Num Conselho de Ministros, o ministro das Finanças do I Governo Constitucional ouvia o pedido de um colega do Executivo que queria um aval para que fossem disponibilizados 600 mil contos do Estado (era 1% do PIB). “Parece impossível o ministro das Finanças opor-se a isto, tivemos um trabalhão”, argumentava-se, na tentativa de convencer o homem a quem todos ali conheciam o espírito somítico e (já então) tantas vezes apocalítico quanto ao futuro do Estado e da sua saúde financeira. “Foi uma pena não terem tido um pequeno trabalho mais que era arranjar os 600 mil contos”, respondeu o responsável das Finanças do primeiro Governo liderado por Mário Soares, Henrique Medina Carreira. Arrumou ali o assunto.
A história foi contada pelo próprio, em 2011, numa entrevista dada à revista Sábado, quando lhe perguntaram sobre alguma reunião de ministros mais difícil, naquele ano e meio no primeiro Governo constitucional em que foi ministro das Finanças. “Acabou a discussão e não houve dinheiro para ninguém”, contou com aquele orgulho na sua disciplina financeira — avareza, diriam alguns dos seus colegas do Governo — com que contava tantas outras histórias. Como aquela que repetia a cada entrevista, dos sapatos que em 1971 levou numa viagem à União Soviética e que ainda hoje conservava. “Não sinto necessidade de esbanjar dinheiro. Gasto muito pouca coisa de uso corrente, sapatos tenho de 30 anos. Fui à União Soviética em 1971 e tinha um par de sapatos que já eram usados cá e ainda lá estão em casa”.
O que o fazia gastar dinheiro? “Livros”, confessou ao Expresso, em 2009. Nos últimos anos lia sobretudo biografias políticas. Atualmente, Medina Carreira vivia sozinho. “Hoje tenho uma vida pacata, vivo só. Enviuvei, depois vivi em união de facto, depois vivi em união de facto, depois casei, depois divorciei-me”, contou numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro, publicada no Jornal de Negócios em outubro de 2009. Tinha uma filha, Paula. Não tinha netos, com pena de hoje não o fazerem “andar de gatas” ou de tê-los “às cavalitas” ou de o fazerem “rebolar no chão” e “esquecer esta cegada”, confessou muitas vezes, como aqui, aqui ou aqui. Estava internado há cerca de um mês, num hospital em Lisboa onde acabou por morrer aos 85 anos, esta segunda-feira, dia 3 de julho de 2017. Insatisfeito com o país, arrasador para os seus políticos e partidos, preocupado com o seu futuro. Como sempre.
Nos últimos anos teve espaços de comentário político e económico, primeiro na SIC e depois na TVI, sempre muito mordaz, incisivo, direto, incómodo e polémico. Mas não gostava que o classificassem de “pessimista”. Respondia no seu estilo muito próprio: “Chamam-me assim porque, para me responderem, tinham de ir trabalhar, estudar os números, raciocinar. Limitam-se a chamarem-me pessimista e dão repercussão a essa ideia. É a coisa mais estúpida deste mundo e é a fórmula cómoda de tentar anular o meu pensamento”.
Enquanto não vir gente capaz de tomar conta deste país, sou incómodo. Quando olho para os partidos, para estes dirigentes, não posso ser outra coisa. Os factos mostram que somos a pior economia da Europa e dos países mais endividados. Até hoje, não consegui arranjar uma pessoa para discutir comigo num programa na televisão…”, disse ao Expresso em 2009
Prometia, não raras vezes, que se lhe dessem uma hora e meia de televisão virava “muita gente do avesso”. A sua experiência política resumiu-se a dois governos. Um provisório, em 1975, como Subsecretário de Estado do Orçamento e o segundo foi o que tinha Mário Soares na liderança. Salgado Zenha e Mário Soares convidaram-no para almoçar numa tasca em Belém, estava ele a preparar os caixotes para sair do Ministério quando percebeu que a sua passagem pelas Finanças afinal não ficaria por aquele Governo provisório.
Na família isso foi mal visto. Aliás, Medina Carreira contava muitas vezes, entre gargalhadas, como o pai lidava com o assunto, recordando dois episódios concretos. Uma vez, António Barbosa Carreira escreveu a um primo: “Veja lá que o meu filho é tão burro que aceitou ser Ministro das Finanças num país falido”. Outra, visitou-o no Ministério e a rececionista percebeu que era o pai do ministro pelo documento de identificação. Abordou-o: “O senhor é pai do senhor Ministro?”. “Não, não, o senhor Ministro é filho de pai incógnito”, respondeu.
Não queria ser ministro, mas aceitou porque na altura, no pós 25 de Abril, dizia sentir um espírito de missão que fazia impossível recusar um cargo de governação. Mas do que gostou mesmo foi de ser sub-Secretário do Orçamento. “Gostei muito de lá estar. Depois transitei para a função de ministro. E detestei lá estar.” Explicou mais tarde que “não era uma atração – ser Ministro das Finanças. Num país rico e próspero, deve ser agradável”. Mas se este não era o momento, menos ainda o era na altura, com o país a braços com um pedido de assistência financeira ao Fundo Monetário Internacional. A primeira necessidade foi em 1977, apanhou Medina Carreira no posto das Finanças, mas negou à Visão ter sido ele que arquitetou o acordo com o FMI: “Quem esteve nisso foi depois o Vítor Constâncio e o Silva Lopes. Eu nem concordava com o acordo com o FMI. Aliás, vi logo que estava mal no Governo, porque não conseguia fazer a minha política, ninguém concordava comigo”.
