sábado, 9 de janeiro de 2010
TENHO MEDO DA JUSTIÇA DO MEU PAIS
A 17 deste mês, o Procurador da República – uma figura a quem os portugueses deveriam prestar mais atenção – declarou, durante o I Congresso de Investigação Criminal, que existe “uma deriva” no sistema de relacionamento entre o Ministério Público e a Polícia Judiciária, tendo advertido para a existência de “um risco de policialização do inquérito”, após o que apontou a culpa aos investigadores policiais:”O MP[de que, note-se, ele é a cúpula] cada vez menos dirige os inquéritos e é encarado como excrescência que só vem importunar”. Acrescentou que a PJ considerava os magistrados “uns empatas”, para, em seguida, admitir falhas no próprio MP – “Há uma sobrecarga de processos que não permite a liderança de todos os processos” – e alertar para a falta de preparação específica destes magistrados.
Furioso com esta intervenção, o director nacional adjunto da Policia Judiciária afirmou que a actuação da PJ era, por vezes, neutralizada “por actuações e práticas administrativas que o Estado de Direito não pode admitir”, facto cuja responsabilidade atribuía ao Ministério Público. Que devo concluir? Que o Dr. Souto Moura não controla quem deve?
Que o Dr. José Brás é um alarmista? Que não vivo num Estado de Direito?
Isto deixou-me tanto mais baralhada quanto, alguns dias antes, lera, no Público uma entrevista ao advogado Rodrigo Santiago, o qual, entre as acusações dirigidas ao sistema judicial português, destacava a forma de relacionamento entre o MP e a PJ. Segundo ele, a primeira instituição tendia a desculpar os erros da segunda, a qual teria adquirido hábitos perniciosos, tais como o de recorrer sistematicamente a escutas telefónicas, um método passível de ser utilizado nos gabinetes, que dispensaria os agentes de andarem, por ruas e vielas, à procura de provas. Por envolver gente importante e, por desta forma, ter sido alvo de atenção, o processo Casa Pia teve o mérito de alertar os portugueses para o facto de nem tudo correr bem dentro do mundo da justiça.
O tempo só veio confirmar antigas apreensões. Em 1992, ainda o povo dormia o sono dos justos, escrevi uma reportagem sobre a justiça em Portugal. A minha filha, que acabara de se licenciar em Direito, alertara-me para algumas deficiências, pelo que eu decidi ir até ao Tribunal da Boa Hora, a fim de, qual antropóloga, observar o que por lá se passava. A distribuição espacial pareceu-me insólita, uma vez que se não coadunava com o que vira nos filmes americanos e ingleses. Um amigo explicou-me que, segundo a tradição portuguesa, havia três níveis na sala de audiências: num estrado superior, sentava-se o juiz, o detentor da Verdade, num plano intermédio, o procurador do Ministério Público, que representava o Estado, e, num plano inferior, o advogado da defesa.
A encenação continuou a parecer-me anómala, pelo que não esqueci o assunto. Até descobrir que existem dois sistemas judiciais, o latino e o anglo-saxónico. O primeiro é de tipo inquisitorial, o segundo de natureza adversarial. No primeiro, o magistrado do Ministério Público pode mandar prender, determinar se o suspeito vai a julgamento, sendo ele quem, por fim, formula a acusação. Este método chegou-nos por vias pouco recomendáveis: a Igreja Católica, que o usou com conhecido êxito, e o Código Napoleónico, igualmente nefasto.
Por seu lado, a Grã-Bretanha e, mais tarde, as suas ex-colónias optaram por uma via diferente. A Magna Carta, um documento impressionante, que eu vi, com os meus próprios olhos, numa das vitrinas da Bodleian Library de Oxford, contem a seguinte clãusula:”Nenhum homem livre deverá ser detido ou encarcerado [...] excepto por intermédio de um julgamento legal feito pelos seus pares ou por intermédio da lei da nossa terra. A ninguém venderemos, a ninguém vedaremos [...] o direito e a justiça”. Este texto, imposto ao rei João de Inglaterra pelos barões rebeldes, em Junho de 1215, pretendia interditar os actos arbitrários do monarca. Era a primeira tentativa, na História, para distinguir entre poder legítimo e tirania.
Não surpreende que o Papa Inocente III a tivesse descrito como “ímpia”, “abominável” e “ilícita”.
Nos países de que Portugal faz parte o conceito de habeas corpus ( a obrigação de justificar publicamente a acusação) não está enraizado. Por muitos ajustes que se tenham feito nos sistemas da Europa continental, a Justiça permanece enviesada a favor da acusação. Há quem pense que, ao criar a figura do delegado do Ministério Público, o sistema inquisitorial iria proteger os arguidos da brutalidade da policia. Os magistrados do MP podem não ter por hábito espancar réus, mas, em última análise, prefiro uma sova à concentração de poderes nas suas mãos. Nada de mais grave se pode dizer de um sistema de justiça.
Maria Filomena Mónica, 26 de Março de 2006, in: Público
blá blá blá, esse artigo diz umas verdades, mas misturadas com várias inverdades...
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