quarta-feira, 15 de julho de 2009

Eu sei, tu sabes. E eles? Sabem?

Ao longo do texto: “sei ser cidadã, sei ser cidadã”, pareceu-nos ver subsumido um conceito de cidadania assente sobretudo nos propagados deveres de cidadania.

Não seria de estranhar que assim fosse, porquanto é este o entendimento que vemos correntemente. Melhor, é esta vertente do conceito aquela mais frequentemente utilizada na invocação da cidadania, habitualmente visando fins práticos de cooperação e o concurso dos cidadãos na prossecução de interesses gerais, mas também noutras comunicações sobre o tema, em geral, incluídas algumas intervenções pretensamente teorizantes de ilustres figuras públicas.

Ora, se os direitos humanos tem sido ao longo dos mais de dois séculos da sua conceptualização, objecto de aturados estudos, aprofundamentos e até ampliações, de resto todas justificadas, o mesmo não se tem passado quanto aos direitos do cidadão cuja declaração universal (Déclaration des droits de l'homme et du citoyen (DDHC)) é não só contemporânea como simultânea e sobre os quais, comparativamente, muito pouco se tem aprofundado ou conceptualizado.

Assim, sobretudo pelo enfoque, sistemático, nos deveres da cidadania, entendemos que muito do que ficou dito naquele artigo pode ficar prejudicado, quer por excesso quer por defeito no que ao enquadramento que reputamos de adequado, diz respeito.

Na verdade, centrar-se a cidadania exclusivamente nos deveres inerentes, equivale a reconduzir o cidadão à condição de súbdito, é transportar, pouco menos que intactos, os estigmas do Estado absoluto para o Estado-de-direito-democrático-dos-cidadãos, é conservar o Estado, em vez do Cidadão, no centro da comunidade e dos seus sistemas.

Desta perspectiva, a percepção do cidadão é integrada da, habitual segundo Edgar Morin,
componente alucinatória que ao caso claramente se identifica: o paternalismo.

Recorde-se que no léxico constitucional, o estado paternalista é aquele que limita as liberdades individuais dos seus cidadãos com base em valores axiológicos que fundamentam as imposições estatais. A invasão da autonomia individual por acção do Estado, assenta no pressuposto da incapacidade ou falta de idoneidade dos cidadãos para tomar determinadas decisões que o Estado considera correctas.
Não podemos assim, deixar de estar, conceptualmente, nos seus antípodas.

E é do prisma dos antípodas, que não nos parece serem os deveres de cidadania o ponto de partida para a abordagem da questão.
De resto, não nos encontramos sós.

Jean Rivero, um cidadão francês, jurista de renome mundial, coloca, quanto a nós, o problema de forma esclarecedora:
“Les droits du citoyen sont des pouvoirs: ils assurent la participation de tous à la conduite de la Cité. Par lá, ils excluent toute possibilité d’oppression de la part de celle-ci: tels sont le droit de concourir à la formation de la volonté générale, le droit de consentir à l’ impôt, etc.”.



O que bem se compreende, porquanto, “a pessoa está antes e acima do Estado – daí a ideia do contrato social ser posterior à pessoa e anterior ao Estado – no Estado de direito democrático dos cidadãos a participação das pessoas não se deve limitar ao contrato inicial, constitutivo do Estado e das suas linhas fundamentais, mas deve ser uma renegociação constante do contrato, não em termos de aplicação de normas rígidas e perante as quais as situações concretas são subsumíveis automaticamente, mas sim como uma recriação constante do Estado e do Direito.”, como muito bem entende e ensina o Prof. Diogo Leite de Campos.

Daí que, o ponto de partida nesta abordagem só possa ser o dos poderes de cidadania e não o dos deveres, pela mesma razão pela qual a construção de uma casa não podendo prescindir do telhado, não pode iniciar-se por aí.

Porque razão então a abordagem habitual da cidadania se cinge aos deveres decorrentes da mesma e não aos poderes de que a mesma se encontra investida?

O busílis da questão assenta nas contingências da representação dos cidadãos, e dos grãos de areia introduzidos nos mecanismos da interactividade entre os mandantes - legítimos titulares do poder politico - e seus mandatários – os eleitos -.

Cedo, cedo, os mandatários eleitos, desde sempre acolitados pela restante classe politica, submetem-se à dinâmica ritual de uma certa nomenklatura que se abriga no Estado-guarda-chuva e invocando a(s) razão(ões) de Estado, o vão servindo e muitos se vão servindo, renegando a materialidade do mandato, a vontade dos mandantes e a elevação da representação, cedendo por temor reverencial aos ditames da nomenklatura e do Estado-todo-poderoso-que-nos-sustenta, assim adiando a edificação plena e amadurecimento do Estado-de-direito-democrático-dos-cidadãos.
A criatura sobrepõe-se ao criador. O Estado deixa de estar essencialmente a satisfazer necessidades da Comunidade, encontrando-se, pelo contrário, a Comunidade a satisfazer necessidades do Estado.
O Estado embrulha o cidadão no boletim de voto e encaixota a comunidade no atado da democracia representativa, depositando-os, devidamente acondicionados, na Comissão Nacional de Eleições.

