Em 1898 existiam na costa algarvia dezoito armações; em 1937, eram já só seis ; e 1968 terá sido o ano daquela última campanha. As imagens registadas são de um interesse inegável, mas, não dispondo das mesmas, socorremo-nos de um texto descritivo da actividade cujo interesse literário e pictórico nos transporta para tempos idos, e para o acontecimento com uma precisão cirurgica, envolvendo-nos na vivência do autor, e permitindo-nos navegar pela nostalgia de tempos outros. Conservámos deliberadamente o portugês da época, na busca de uma maior autenticidade impressiva. Venham daí…
A PESCA DO ATUM, NOS IDOS DE 1944
Abril. A manobra dramática da pesca do atum no Mar de Cobalto e Safira do Algarve. O peixe, em grossos cardumes, faz a sua peregrinação annual para desovar no Mediterrâneo azul. E a manobra feroz tem como prólogo a benção das rêdes, dos aprestos de pesca, e dos barcos, chalupas e calões – as grandes falúas de prôa erguida. É o momento do “Benedictio Novae Navis”, o ritual Católico.
Tôda a equipagem – a campanha – está presente: o mandador, o escrivão, o preguiceiro, e os companheiros com as mulheres e os filhos. Vem também o cura com suas vestes sacerdotais. Descobre-se. Os homens e as mulheres alinham-se sôbre as rêdes. O sacerdote diz o “Benedictio Novae Navis”. E, quando êle segura o hissope, moços e velhos ajoelham e cantam a “Salve Regina” acompanhados pelo orgão do mar. Logo que os aprestos da pesca estão no seu lugar a equipagem divide-se em dois grupos: o giro do mar e o giro da terra.
O grupo do mar sob a direcção do preguiceiro vigia a aproximação do peixe. E, por meio de redes móveis, chamados atalhos, condu-lo para o bucho, uma espécie de prisão de rêdes suspensa na água. É quando há já bastantes prisioneiros – atum, bonitos, cachorretas ou atuns pequenos – o grupo do mar dá sinal ao grupo de terra.
Êste, comandado pelo chefe da equipagem, faz vela em direcção aos aprestos com dezenas de canôas e falúas. E com suas próprias embarcações, arranja em volta da prisão uma arena semelhante à das corridas de touros e todos se preparam para a luta. E todos se dispõem a combater.
Mal o cardume passa da prisão à rêde circular na qual se procederá ao sangrento sacrificio da pesca, o chefe ordena que se aperte o cêrco. Içam-se as amarras que levantam a rêde já cheia de peixe cercado em abundância. É nêste quadro que começa a pesca. É nêste momento que a luta toma corpo e côr. É nêste transe que o combate define a sua amplidão e o seu caracter.
Vamos! Vamos! – Grita o mestre da equipagem em voz imperiosa.
Os camaradas, velhos lobos do mar, batidos pelos anos e pelas tempestades e jóvens hercúleos queimados pelos ventos, cabeças descobertas, peito e braços nús, sob o céu azul que palpita sôbre o cimo das vagas, puxam os cabos, içam a rêde.
O peixe levado assim na rêde, obrigado a subir em massa à flôr da àgua, começa a aparecer, a riscar a superficie inquieta do mar. Primeiro é uma barbatana, um leque aberto, diamante cortando o espelho glauco
A seguir são dois, dez, vinte corpos que por sua vez se mostram e escondem. E ainda outros dez, mais vinte, aqui, ali, novos leques surgindo, novos corpos que desaparecem e surgem à superficie, rasgando a onda, fugindo alucinados, cruzando-se, entrecruzando-se. Com a agitação da vaga espumante, com o redobrar do esforço dos pescadores, crescem também as vozes da equipagem.
