por João Carlos Espada, Publicado em 12 de Dezembro de 2009, Jornal i
Vimos no sábado passado um dos resultados do crescimento do Estado: o aumento paulatino dos impostos. Há uma outra consequência de alcance muito mais profundo: a geração de uma cultura pública de indisciplina.
Discutimos no sábado passado o que poderíamos designar por paradoxo da concorrência: a liberdade de empreendimento em regime de concorrência gera uma disciplina severa, em claro contraste com a indisciplina em regra gerada pela tutela estatal.
Este paradoxo tem profundas consequências políticas porque é contra-intuitivo. Nas culturas políticas sem hábitos de liberdade - em regra culturas políticas continentais, por contraste com marítimas - a ideia comum é precisamente a contrária. As pessoas tendem a pensar que a liberdade e a concorrência geram indisciplina ou, em alternativa, a opressão do forte pelo fraco. Daqui surgem duas tendências rivais que se alimentam mutuamente no combate à livre concorrência.
Convergência entre rivais. Por um lado temos os chamados defensores da ordem. Tendem a pedir mais intervenção do Estado ou de autoridades centrais para por cobro ao que vêem como excessiva variedade e ausência de simetria. Por outro lado, temos os chamados defensores da liberdade. Vêem a disciplina impessoal da concorrência como opressora da "livre expressão" de cada um. E acabam também eles a pedir mais intervenção do Estado para "controlar as forças cegas da concorrência". Estas infelizes dissonâncias cognitivas tendem em regra para o mesmo resultado: as tendências rivais, numa cultura política continental, convergem no comum reforço do poder e alcance do Estado.
Dois tipos de disciplina. Vimos no sábado passado um dos resultados do crescimento do Estado: a indisciplina orçamental, a subida constante da despesa e da dívida públicas, o aumento paulatino dos impostos. Mas há uma outra consequência de alcance muito mais profundo: a geração de uma cultura pública de indisciplina e de compadrio. Vale a pena observar como esta cultura laxista emerge do crescimento do Estado.
É importante começar por observar que há dois tipos de disciplina. Uma consiste na obediência a regras gerais de conduta, outra consiste na obediência a ordens particulares de comando.
Regras gerais. As regras gerais de conduta tendem a ser abstractas, independentes de propósitos particulares e iguais para todos os que se encontram em situações semelhantes. Estas regras emergem tipicamente em situações de troca livre e concorrencial, sem terem de ser delineadas centralmente por ninguém.
Nestas situações, os agentes que visam trocar bens ou serviços têm interesse próprio em sinalizar que o seu comportamento segue regras de conduta que mereçam a confiança dos seus clientes potenciais. Os sinais de credibilidade, respeitabilidade, seriedade são necessários a agentes que visam trocar os seus bens ou serviços e não dispõem de meios para coagir outros a comprá-los. Por outras palavras, a interacção em ambiente concorrencial tende a gerar nos actores a adesão a normas gerais de boa conduta, sem que estas tenham de ser inventadas ou emitidas por algum centro singular. Aqueles actores terão ainda interesse próprio em apoiar a actuação de um árbitro imparcial que possa punir as infracções a essas regras gerais de boa conduta, que são do interesse geral.
Comandos específicos. As ordens particulares de comando são de tipo diferente. Visam atingir objectivos particulares, que são julgados bons ou desejáveis por alguma entidade, singular ou colectiva. Esses objectivos requerem acções específicas, que por sua vez geram funções específicas e lugares determinados. As ordens particulares serão por isso diferentes consoante as acções, as funções e os lugares específicos que as pessoas ocupam. São ordens particulares características de organizações, nas quais existe uma unidade de propósito, e nas quais as pessoas desempenham funções específicas diferentes com vista a alcançar o propósito definido.
As ordens de comando são inteiramente necessárias para o funcionamento de organizações ou instituições que visam propósitos particulares. Numa sociedade livre, essas organizações e instituições fazem parte do sector voluntário, no qual as pessoas se associam ou desassociam consoante contratos voluntários.
Mas as ordens de comando não são adequadas à sociedade como um todo, basicamente porque numa sociedade complexa existe uma variedade de propósitos: pessoas, famílias, instituições, empresas, etc., adoptam propósitos variados que não podem ser facilmente hierarquizados numa única escala susceptível de dotar a sociedade de uma unidade de propósitos.
Captura do Estado. Quando não se distingue entre regras gerais e comandos específicos, o resultado é a ilusão de que, para haver ordem, tem de haver comandos específicos. Mas como os comandos específicos estão associados a propósitos particulares, a tentativa de organizar uma ordem social com base em comandos específicos inevitavelmente gera um conflito com vista a unificar os propósitos.
