Parece
que já ninguém gosta da Europa. Uns, porque têm saudades do mítico
Estado-nação, das suas queridas fronteiras e policias, das moedas nacionais e
dos câmbios em que se perdia sempre duas vezes, da inflação e das
desvalorizações; outros, porque não gostam da ideia de existirem jurisdições
acima das nacionais onde os cidadãos se podem queixar dos abusos do seu próprio
Estado ou de haver uma lei comum que estabelece as regras em matéria de
direitos laborais, empresariais ou ambientais; outros porque não querem mais
imigrantes – seja de fora da Europa seja da própria Europa, como é o caso dos
ingleses; e outros ainda porque não querem uma política de defesa comum, uma
política externa comum e, menos ainda, uma política fiscal comum, como é o caso
dos irlandeses e dos holandeses. E há os que estão fartos de que a Europa se
meta nos seus assuntos internos, impedindo-os de estabelecerem regras mais
próprias de ditaduras do que de democracias, como sucede com os húngaros, os
polacos ou os aspirantes turcos. Finalmente, temos os países do sul, que se
queixam da falta de solidariedade dos do norte, do sufoco das dividas públicas
e bancárias a que estão sujeitos (e que em parte foram contraídas para safar os
biliões emprestados sem critério pelos governos e bancos dos países ricos do
norte), e temos os países do norte que acusam os do sul de gastarem o dinheiro
em copos e mulheres (não, não são só o capataz holandês e o policia alemão que
pensam assim).
Os
copos e as mulheres ainda é o lado para que dormimos melhor – sobretudo quando
a acusação vem de um holandês. O que nos custa é que quem nos quer dar lições
de bom comportamento financeiro seja ministro das Finanças de um pais que serve
de sede fiscal às nossas vinte maiores empresas para lá pagarem parte dos
impostos por riqueza criada aqui e que aqui deveria ser cobrada. Porque o
Eurogrupo, a que Dijsselbloem preside, exige que todos cumpram regras comuns em
matéria de controlo do défice público, mas não quer nem pratica nem pratica
regras comuns em matéria de fiscalidade – o que permite que a Irlanda e a Holanda
funcionem como oásis fiscais e o Luxembourgo, que durante anos foi governado
pelo actual presidente da comissão, Juncker, tenha então funcionado como uma
lavandaria de topo para as grandes empresas multinacionais e nacionais.
Mas
isso, o direito de pernada sobre coisa alheia, vem na tradição da Holanda:
sempre foram um povo com vocação para a pirataria. Mesmo na chamada “Golden
Age” da Holanda (um período que coincide com os sessenta anos de reinado dos
Filipes em Portugal), a prosperidade das Sete Províncias Unidas fez-se com base
na transformação das matérias-primas que outros, como os portugueses, iam
buscar longe e correndo todos os riscos, e a imensa frota que então construíram
destinava-se a pilhar as colónias alheias, em lugar de fundar as próprias. Foi
assim que os holandeses se lançaram à conquista do Pernambuco português,
convencidos de que guerras e a colonização que ocupavam o imenso império espanhol
levariam Madrid a alhear-se do destino de parte da terra brasileira do seu
vassalo português. Há, no Brasil, uma persistente lenda, segundo a qual, os
trinta anos de ocupação holandesa do Pernambuco foram toda uma época de
esplendor e progresso, bem ilustrada pela fantástica “Embaixada cultural” que
Maurício de Nassau para lá terá levado. A versão portuguesa, em que confio
mais, é outra: assim que desembarcaram no Pernambuco, os holandeses começaram
por arrasar a capital, Olinda (que depois os portugueses reconstruiriam),
justificando-o com a plausível razão de que não estavam habituados a defender
elevações, mas apenas terras planas. Em seu lugar, Maurício de Nassau (que foi
um bom administrador) lançou-se na construção de uma cidade com o seu nome e
que hoje se chama Recife – mas onde, curiosamente, não há vestígios da passagem
dos holandeses no que quer que seja. E a tão falada Embaixada cultural do
Príncipe de Nassau resumia-se ao seu médico pessoal, um botânico, um físico, um
ilustrador e um pintor.
Este,
Peter Post, pintou exactamente 24 quadros no Brasil, os quais Maurício de
Nassau levou de volta (isto quando durante a “Golden Age” holandesa se pintaram
cerca de dez milhões de telas, fazendo deste o mais profícuo e um dos mais
notáveis períodos de toda a história da pintura). De facto, e infelizmente, os
portugueses nunca tiveram a visão e a vocação de registar em pintura os lugares
que descobriam, que desbravavam ou que colonizavam. No Pernambuco, estavam
demasiado ocupados em repelir os ataques dos indios, em fazer agricultura e em
explorar imensas plantações de cana-de-acuçar
- justamente o alvo dos holandeses.
Estes,
por seu lado, não padeciam dos grandes desígnios dos portugueses, tais como
converter indios à sua fé, enviar bandeirantes pelo interior, explorar novos
territórios. Nem sequer faziam agricultura e, menos ainda, queriam explorar a
cana-de-acuçar. Eles queriam apenas comprar o acuçar dos plantadores
portugueses, tentar melhorar o seu processamento e trazê-lo para a Holanda para
o vender umas cem vezes mais caro, através da Europa: o monopólio do comércio e
do transporte de um produto disputadíssimo na Europa, sem o esforço, os riscos
e as doenças que a sua exploração exigia. Não por acaso, certamente – e
contrariando a lenda do entusiasmo com que o Brasil recebeu os holandeses e a
tristeza com que os viu partir – a aventura brasileira da Holanda começou a ter
fim nas duas decisivas batalhas de Guararapes, em 1648/49, quando 4500
holandeses foram desbaratados por um exército de 2200 homens daquilo que então
se podia chamar a “nação brasileira”: um batalhão de portugueses comandados por
João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, um batalhão de negros
comandado pelo ex-escravo Henrique Dias e um batalhão índio comandado pelo índio
Felipe Camarão.
