O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.

domingo, 14 de junho de 2015

A burqa também existiu no Algarve: era o bioco e dava liberdade à mulher

Por Idálio Revez
14/06/2015 – in jornal Público

No século XIX, um antigo governador civil que não gostava de ver as mulheres todas tapadas decretou a abolição do uso do trajo tradicional de todas as ruas e templos. Agora, foi recriado um bioco moderno mas a cabeça fica destapada.

A mulher algarvia, há pouco mais de um século, também usou burqa mas sem conotações religiosas. À capa negra que se estendia da cabeça aos pés e só permitia ver os olhos, foi dado o nome de bioco ou rebuço. Um antigo governador civil, em nome da nova civilização, decretou que este traje tradicional fosse banido das ruas e templos. Agora, o bioco está de volta em versão moderna, com outras histórias para contar.

O antigo governador civil de Faro, Júlio Lourenço Pinto, nascido no Porto, viu nesta peça de vestuário “vestígios da dominação muçulmana” que entendia não terem razão de existir no final do século XIX. Vai daí, extinguiu o bioco. No seu livro de crónicas O Algarve, publicado em 1894, justifica: Trata-se de uma “máscara” que poderia dar azo a certas libertinagens. Uma das razões invocadas prende-se com a fidelidade conjugal. Imagine-se uma “frágil pecadora” que, vestida de forma a não ser reconhecida, poderia atirar-se “sem perigo a aventura amorosa-romanesca ou a façanha de infidelidade conjugal”, afirma. Por isso, servindo-se dos poderes que lhe estavam conferidos, decretou: “É proibido nas ruas e templos de todas as povoações deste distrito o uso dos chamados rebuços ou biocos de que as mulheres se servem escondendo o rosto”, refere o artigo 32, do Regulamento Policial do distrito, publicado a 6 de Setembro de 1892.

Lurdes Silva, natural do Porto, “apaixonou-se” pelo bioco quando visitou o Museu do Trajo, em São Brás de Alportel – local onde se podem encontrar cópias de alguns exemplares. O amor à primeira vista por uma peça de vestuário, confessa, não é coisa rara. Mas, neste caso, houve mais do que isso. Esta professora da Universidade do Algarve, na área nas ciências económicas e empresariais, sentiu necessidade de mergulhar na cultura da região. “Levei dois anos a investigar a história desta peça”. Por fim, decidiu partilhar os conhecimentos e começou a produzir biocos colocando, no forro da peça, a história deste vestuário contada em português e inglês. Em 1922 no livro Os Pescadores, Raul Brandão dizia que se tratava de “um traje misterioso e atraente”, que alimentava especulações. Numa passagem da obra, referindo-se às mulheres de Olhão, escreve: “Quando saem, de negro envoltas nos biocos, parecem fantasmas. Passam, olham-nos e não as vemos”.

Mas qual é relação da burqa com o bioco? A burqa, diz Lurdes Silva, é uma “imposição masculina, aqui passa-se o contrário: o homem não quer que ela use, mas ela usa para ter mais liberdade”. Por conseguinte, os três modelos que concebeu, com design de Maria Caroço, puxam pelo lado estético da peça, sublinhando as histórias amorosas e o sentido da liberdade. Por isso, cada um tem a sua designação: mistério, tradição e paixão. O preço dos modelos recriados varia entre os 139 e os 159 euros.

Assim, a novidade deste Verão é um bioco, de um tecido leve, com grafitti assinado por Sen Silva – um artista com várias obras públicas em Olhão e com vários trabalhos expostos numa galeria em Almancil. “Tanto pode ser usado numa cerimónia, como numa festa sunset”, diz Lurdes Silva, referindo-se ao bioco “mistério”, uma peça sugerida pela cantora Viviane, a artista que integra o projecto ”Rua da Saudade”, em homenagem ao poeta Ary dos Santos, e canta “Do Chiado até ao Cais, e que se rendeu à recriação deste traje regional. As cores predominantes são o verde/figueira, o azul lusco-fusco do pôr-do-sol algarvio e o tijolo dos mercados de Olhão. Uma colecção destas peças vai estar patente ao público, na FIL, em Lisboa, entre 27 de Junho a 5 de Julho, numa mostra dedicada à inovação. Para já, no Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela, está patente, até 12 de Julho, na parte da tarde, uma exposição de biocos da autoria da artista plástica Joana Bandeira.

Bioco, um mito bem guardado

Mas nos finais do século XIX, a visão de Júlio Lourenço Pinto estava longe deste recente entusiasmo pelo bioco já que considerava que este não passava de um vestígio da cultura islâmica “sem elegância nem beleza”, feito de um tecido “negro sepulcral”, que não se coadunava com evolução civilizacional. Com alguma semelhança a este traje encontra-se o capelo, da ilha Terceira – que ainda faz parte do folclore açoriano e se tornou símbolo dessa região. No Algarve, a extinção oficial deu-se em 1892. Porém, continuou a ser usado em Olhão até meados dos anos 30 do século XX. O director do Museu do Trajo em São Brás de Alportel, Emanuel Sancho, diz que não passa de “um mito” a relação que se estabeleceu entre esta peça e o véu islâmico. “Há um século tapava-se a cabeça em toda a Europa – desde a Holanda, onde não havia biocos, até à Inglaterra e à França”, observa.


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