Por Joana Gorjao Henriques, in "Público", 6/12/2013
Quando estava na prisão, Mandela percebeu que se tivesse frio não ia
adiantar escrever uma carta ao director a queixar-se; a única pessoa que lhe
poderia trazer um cobertor seria o responsável pela secção da cela onde estava.
Por isso, precisava de dialogar com os carcereiros.
A história foi contada pelo próprio Mandela ao jornalista
sul-africano Allister Sparks, ex-director do Rand Daily Mail, e mais tarde
correspondente dos jornais The Washington Post e The Observer.
“Mandela começou a conhecer os carcereiros e soube que eram muito
mal pagos, não tinham estudos, tendiam a ter dificuldades e como era advogado
ajudou-os, deu-lhes conselhos de borla”, conta-nos a partir da África do Sul o
autor de vários livros, como The Mind of South Africa (1991) ou Beyond the
Miracle: Inside the New South Africa (2006). “Ganhou a confiança deles,
conseguiu saber por que é que tinham tanto medo dos negros sul-africanos e
porque eram tão violentos. Percebeu que eles tinham medo: medo do número de negros,
de que a maioria negra tomasse conta do poder e de que eles, brancos, fossem os
primeiros a perder o emprego e a sofrer” — e conhecê-los era conhecer também
muitos outros brancos sul-africanos.
Sparks foi nomeado em 1995 por Nelson Mandela para o conselho da
South African Broadcasting Corporation, tornou-se o director de informação da
estação em 1997, e conviveu com ele de perto. Usa a história do cobertor para
chegar ao osso do que pensa ter sido o legado de um homem que teve um papel
decisivo no fim de uma segregação racial de 46 anos (de 1948 a 1994 —
oficialmente, com as primeiras eleições multiraciais). “A sua contribuição para
a negociação de acordos foi esta capacidade de perceber a psicologia daqueles
contra quem se estava a insurgir e depois encontrar um meio de anular o factor
que estava a bloquear o acordo” – o medo. E repete: “A sua importância no
movimento pelos direitos civis é isto, tem que se entender a psicologia do
inimigo, das pessoas que estão a oprimir-nos e perceber: porque estão a oprimir-nos?
Porque tendem a tornar-se violentos?”
A “estratégia do cobertor”, chamemos-lhe assim, serviu-lhe então
depois nos tempos de liberdade. Desenvolvendo a capacidade de se colocar no
lugar dos outros e de empatizar com eles, fez “gestos simples”, segundo Sparks,
cheios de simbolismo. Nisso tornou-se “muito habilidoso”. Por exemplo, decidiu
ir tomar chá com Betsie Schoombie, a viúva de um dos homens por detrás da
ideologia do apartheid, Hendrik Verwoerd, primeiro-ministro entre 1958 e 1966.
“Visitou-a, e tornou o facto público”, sublinhado que não temia perdoá-los em
nome do sucesso da paz, mesmo depois dos 27 anos passados na prisão, de onde
não saiu com rancor ou amargura em 1990. Outro exemplo da estratégia do
cobertor: “Chamou todos os generais da minoria branca e disse-lhes: ‘Eu nunca
poderei derrubar-vos, mas vocês nunca nos conseguirão matar a todos. É melhor
entendermo-nos: eu mantenho-vos nos vossos postos mas é preciso ter generais
negros também’.”
Mandela, o primeiro presidente negro da África do Sul, é o homem dos
gestos. Não é apenas o jornalista sul-africano quem nos fala deles. Ao
contrário do que aconteceu em outros casos, quando chegou ao poder em 1994 não
propôs uma política de expulsão da minoria branca, lembra o italiano Livio Sansone,
do departamento de Antropologia e Centro de Estudos Afro-Orientais da
Universidade Federal da Bahia, a viver no Brasil há décadas. E, mais uma vez,
soube utilizar “a política da cor” de forma inteligente, acrescenta-nos numa
conversa por Skype a partir da Europa. Outro momento decisivo: quando quis
manter um serviço de segurança composto por brancos. “O que foi simbólico: um
presidente negro andar com um monte de polícias brancos… Ele era genial nesse
aspecto. Manteve os seguranças brancos para mostrar que não tirava os brancos
dos cargos deles.”
Na memória de Sílvio Humberto, economista, professor e fundador do
Instituto Steve Biko (nome de um activista sul-africano da luta contra o
apartheid), ficou também a perseverança de um líder que demonstrou ao mundo que
era possível “equilibrar a arte de fazer política com as agruras do racismo”.
