Por Eduardo Pais Ferreira in jornal de Negócios em 17/12/2013
No passado fim-de-semana, em Sevilha, três cidadãos espanhóis, três
cidadãos europeus, morreram em virtude de terem ingerido alimentos fora do
prazo de validade. Com o pai sem emprego, viviam desde o início da crise a
recolher cartões e outros restos pelas ruas, alimentando-se, basicamente, de
comida, cujo prazo de validade fora ultrapassado e lhes era oferecida.
Estes três cidadãos não são os primeiros a morrer na sequência da
crise económica e das políticas que a iriam permitir ultrapassar e que foram
postas em prática há três anos. As ondas de suicídios na Grécia e Itália ainda
estão presentes. A austeridade, que iria salvar a Europa, afinal mata.
Entre suicídios, mortes por subnutrição, crescimento de doenças como
a tuberculose, depressões graves e aumento drástico do alcoolismo, aquilo que
para muito são efeitos colaterais da crise a que não importa prestar atenção,
vão-se sucedendo nos países sujeitos a ferozes medidas
"austeritárias". Em, The Body Economis; Why AusterityKills, David
Stuckler and Sanjay Basu, analisam o fenómeno com rigor e paixão em simultâneo.
A política de austeridade, acompanhada do seu cortejo de efeitos na
saúde, no desemprego, na degradação dos serviços sociais, no aumento da
pobreza, na destruição da classe média, na abrupta regressão do Produto Interno
Bruto e, em termos mais gerais, por um impensável retrocesso civilizacional e
social, tem sido o esteio mais visível daquilo que o Papa Francisco chama a
política da exclusão.
O insucesso dessas políticas, ainda que mascarado com efémeras
notícias de ligeiras melhorias dos pacientes e, agora, com o anunciado sucesso
do fim do programa de apoio à Irlanda, deveria ter levado há muito ao seu
abandono, não fossem elas ideias zombie, como lhes chama John Quincy, isto são
ideias que, mesmo depois de mortas, continuam a aparecer.
De facto, ao longo destes anos, não surgiram quaisquer estudos
científicos a fundamentar a política de austeridade e aqueles que tinham
constituído os pilares sagrados – os estudos de Kenneth Rogoff – Carmen
Reinhrdt e de Alessina e outros "Boconni boys" - foram perdendo a
credibilidade científica.
Ao mesmo tempo, um conjunto de obras como o já citado The Body
Economics, The Debtors Prision. Austerity versus Possibility, de Robert Kutzner
e, sobretudo, Austerity. The Stoty of a Dangerous Idea de Mark Blyth vieram
demonstrar o absurdo de uma política auto-lesiva que apenas conduz os países a
situações cada vez mais difíceis.
Um grupo de autores tão prestigiados como Joseph Stiglitz, Paul
Krugman, Robert Skideslky, Paul de Grawe ou Martin Wolf têm sido infatigáveis
no seu labor e na crítica aos governos que, como afirmou, em Lisboa, De Grawe
se esforçaram por ganhar o concurso de beleza da austeridade.
A austeridade a nível europeu tem tido, como sabemos, como mandantes
implacáveis, a Comissão Europeia, a Alemanha e mais alguns países nórdicos, por
um lado e o Fundo Monetário Internacional. Já quanto ao terceiro elemento da
troika – o BCE - se não é visível o seu distanciamento no terreno, não se pode
esquecer que foi Mario Draghi quem realmente salvou o euro, abandonando a
ortodoxia de Trichet que, alegremente, conduzira a Europa pelas rotas do
Titanic.
Impressiona, especialmente, pensar que a União Europeia – suposta de
assentar numa união económica e política de um conjunto alargado de países –
tenha defendido um política de igual sentido para todos eles sem perceber que o
esforço de austeridade simultâneo em países em boa e má situação era um
exercício totalmente errado. Uma daquelas ideias que um qualquer estudante de
economia de um primeiro ano de um faculdade não amarrada a preconceitos
ideológicos, rapidamente compreenderia e se esse estudante fosse, um pouco mais
cínico, diria mesmo É a ideologia estúpido.
Os programas de assistência financeira – extremamente semelhantes,
aliás, no seu desenho, ainda que nalguns casos objecto de negociação mais firme
por parte de alguns governos, retomaram, de facto, o consenso de Washington,
fortemente marcado por um neo-liberalismo e condicionados, ainda por cima, pela
impossibilidade de recurso ao instrumento cambial, aproximaram-se perigosamente
do "liquidacionismo" com que Andrew Mellon quis resolver a Grande
Depressão. Liquidar as empresas, liquidar os trabalhadores, liquidar..., para
depois construir um admirável mundo novo.
A influência do Fundo Monetário na concepção desses programas é, por
demais evidente, ainda que alguns portugueses tenham chegado a reclamar a
paternidade, certos do sucesso dos mesmos e, por isso, é especialmente
importante analisar o que vem sucedendo a nível do Fundo.
Há praticamente um ano, Olivier Blanchard, um prestigiado académico,
economista chefe do FMI, admitiu publicamente o erro que cometera ao subestimar
os efeitos contraccionistas da austeridade, juntando-se aquilo que era já a
opinião conhecida de alguns técnicos.
Christine Lagarde que, no início de toda esta história, dissera que
Portugal não iria apenas sobreviver mas até crescer com o programa de
austeridade, foi-se multiplicando em declarações que a distanciavam da
austeridade, criando a maior perplexidade em todos os que assistiam à teimosia
obstinada da troika.
Se não se podem deixar de ver laivos de hipocrisia ao longo da sua
actuação, bem mais grave é a sua última afirmação crítica da austeridade e do
seu ritmo: "Dissemo-lo porque é também uma questão de honra para o FMI
reconhecer os seus erros quando eles são cometidos ou de reconhecer que alguns
temas não foram suficientemente abordados e explorados a fundo".
Que pensar, com efeito, de alguém que pensa que lava a honra da
instituição a que preside pela simples admissão de que errou sem sequer pedir,
pelo menos, desculpa aos Estados a quem impôs programa errados, ou aos milhões
de vítimas dessa política?
No mínimo, que a honra de Christine Lagarde se perdeu.
Naturalmente que não terá escapado aos leitores que o título deste
artigo foi inspirado pela novela de Heinrich Boll, depois transposta para o
cinema por Margarethe Von Trota e Volker Schlondorff , A Honra Perdida de
Katharina Blum, que nos fala de uma jovem inocente destruída pelo
sensacionalismo dos tablóides e pela histeria policial contra o terrorismo do
Exército Vermelho. Naturalmente que o mesmo não acontecerá à presidente do FMI,
que continuará a ser uma das mais poderosas pessoas do mundo e ficará de bem
com a sua consciência porque admitiu o erro. Tudo é tão fácil para os
poderosos.
Presidente do IDEFF. Professor Catedrático da FDL
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