A conclusão de homem desajustado com o seu tempo e quase um vidente do Apocalipse financeiro era recorrente em Medina Carreira. Isso e a desilusão com os políticos, que mostrou ter sido crescente ao longo dos anos. Chegou a militar no PS, mas poucos anos depois, em 1978, e já depois de ter sido ministro, saiu em rutura pelo chumbo ao Governo de iniciativa presidencial (era Eanes o Presidente) chefiado por Nobre da Costa.
Porque é que me sinto de esquerda? Porque a minha grande preocupação sempre foi a gente que está pior e que não teve sorte na vida. A derivação da engenharia para o que vim a fazer foi motivada por isso”.
Acabou por voltar para sair de novo, em 2001, “por causa daquela trafulhice da reforma do património, no tempo do Guterres. Percebi que aquele partido era dirigido por gente sem palavra e eu não me dou com gente sem palavra”, contou a Anabela Mota Ribeiro. Em causa estava um convite que recebeu, do ministro das Finanças de Sousa Franco, para estabelecer uma comissão para fazer propostas para a reforma do património. Incluía um imposto sobre as ações e Medina teve o compromisso do próprio primeiro-ministro, António Guterres, de que aquilo iria por diante. Não foi e chegou a dizer que, na altura, pediu uma posição pública a Guterres, que nada fez. “Senti que o PS se estava tornar demasiado manhoso para mim.”
Apesar de tudo garantia gostar do pai-fundador do PS, Soares. Reconhecia-lhe o papel decisivo nas fundações da democracia, mas em 2006 foi Cavaco Silva que apoiou como candidato à Presidência da República, precisamente contra Soares. Mais tarde havia de reconhecer que, naquela altura, o país teria precisado de meio Cavaco e meio Soares, na Presidência. Nas Presidenciais mais recentes, já depois de anos de crítica intensa ao sistema dos partidos e aos políticos sem uma atividade profissional, preferiu apoiar o empresário socialista Henrique Neto.
Sinto-me corrosivo nas apreciações, e na política estou cada vez mais corrosivo, porque acho que a desgraça é cada vez maior”.
Sempre viu no seu espírito de “espalha-brasas” uma veia do seu pai, o homem que o ensinou a ler aos 4 anos e que aos 10, quando vindos da Guiné Bissau (onde nasceu), lhe deu três hipóteses para prosseguir os estudos, já em Lisboa: Infante Sagres, o Colégio Militar ou os Pupilos do Exército. “Concluí que o colégio para onde iam os filhos de gente modesta era os Pupilos. O Colégio era para filhos de oficiais, os Pupilos para filhos de sargentos, praças, cabos. Eu, em qualquer circunstância, estou do lado das pessoas que, na escala social, são mais exploradas, mais enganadas. Estou sempre, espontaneamente, do lado do fraco”.
Por lá estudou 9 anos e ganhou uma “educação rigorosa”. Na entrevista à Sábado (já citada e com link) explicou que aos 11 já “manejava armas” e que quando chegou à escola, em regime de internato, “nunca tinha mexido em água fria para além das mãos. No primeiro dia fui obrigado a tomar um duche de água fria às 6h da manhã. Hoje, tomo quente, às vezes fria. Morna não, não gosto de meias-tintas, nem no banho”. Foi lá que tirou um bacharelato em engenharia mecânica e, quando saiu da escola, procurou emprego na área, encontrando-o na Companhia União Fabril (CUF) do Barreiro, na fundição de aço. Por lá ficou três anos, enquanto acabava o curso do liceu. Mais tarde licenciou-se em Direito, na década de 60, frequentando mais tarde o curso que sempre ambicionara: Economia, na Universidade Técnica de Lisboa. Não chegou a terminar: “Não tinha tempo”. Especializou-se na fiscalidade.
No comentário que fazia, nos últimos anos, Medina Carreira era especialmente crítico da despesa do Estado. “A social-democracia tenta igualar o mais possível a distribuição de riqueza e desenvolver um conjunto de mecanismos que protege as pessoas em dificuldades. Foi um ótimo sistema enquanto houve dinheiro.” Agora, clamava muitas vezes, o dinheiro era emprestado e os Estados, dizia ainda, “receberam o passivo das políticas sociais, mas não os aspetos positivos: riqueza, pleno emprego, etc..
Se desapareceram os alicerces do Estado social, este passou a ser ficção. Estamos a fingir. Ou os políticos social-democratas repõem a economia, ou nada feito”.
“Ou percebemos a tempo a nossa doença, ou um dia teremos um Salazar”, avisou na entrevista à Visão (citada em cima), em setembro de 2009, altura em que lançou mais um livro muito crítico da classe política “Portugal, Que Futuro? O tempo das mudanças inadiáveis”. Noutro, o “Fim da Ilusão”, lançado em 2011 em plena chegada da troika, onde se dedicou a explicar as causas do “colapso financeiro”.
De si dizia ter “uma qualidade”. “Sou uma boa pessoa. Sou uma pessoa que não trafulha, que não intriga, que não se vinga, que não persegue, que não odeia.” Em 2009 afirmava, numa entrevista então publicada no Negócios, que não tinha “vontade de morrer”, não por medo da morte, mas pela “maneira de morrer”. Até para isso tinha uma solução radical: “Defendo que desde a nascença devíamos ser portadores de uma ampola com cianeto de potássio. Os nazis andavam com uma. Quando dava para o torto, dentavam e caíam para o lado. Acho que devíamos ser senhores do nosso fim”. Mas também garantiu que até ali, se tivesse a tal ampola, também não a teria utilizado.
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