Agora já não é sòmente o chefe que estimula o reboque dos cabos; são também os espectadores, de pé, nas canôas. São os pescadores a bordo das barcas, todos a gritar, vomitando imprecações, rindo, à espera do combate eminente. O peixe está à vista. Á flôr da água é uma sarabanda de vertigem, um turbilhão e uma catarata, uma desaturada dansa de serpentinas na qual as escamas de prata, as barbatanas em leque, e as caudas em crescente se fundem e se confundem, se chocam e entrechocam com as cordas amarradas às barcas de maneira a manter a rêde içada, os pescadores tomam os arpões e firmam-nos nos punhos com baraços de esparto. E agora podemos baptizar a pesca do atum com o nome de corrida de touros maritima. A arena, que em certas aldeias se compõe de carros de bois ligados uns aos outros, é aqui formada por barcas e falúas unidas umas às outras em volta da rêde. Mas em vez de um touro perseguido a golpes de lança tornado furioso pelas bandarilhas, de tal maneira em uso nas diversões populares, são dezenas, centenas de animais que revolteiam na arena. E então a corrida atinge proporções delirantes. É uma corrida e uma batalha. É trabalho e massacre. É a cobiça e a valentia. É o perigo e a barbarie, tudo em ponto grande, enorme, formidável! Os pescadores, de pé a bordo das barcas constantemente em dansa macabra, atiram o arpão aqui, acolá. E todos, de todos os barcos, de todos os lados em clamores de Saturnal, lançam as suas armas, rápidas como o relâmpago, acertando no alvo como bèsteiros..
No meio desta desordem a certeza do golpe é tal que o atum, apanhado em cheio pelo arpão e puxado por certos movimentos da corda ligada aos punhos do lançador, salta e cai na barca. No choque da queda o seu pêso e o balanço da embarcação obrigam frequentemente o arpoador a cair sôbre a prêsa. Dêste modo, uns a seguir aos outros, ao abater-se sôbre a sua vitima, recebem na face, nos braços e no peito, o jacto de sangue que lhes atravessou o dorso. E desta maneira, na alucinação desta fantástica corrida, vê-se continuamente, à direita e à esquerda, os arpoadores caindo nos barcos e voltar à matança, empunhando arpões, com as faces crispadas e pintalgadas de sangue, carniceiros horriveis de pesadêlo.
10 comentários:
Será que a Câmara de Silves se preocupou em recuperar algum do património referente às artes de Armação de Atum e outras que existiram em Armação de Pêra?
Não acredito pois história e património neste concelho estão reservados aos mouros e à cortiça.
Nem o nome de uma rua sequer!
Nesta terra só se consagram os patos bravos de tomar ou montijo. Os da terra, humildes, não têm. nem nunca tiveram qualquer consagração.
Sugestão, para uma boa consciência que reste: Rua das Armações do atum!
Desconhecia a origem do nome da terra e achei o texto muito interessante.
Sem ser de cá voto para que a Rua das Armações vá por diante.
A Dr.ª Isabel em vez de andar a organizar falsas feiras medievais bem podia preocupar-se com a história das gentes do mar que muito sofreram para garantir o sustento das suas famílias
Para o Sr anónimo
A Dr.ª Isabel Soares sempre esteve preocupada com a história e especialmente com a vida dos pescadores, lembro-lhe que foi ela que fez entre outras bem feitorias os apoios para os homens do mar guardarem os seus aprestos.
O Arthur Conan Doyle adora fazer-se passar pela Adelina Capelo!!! Já chega de utilizar esse nome de mulher ridículo, assuma a sua identidade sem receios Sr. Director do Pasquim Voz de Silves, jornal do Regime Soarista! Todos nós sabemos que os tachos de acessora da Sr.ª Presidente para a Comunicação Social compensam-se com propaganda ao culto da Rainha da Feira Medieval, mas pelo menos poderia abster-se de dizer asneiras e barbaridades acerca de Armação de Pêra e dos seus Pescadores!!! A Dr.ª Isabel Soares nunca se preocupou com a história da vila e especialmente com a vida dos pescadores, porque se o fizesse jamais teria deixado construir prédios atrás de prédios que descaracterizaram as raízes históricas da vila!!! Efectivamente, os apoios para os pescadores foram obra positiva, mas convém recordar e salientar que a iniciativa não partiu da Dr.ª Isabel Soares, porque se assim fosse, bem podíamos estar ainda à espera! Já agora, diga-me, com aquele comboio estúpido que vagueia por Armação de Pêra, qual é o património histórico da vila que se visita, a não ser a Fortaleza? Na verdade, as pessoas limitam-se a ver prédios, gruas, betão e lixo e mais prédios, gruas e betão e lixo...
Sou a favor do nome da Rua das Armações...
tenho umas digitalizadas umas fotos a preto e branco sobre a pesca no atum em Armação, se não estou em erro dos anos 60
...gostei imenso do seu post
Obrigado pela sua participação e
apreciação qualificada.
Saudações.J.J.J.
Aguardamos as fotos!
Belo texto e saudosa actividade...Bem hajam.
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