E, nem se diga, como é comum à boca pequena, que os cidadãos não participam, esgotam-se no futebol e no vinho verde, justificando o injustificável paternalismo tendencial de que atrás falámos, porquanto, mesmo que assim fosse, no que não se concede, e sem prejuízo de tal balanço não poder jamais deixar de ser, necessariamente, analítico, o que sempre impediria uma conclusão “tout court” daquela natureza.

De facto, o mero recurso ao legado politico civilizacional dos princípios da constituição material do Estado de Direito conformariam uma actividade politica mais elevada e pautada no essencial das virtualidades democráticas e por conseguinte bem mais estimulante para a participação, uma actividade legislativa muito mais pacifica, justa e civilizada, uma actividade governativa mais serena, reflectida, prospectiva e patriótica, uma actividade administrativa aberta e mais zelosa dos direitos, liberdades e garantias e da equidade.

De que participação objectiva dos cidadãos carece o poder legislativo que cria uma lei fiscal ou penal de aplicação retroactiva?
De que participação objectiva dos cidadãos carece um poder judicial que critica escancaradamente uma lei produzida legitimamente pela assembleia da República que lhe cumpre aplicar?
De que participação objectiva dos cidadãos carece um poder executivo que cria uma lei inconstitucional?

Na senda da edificação de um Estado-dos-cidadãos a participação dos cidadãos é essencial, mas a sua reduzida participação não justifica grande parte das omissões ou acções da classe politica, na parte que lhes compete, exactamente aquela que deriva da aplicação dos princípios civilizacionais e consensuais ínsitos na constituição material do Estado de Direito e em inúmeras declarações universais, ao dia-a-dia da sua actividade politica, legislativa, executiva ou administrativa.

O supremo poder dos cidadãos tem-se esgotado nos seus representantes e degenerado na execução dos respectivos mandatos. Não é de esperar, lucidamente, que os seus deveres sejam assumidos com uma responsabilidade maior que aquela que os seus representantes evidenciam no cumprimento das suas vontades.

Temos todos de saber ser cidadãos, é certo, mas não menos certo é que os mandatários têm de saber ser representantes e leais, dos e aos seus mandantes, tarefa de grande responsabilidade que não pode continuar a ser incumbida com base numa mera proposta genérica ao eleitorado.

O voto, face ao resultado, tem sido exercido como um mandato em branco e o contrato social, tal como o conhecemos, não é instrumento suficiente para esgotar a contratualização entre a comunidade e o Estado, carece de ser complementado por um contrato de cidadania.

A propósito de mandatos em branco será útil reter os ensinamentos de um grande e saudoso jurista português, o Prof Ferrer Correia, a propósito das letras em branco:
“Quem emite a letra em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em certos e determinados termos. Ninguém subscreve um documento em branco para que a pessoa a quem o transmite faça dele o uso que lhe aprouver.”

6 comentários:

  1. Subscrevo inteiramente o k está escrito. O Estado é padrasto para os seus cidadãos e tudo o que faz por eles e com o dinheiro deles, k é o nosso.

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  2. Só pela citação de Jean Rivero, Diogo Leite de Campos e Ferrer Correia este post é cinco estrelas!!!

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  3. quem é essa gente? Trabalham em que secção?

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  4. Ó mulherzinha, Adelinazinha, estás tão desmemorizada que já nem te lembras das pessoas amigas. Sofres de amnésia como o outro que assinou um negócio de milhões mas não deu por isso.
    Olha essa gente a que te referes está no Quadro de Excedentes do MA.

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  5. Oh adelina não queiras, nem saber!
    Levavas o resto da vida à sua procura e nunca os virias a encontrar...e a conhecer o que dizem, muito menos.

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  6. Quatro pessoas detidas por assaltar carros em estacionamento de parque aquático em Alcantarilha



    A GNR de Armação de Pêra anunciou hoje a detenção de quatro pessoas apanhadas em flagrante a assaltar carros no parque de estacionamento de um parque aquático em Alcantarilha, Algarve.

    Em comunicado enviado hoje, fonte da corporação revela que os detidos - com idades entre os 20 e os 30 anos -, utilizavam facas e tesouras para tentar arrombar as fechaduras dos carros, tendo sido interceptados por uma patrulha à civil.

    Segundo a GNR, um dos detidos apresenta antecedentes criminais pelos crimes de roubo, furto, tráfico e viciação de viaturas, tendo já cumprido pena de prisão.

    Aquela corporação acrescenta que a acção da patrulha à civil foi fundamental para o sucesso da operação, pois permitiu observar o "modus operandi" dos assaltantes.

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