“Uma das primeiras coisas com que o racismo acaba é com a humanidade e fica
difícil restabelecer o diálogo com alguém que não te considera humano. Mandela
conseguiu equilibrar as duas coisas, fazer a transição na África do Sul e saber
o momento exacto de sair e de não se perpetuar no poder.” O também vereador da
cidade de Salvador repete-nos a imagem dos “gestos”: “Ele deu uma lição de
fazer política com o seu exemplo, com o seu gesto. É o gesto de quem tem a mão
aberta, e está disposto a estender a mão ao outro em prole da África do Sul”. E
não menos importante: só saiu da prisão quando “pôde lutar de igual para igual,
com dignidade”.
Por isso, como diz Sparks, a África do Sul “adora-o”. “É um tesouro
nacional, adorado por todas as raças no país”.
A luta armada
Mas Mandela passou por diversas fases na sua vida, nem todas tão
conciliatórias quanto a imagem que ficou do Nobel da Paz dos últimos anos.
Quando era novo, formou a ala militar do ANC (Spear of the Nation, abreviado
MK). Não iria conseguir vencer uma luta por meios pacíficos, defendia. Gandhi
tinha lançado a sua carreira política na África do Sul, e a sua postura era a
de resistência passiva. “Mandela, na fase inicial, decidiu que enquanto se está
a enfrentar um regime que usa armas não se podem usar meios pacíficos”,
sublinha Sparks. “Mais tarde mudou a sua perspectiva, embora nunca abandonasse
a estratégia militar. Enquanto estava na prisão percebeu que o braço armado que
fundou podia ser um factor importante num acordo de negociação.”
Por outro lado, o não abdicar da luta armada foi um risco, porque
poderia eventualmente desencadear uma guerra civil, lembra-nos em conversa
telefónica o jornalista sul-africano Mondli Makhanya, antigo director do The
Sunday Times sul-africano.
Durante as negociações com o então presidente Frederik Willem de
Klerk, com quem chegou ao fim do apartheid, Mandela disse que ele era um homem
íntegro, apesar de pertencer ao Partido Nacional, e “isso deu-lhe poder”. “Teve
a visão para olhar além do imediato, e de dar um passo em direcção ao outro
lado. Não tenho a certeza de que qualquer outro líder tenha sido capaz de dar
esse passo e de tomar os riscos que ele tomou para convencer toda a gente. É
uma qualidade fantástica.”
Outras qualidades, como líder: ser “muito firme”, diz Makhanya. Mas
a coisa mais importante: “a sua humildade”. Isso vem do facto de Mandela não se
colocar no lugar de quem dá ordens, mas de fazer a outra pessoa sentir que era
tão importante quanto ele: “Podia relacionar-se com presidentes da mesma forma
que se relacionava com as pessoas da rua.” Depois de ter saído da prisão e
fazê-lo determinado a unir o país, Mandela não teve apenas uma liderança forte.
Teve disponibilidade para perdoar, para deixar o passado para trás, e disse
ainda aos sul-africanos que não deviam temer a democracia, acrescenta.
O milagre da sobrevivência
Esta capacidade invulgar de comunicação e de empatia tornou-o um
símbolo, não apenas para negros mas para todos. Acima de tudo, diz Makhanya,
Mandela lutou pela igualdade e pelos direitos humanos. Daí que este jornalista
afirme: “Mandela não nos pertence, pertence ao mundo, é o nosso Mandela mas é
também o Mandela do mundo”.
Mandela é do mundo, e seria influenciado também por outros
activistas do mundo. O historiador americano Clayborne Carson, escolhido pela
família de Martin Luther King para editar e publicar os seus escritos,
reconhece nele as influências do activista norte-americano no qual se
especializou. A partir da Califórnia, Carson fala-nos da inspiração do boicote
de Montgomery — em 1955, Rosa Parks recusou dar o seu lugar a um branco no
autocarro (como era a regra) e desencadeou o movimento dos direitos civis
liderado por King, o que levou ao fim da segregação racial nos EUA. “Na altura
havia semelhanças entre as lutas nos Estados Unidos e na África do Sul”, lembra
o também fundador do Instituto Martin Luther King na Universidade de Stanford, onde
ensina. Aliás, quando foi aos EUA Mandela quis conhecer Rosa Parks. “Sei que
ficou muito comovido, porque a via como uma pessoa crucial na luta dos
afro-americanos”.
