O défice de participação da sociedade civil portuguesa é o primeiro responsável pelo "estado da nação". A política, economia e cultura oficiais são essencialmente caracterizadas pelos estigmas de uma classe restrita e pouco representativa das reais motivações, interesses e carências da sociedade real, e assim continuarão enquanto a sociedade civil, por omissão, o permitir. Este "sítio" pretendendo estimular a participação da sociedade civil, embora restrito no tema "Armação de Pêra", tem uma abrangência e vocação nacionais, pelo que constitui, pela sua própria natureza, uma visita aos males gerais que determinaram e determinam o nosso destino comum.

sábado, 28 de dezembro de 2013

A honra perdida de Cristhine Lagarde


Por Eduardo Pais Ferreira in jornal de Negócios em 17/12/2013

No passado fim-de-semana, em Sevilha, três cidadãos espanhóis, três cidadãos europeus, morreram em virtude de terem ingerido alimentos fora do prazo de validade. Com o pai sem emprego, viviam desde o início da crise a recolher cartões e outros restos pelas ruas, alimentando-se, basicamente, de comida, cujo prazo de validade fora ultrapassado e lhes era oferecida.

Estes três cidadãos não são os primeiros a morrer na sequência da crise económica e das políticas que a iriam permitir ultrapassar e que foram postas em prática há três anos. As ondas de suicídios na Grécia e Itália ainda estão presentes. A austeridade, que iria salvar a Europa, afinal mata.

Entre suicídios, mortes por subnutrição, crescimento de doenças como a tuberculose, depressões graves e aumento drástico do alcoolismo, aquilo que para muito são efeitos colaterais da crise a que não importa prestar atenção, vão-se sucedendo nos países sujeitos a ferozes medidas "austeritárias". Em, The Body Economis; Why AusterityKills, David Stuckler and Sanjay Basu, analisam o fenómeno com rigor e paixão em simultâneo.

A política de austeridade, acompanhada do seu cortejo de efeitos na saúde, no desemprego, na degradação dos serviços sociais, no aumento da pobreza, na destruição da classe média, na abrupta regressão do Produto Interno Bruto e, em termos mais gerais, por um impensável retrocesso civilizacional e social, tem sido o esteio mais visível daquilo que o Papa Francisco chama a política da exclusão.

O insucesso dessas políticas, ainda que mascarado com efémeras notícias de ligeiras melhorias dos pacientes e, agora, com o anunciado sucesso do fim do programa de apoio à Irlanda, deveria ter levado há muito ao seu abandono, não fossem elas ideias zombie, como lhes chama John Quincy, isto são ideias que, mesmo depois de mortas, continuam a aparecer.

De facto, ao longo destes anos, não surgiram quaisquer estudos científicos a fundamentar a política de austeridade e aqueles que tinham constituído os pilares sagrados – os estudos de Kenneth Rogoff – Carmen Reinhrdt e de Alessina e outros "Boconni boys" - foram perdendo a credibilidade científica.

Ao mesmo tempo, um conjunto de obras como o já citado The Body Economics, The Debtors Prision. Austerity versus Possibility, de Robert Kutzner e, sobretudo, Austerity. The Stoty of a Dangerous Idea de Mark Blyth vieram demonstrar o absurdo de uma política auto-lesiva que apenas conduz os países a situações cada vez mais difíceis.

Um grupo de autores tão prestigiados como Joseph Stiglitz, Paul Krugman, Robert Skideslky, Paul de Grawe ou Martin Wolf têm sido infatigáveis no seu labor e na crítica aos governos que, como afirmou, em Lisboa, De Grawe se esforçaram por ganhar o concurso de beleza da austeridade.

A austeridade a nível europeu tem tido, como sabemos, como mandantes implacáveis, a Comissão Europeia, a Alemanha e mais alguns países nórdicos, por um lado e o Fundo Monetário Internacional. Já quanto ao terceiro elemento da troika – o BCE - se não é visível o seu distanciamento no terreno, não se pode esquecer que foi Mario Draghi quem realmente salvou o euro, abandonando a ortodoxia de Trichet que, alegremente, conduzira a Europa pelas rotas do Titanic.

Impressiona, especialmente, pensar que a União Europeia – suposta de assentar numa união económica e política de um conjunto alargado de países – tenha defendido um política de igual sentido para todos eles sem perceber que o esforço de austeridade simultâneo em países em boa e má situação era um exercício totalmente errado. Uma daquelas ideias que um qualquer estudante de economia de um primeiro ano de um faculdade não amarrada a preconceitos ideológicos, rapidamente compreenderia e se esse estudante fosse, um pouco mais cínico, diria mesmo É a ideologia estúpido.

Os programas de assistência financeira – extremamente semelhantes, aliás, no seu desenho, ainda que nalguns casos objecto de negociação mais firme por parte de alguns governos, retomaram, de facto, o consenso de Washington, fortemente marcado por um neo-liberalismo e condicionados, ainda por cima, pela impossibilidade de recurso ao instrumento cambial, aproximaram-se perigosamente do "liquidacionismo" com que Andrew Mellon quis resolver a Grande Depressão. Liquidar as empresas, liquidar os trabalhadores, liquidar..., para depois construir um admirável mundo novo.

A influência do Fundo Monetário na concepção desses programas é, por demais evidente, ainda que alguns portugueses tenham chegado a reclamar a paternidade, certos do sucesso dos mesmos e, por isso, é especialmente importante analisar o que vem sucedendo a nível do Fundo.

Há praticamente um ano, Olivier Blanchard, um prestigiado académico, economista chefe do FMI, admitiu publicamente o erro que cometera ao subestimar os efeitos contraccionistas da austeridade, juntando-se aquilo que era já a opinião conhecida de alguns técnicos.

Christine Lagarde que, no início de toda esta história, dissera que Portugal não iria apenas sobreviver mas até crescer com o programa de austeridade, foi-se multiplicando em declarações que a distanciavam da austeridade, criando a maior perplexidade em todos os que assistiam à teimosia obstinada da troika.


Se não se podem deixar de ver laivos de hipocrisia ao longo da sua actuação, bem mais grave é a sua última afirmação crítica da austeridade e do seu ritmo: "Dissemo-lo porque é também uma questão de honra para o FMI reconhecer os seus erros quando eles são cometidos ou de reconhecer que alguns temas não foram suficientemente abordados e explorados a fundo".

Que pensar, com efeito, de alguém que pensa que lava a honra da instituição a que preside pela simples admissão de que errou sem sequer pedir, pelo menos, desculpa aos Estados a quem impôs programa errados, ou aos milhões de vítimas dessa política?

No mínimo, que a honra de Christine Lagarde se perdeu.

Naturalmente que não terá escapado aos leitores que o título deste artigo foi inspirado pela novela de Heinrich Boll, depois transposta para o cinema por Margarethe Von Trota e Volker Schlondorff , A Honra Perdida de Katharina Blum, que nos fala de uma jovem inocente destruída pelo sensacionalismo dos tablóides e pela histeria policial contra o terrorismo do Exército Vermelho. Naturalmente que o mesmo não acontecerá à presidente do FMI, que continuará a ser uma das mais poderosas pessoas do mundo e ficará de bem com a sua consciência porque admitiu o erro. Tudo é tão fácil para os poderosos.

Presidente do IDEFF. Professor Catedrático da FDL


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