforma e o SNS?

É disto que falamos quando falamos da sustentabilidade do Estado social e da própria solvência do Estado. Era disto que Passos Coelho deveria ter falado há ano e meio. Em vez disso, calou-se e tratou de destruir a economia para continuar a sustentar um Estado que não se atreveu a reformar. Agora, com o abismo à frente, ele tenta convocar o PS para fazer o que não teve e não tem coragem de fazer sozinho. Agora, depois de ano e meio a hostilizar o PS, a maltratar e a trair a UGT e a CIP, que tudo fizeram para lhe facilitar a vida, depois de ter ignorado arrogantemente todos os avisos que recebeu de todo o lado, Passos Coelho tenta encontrar aliados entre os que tratou como inimigos e descartou como inúteis.

Temo que seja já tarde. A UGT irá em breve mudar de secretário-geral e não vem aí outro João Proença. A CGTP mudou para uma linha estalinista pura e dura, à semelhança do seu novo secretário-geral. A classe média, que o Governo reduziu a classe remediada, de certeza que não confia nele nem no seu círculo íntimo de terroristas económicos para restaurar a confiança. E a rua despertou, conseguindo até juntar as tropas comunistas saudosas de novo sequestro da Assembleia da República ao peculiar sindicalismo dos estivadores do porto de Lisboa, ao estilo do sindicalismo dos anos 30 em Chicago. Resta o PS e o PS está entalado: sabe que a reforma do Estado é essencial, se realmente quiser defender o Estado social para os verdadeiramente necessitados (foi, aliás, isso que Sócrates começou a tentar fazer e por isso foi derrubado); mas também não pode agora aceitar um pacto de regime com quem passou ano e meio a desdenhar todos os outros, a recusar ouvir qualquer discordância e, sobretudo, a demonstrar uma absoluta incompetência e impreparação para governar.

E, todavia, talvez não haja outro caminho, como corajosamente escreveu Francisco Assis (que desgraça para Portugal que a lógica da mediocridade partidária lhe não tenha permitido estar agora à frente do PS!). Ainda há quinze dias, toda a gente se declarava em estado de choque com o “massacre fiscal” anunciado por Vítor Gaspar. Disse-se, escreveu-se, gritou-se, e com toda a razão, que a economia não sobreviveria a tamanho assalto. Pois é disso que se trata: escolher entre a sobrevivência da economia ou a do Estado que deixámos inchar irresponsavelmente. Podia chamar-se a isto um dilema, mas, na verdade é um falso dilema. Por razões ideológicas ou de oportunismo político, muitos não querem saber de contas nem de factos e vão desejar que nada mude. Quem não paga, vai querer que os outros continuem a pagar - mas também que haja empresas e trabalho e poupanças e investimentos. Mas não vai haver nada disso, porque deixar tudo na mesma é o caminho certo da ruína a curto prazo - que é justamente (não se deixem enganar) a aposta política de quem nunca se conformou verdadeiramente com a democracia e a economia de mercado. E, por isso, não estamos perante um dilema. Estamos perante uma inevitabilidade que, por mais que nos custe, não pode deixar de ser enfrentada. E agora, à 25ª hora, é o último momento de o fazer.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

in "Expresso" de 10.11.2012

1 comentário:

Luís Ricardo disse...

A triste realidade explicitada com a crueza que ela merece!

Correio para:

Armação de Pêra em Revista

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