Nos anos 1980 a luta contra o apartheid foi apoiada pelos
afro-americanos, que fizeram protestos à porta da embaixada sul-africana em
Washington D.C. e pressão para que Ronald Reagan, então presidente, adoptasse
medidas contra a África do Sul, recorda. E, curiosamente, “o maior protesto em
Stanford não foi nos anos 1960 mas nos 1980 contra o apartheid”, diz. “Os
americanos viam Mandela como líder, mas ele estava na prisão. Conheceram-no
melhor depois quando saiu.”
Nos EUA Mandela é visto como alguém que fez uma “extensão
internacional dos princípios de Martin Luther King” — e esses princípios são o
de “um longo e paciente sofrimento”, completa Henry Gates, famoso especialista
em estudos afro-americanos, professor na Universidade de Harvard. Quem sabe
definir carisma, questiona retoricamente ao telefone de Cambridge, EUA, quando
lhe falamos das suas características como líder. “A diferença entre King e
Mandela é que nunca ninguém sonhou que King iria emergir como Presidente dos
EUA e isto é diferente. Aqui nos EUA a acção política era mais um movimento
moral, baseado em objecção de consciência e na tentativa de converter as
cabeças e os corações dos cidadãos; no caso de Mandela foi um golpe, a
tentativa de suplantar um partido por outro, e por isso resistiram tão
violentamente.”
Mandela nunca desistiu nem capitulou, diz o também autor de vários
programas de televisão. Sobreviveu aos anos na prisão e depois “apareceu como
se fosse ontem!”, lembra entusiasmado. “Todos celebrámos este homem que era um
super-homem.”
Gates guarda um poster original da primeira campanha política de
Mandela, para o qual olha todos os dias quando acorda. Quando ele foi libertado
da prisão, levou as filhas a assistir ao momento pela TV. “Na história
ocidental dos negros nada é mais importante do que a sua sobrevivência e a
eleição como presidente porque é um triunfo tão grande de uma oposição negra ao
poder dominante”, diz. Não é por acaso que o professor fala em “sobrevivência”,
como se tivesse sido um milagre. Nos EUA todos os grandes líderes do movimento
dos direitos civis foram mortos: J.F. Kennedy, Malcolm X, o próprio Dr. King,
como os americanos lhe chamam. “Mandela sobreviveu e dirigiu um país, é um
milagre entre os negros.”
Optimismo e cor da riqueza
Não é como milagre que o sociólogo Éric Fassin, professor na École
Normale Supérieure de Paris e especialista em temas raciais, define o legado de
Mandela. Mas quase. A lição a tirar do papel de Mandela como activista pelos
direitos civis resume-se numa palavra: “Optimismo”. Optimismo porque transmite
a esperança, a quem está do lado do perdedor durante anos, de que pode um dia
ganhar, diz-nos entre as aulas em Paris: “Aquilo que parecia ser algo que ia
continuar para sempre — o apartheid — acabou. Mandela foi libertado e depois
tornou-se presidente. A ideia de que, quando se está a perder, o impensável
pode tornar-se viável é aplicável a todo o tipo de movimentos sociais e todas
as situações. Pensemos no que se passa em Israel.”
Na África do Sul, ao mesmo tempo que se lutava pelo fim do
apartheid, outro movimento favorecia o separatismo negro, lembra Clayborne
Carson. O que Mandela conseguiu foi não fazer do fim do apartheid “uma luta de
negros contra brancos mas de brancos e negros a ultrapassarem as injustiças
juntos”, algo que lhe garante ainda admiração única. “Mandela e o ANC eram
consistentes a defender uma África do Sul multirracial.” Carson não tem dúvidas
de que Mandela “será lembrado, ao lado de King e de Ghandi, como um dos três
grandes nomes da liberdade humana e dos direitos humanos do século XX”.
Aí está, então, uma segunda razão para Éric Fassin usar a palavra
“optimismo”: a luta pelo fim do apartheid foi uma batalha racial, mas as
expectativas eram de que iria haver uma batalha de sangue, só que isso não
aconteceu. Moral da história: “Nem todas as revoluções precisam de se
transformar em sangue ou numa ditadura. O exemplo que Mandela deu foi que o
impensável acontece e que a nação arco-íris até certo ponto funcionou. Não
significa que o racismo desapareceu, não sou naïf, mas significa que África do
Sul pode ultrapassar isto.”