Dado que os propósitos não são uniformizáveis, isso leva à tentativa de impor os propósitos de uns grupos sobre outros. Daqui nasce a tentativa de capturar o poder de Estado com vista a promover a partir dele os propósitos específicos de um grupo, em detrimento de outros.
Cultura política. Isto tem profundas consequências na cultura política. Julga-se que o Estado serve naturalmente para promover propósitos específicos - em vez de ser sobretudo árbitro de regras gerais. A captura do Estado - em vez da expansão da liberdade de acção e consequente limitação do seu poder - torna- -se o objectivo de cada grupo. E a alternância entre grupos distintos que igualmente visam capturar o Estado resulta na contínua expansão deste.
Isto conduz a uma cultura política que ignora o conceito de regras gerais, apenas conhecendo o conceito de ganho particular. No final desapareceu o conceito de disciplina enquanto obediência a regras gerais.
Mercado ou renda? É difícil exagerar a importância e o alcance do contraste entre uma cultura política de regras gerais e uma cultura política de comandos específicos.
Numa cultura política de regras gerais, as pessoas procuram melhorar a sua condição através de iniciativas que possam ser úteis a terceiros. Sabem que não têm outra maneira de perseguir os seus próprios propósitos senão conquistar a preferência de terceiros. É o que se chama trabalhar para o mercado.
Numa cultura política de comandos específicos, as pessoas procuram melhorar a sua condição através da conquista ou captura de lugares com poder de decisão sobre outros, em regra, lugares com poder de alocação de dinheiro dos contribuintes. Esses lugares servem então para promover os seus propósitos particulares - aos quais em regra se chama "propósitos nacionais", "interesses estratégicos", "interesse público". É o que se chama trabalhar para criar ou proteger rendas de situação.
Produtividade. Trabalhando para o mercado, as culturas políticas de regras gerais geram uma poderosa pressão para o aumento da produtividade e da inovação. Sem outros meios de promover os seus bens ou serviços para além da persuasão, as pessoas tentam melhorar o que têm para oferecer - e tentam fazê-lo a custos mais baixos. Trabalham com um orçamento limitado que não pode ser artificialmente expandido - sob pena de os conduzir à falência. Também não podem reclamar mais orçamento, porque numa cultura de regras gerais ninguém é compelido a dar-lhes mais orçamento.
Numa cultura de comandos específicos, a disciplina impessoal do mercado é substituída pela indisciplina das decisões políticas ou administrativas. Os grupos de pressão canalizam os seus esforços - não para inovar e baixar os custos - mas para persuadir os decisores da "importância nacional" dos seus propósitos particulares. Não existe uma disciplina impessoal que limite os orçamentos. Tudo o que é "importante" tem de ser financiado. Daqui decorre o buraco das contas públicas e a quebra de produtividade dos sectores protegidos pelas decisões políticas ou administrativas.
Duas liberdades. Uma distinção ainda mais importante diz respeito aos dois conceitos de liberdade que emergem naquelas duas culturas políticas.
Numa cultura de comandos específicos, a liberdade é entendida como possibilidade de escapar aos comandos específicos. Isto só pode ser atingido de duas maneiras: ou sendo o próprio a ditar os comandos, ou, não sendo, tentando escapar aos comandos dos outros, sem que ninguém dê por isso. É uma cultura em que não existe confiança. Nunca se sabe ao certo o que os outros vão fazer: ou vão tentar mandar em nós, ou vão tentar não cumprir qualquer regra.
Numa cultura de regras gerais, a liberdade é naturalmente associada a regras gerais de boa conduta. As pessoas sabem que as regras gerais as protegem de ter de obedecer a comandos específicos. Se não houvesse regras de trânsito, ficaríamos à mercê do capricho dos polícias, isto é, dos seus comandos específicos. Havendo regras gerais de trânsito, o papel dos polícias é fazê-las cumprir - o que é obviamente do interesse de todos, porque lhes permite conduzir para onde quiserem, sem interferência de comandos específicos.
Segredo da liberdade. Isto explica porque nos países que são livres há mais tempo - como as culturas marítimas de língua inglesa - existem simultaneamente hábitos ancestrais de obediência a regras gerais, por um lado, e, por outro, uma surpreendente liberdade de opinião, de iniciativa e de modos de vida.
Este é o segredo da liberdade duradoura: apoia-se na disciplina de regras gerais de boa conduta, que permitem a cada um perseguir os seus próprios propósitos. Sem essa disciplina, a liberdade degenera em licença de grupos particulares que tentam impor aos outros os seus comandos específicos, como única forma que conhecem de perseguir os seus próprios propósitos.
Doutorado em Ciência Política em Oxford, João Carlos Espada é director do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e da revista “Nova Cidadania”. É também presidente da Churchill Society de Portugal.
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