O país após o apartheid
Se a admiração pelo Mandela dos tempos da luta na prisão contra o
apartheid é quase geral, já a sua postura enquanto presidente da África do Sul
e o seu lado conciliatório é menos consensual.
O “grande exemplo, brutal,” de alguém “tenaz, que falava muito na construção
e apontava para o futuro” do Mandela da fase inicial ficou aquém das
expectativas na fase posterior para o português Nuno Santos, sociólogo,
conhecido como rapper Chullage e à frente de duas associações activistas, a
Plataforma Gueto e a Khapaz. Envolvido com outros movimentos internacionais
pela igualdade racial, e leitor de blogues de autores sul-africanos que andam
na casa dos 30 anos, Nuno Santos fala de uma África do Sul onde formalmente a
segregação racial acabou, mas onde na prática continuam a existir desigualdades
entre brancos e negros. Há hoje uma burguesia negra sul-africana, mas “o acesso
aos empregos”, por exemplo, “continua a ser altamente racializado”, as
condições de vida melhoraram num par de cidades e no resto do país ainda há muitos
que precisam de andar horas para buscar água potável e trabalham em “condições
obscenas”, exemplifica.
O sul-africano Mondli Makhanya contextualiza: os problemas raciais
na África do Sul agora são muito diferentes de há 20 anos. O que Mandela
conseguiu durante os cinco anos em que esteve na presidência (1994-1999) foi
“algo extraordinário”: “Mudou as condições de vida de muita gente, havia
pessoas que não tinham electricidade, novas casas foram construídas para quem
vivia em bairros de lata, muitos passaram a ter água potável”. Mas: “Há muita
coisa a fazer.” Não há separação racial nas escolas, nos bares, nos autocarros,
“as pessoas relacionam-se umas com as outras, ultrapassou-se a barreira da
cor”, e isso deve-se, considera, ao que Mandela fez durante o seu mandato: “a
reconciliação, reconstrução da nação”. A nível económico confirma as
informações que Nuno Santos vai recebendo da sua rede: “A maior parte do
dinheiro está em mãos brancas, a classe média é predominante branca e os pobres
são negros. A maioria ainda vê a cor da riqueza como branca, e a cor da pobreza
como negra. Isso afecta as relações, porque as pessoas pensam: ‘Para que serve
a liberdade, se não há liberdade económica?’” Para ele, “o grande desafio de agora
é passar da reconciliação para um equilíbrio económico.”
O herói do meio
O filósofo alemão Hans Magnus Enzensberger descreveu Mandela como “o
herói do meio” e é assim que Livio Sansone o gosta de ver. Porque tanto ele
como Frederik De Klerk tiveram “a coragem de fazer um acordo contra a maioria
da vontade do povo”. Havia na África do Sul quem quisesse um ajuste de contas
racial, e ambos “fizeram com que isso não acontecesse. É um símbolo
importante.” Depois Mandela teve ainda a coragem de se “auto-exilar” — sair da
política — e dizer: “‘Fiz a minha luta, agora deixo espaço para os outros’. Há
poucos como ele”, conclui Sansone.
Herança e legado de Mandela como líder activista pelos direitos
civis? A crença de que “é possível ter uma sociedade em que a diversidade não é
considerada como problema mas como valor, um valor que tem que ser exercitado
diariamente porque o racismo tem muitas armadilhas e sabemos que, às vezes,
mudam-se as leis mas não a cabeça”, diz Sílvio Humberto. “É o que ele defendeu:
se você é educado para odiar também pode ser educado para amar.”
Resultado de um momento catártico, ícone de um sofrimento colectivo
de centenas de anos, ele era único, diz Sansone. Não haverá um segundo Mandela,
considera, porque ele é produto de um tempo. Foi, como lhe chama, “o sonho
colectivo de muitos”, porque o resto do mundo também estava empenhado em abolir
o apartheid, “algo muito injusto e anti-histórico”. Uma personagem charmosa,
sedutora, meiga, Mandela é ainda “um pouco um santo”. Não tem dúvidas: “Não
vejo no horizonte um líder tão charmoso quanto Mandela.”
No fundo, a estratégia “do cobertor” pode ter sido eficaz, mas teve
menos de estratégia no sentido cínico do termo, e mais de autenticidade.
Allister Sparks lembra a singularidade do sucesso de Mandela em direcção aos
opositores: “Projectava uma personalidade muito humana e calorosa até para os
inimigos. Ele fazia-o de forma muito honesta. Esses gestos nunca pareciam
falsos.”