Tenho
o maior prazer em recomendar a leitura da história ao sr. Dijsselbloem.
Mas
talvez se devesse ir ainda mais além na instrução histórica básica do
presidente do Eurogrupo. Recordar-lhe que foram os países do sul que ele tanto
despreza, que edificaram as fundações da Europa que hoje conhecemos, impondo os
seus valores, hoje universais, contra os “bárbaros” do norte. A Grécia deu à
Europa a democracia e a arte; a Itália deu-lhe o Império Romano, uma das mais
notáveis criações politicas da Humanidade, fundado na lei e na igualdade das
partes, e deu-lhes o Renascimento, contra o obscurantismo então reinante;
Portugal e Espanha abriram o mundo à Europa, e a França deu-lhe os valores da
Revolução Francesa. O que deu o Norte de comparável?
Sim,
esta Europa que Dijsselbloem simboliza e representa já não serve ninguém e não
interessa a ninguém. Os dez anos de presidência do português Durão Barroso, com
a sua política de sempre, em todos os cargos que ocupou – ou seja, salvar a
pele, nada fazendo – foram fatais para a Europa. Mantendo-se sempre à tona,
flutuando sem sobressaltos perante cada problema, a Europa foi apanhada
impreparada perante as crises qua e viriam a assolar e hoje navega à deriva,
sem rumo nem praia à vista. Esta Europa, que daqui a dias celebra 60 anos de
vida, foi uma extraordinária criação de uma notável geração de políticos europeus,
que agora se arrasta para um fim sem sentido nem glória, conduzida por uma notável
geração de medíocres. Talvez o destino dos povos não seja o de saberem ser
felizes, mas o de estarem eternamente insatisfeitos. De vez em quando, isso é
bom; outras vezes é trágico.
Por Miguel
Sousa Tavares, in Expresso de 25.03.2017
Foi o fim do mundo em cuecas esta semana por causa de uma frase, completamente descontextualizada (claramente propositado) e depois manipulada, alegando ser do socialista holandês, Dijsselbloem.
ResponderEliminarOra, nossa querida CS escreveu que o Presidente do Eurogrupo terá dito que ” os países do sul gastavam o dinheiro todo em álcool e mulheres.” Porém a frase foi precisamente esta: “Na crise do euro os países do Norte mostraram solidariedade para com os países do Sul.
Como social-democrata, a solidariedade é para mim extremamente importante. Mas quem a pede, tem também deveres. Não posso gastar o meu dinheiro todo em álcool e mulheres e depois disso ir pedir a vossa ajuda. Este princípio vale para o nível pessoal, local, nacional e também europeu”. Dijsselbloem AFINAL falou na 1ª pessoa, dando-se como exemplo. Porquê então toda esta indignação?
Este episódio lembra-me 1 anedota que era assim: Virou-se 1 indivíduo para outro: “Olá bom dia!” O outro, pensativo ao fim de uns segundos, responde: “Bom dia?!! Ora bom dia significa sol. O sol faz crescer a erva. A erva é comida pelas vacas… Ó carago! Você chamou-me de boi!!!!” É estúpido, não é? Mas foi assim o raciocínio destes últimos dias…
Ora, não faltou quem visse nestas declarações claramente fabricadas, insultos, falta de delicadeza, falta de diplomacia, falta de ética e por aí fora. Desculpem mas realmente é caso para ficar-se parvo a ouvir tanta gente com formação académica acima da média a deturpar uma metáfora transformando-a numa tempestade dentro de 1 tampinha de água. Francamente!. Eu sei bem que levar com um banho de realidade sobretudo vinda de um socialista, dói e que para o governo das esquerdas foi traição. Mas há limites. O bom senso mandaria que se olhasse como deve ser para 1 comentário que nada mais é do que um aviso à governação daqueles que andaram a receber largos milhões de euros da UE e que em vez de os bem gerir , estoirou literalmente em coisas fúteis e benefícios próprios colocando seus países em situação de pré-bancarrota. E se fossemos gente séria, em vez de arrancar cabelos faríamos mea-culpa e aceitaríamos os factos com humildade. Fica bem e os credores louvariam tal acto.
Mas não. Sai 1 ameaça aqui, mais a exigência de 1 demissão acolá e um voto de repúdio a acompanhar, como se fossem virgens ofendidas imaculadas. A sério? Um governo composto por gente que compara as negociações a uma feira de gado, que manda apanhar pokemons, que se caga para o segredo de justiça, que atribui disfuncionalidade temporária cognitiva à oposição, que é mal educado no parlamento, tem alguma legitimidade para se pronunciar e pedir demissão seja contra quem for?
Acontece que aquela metáfora, goste-se ou não, assenta que nem uma luva, em terras portuguesas. Não pelo seu povo, o único que trabalha arduamente qual “campo de trabalho forçado”, para pagar as contas quase perpétuas dos desvarios governamentais, mas sim, nos políticos que fizeram a farra toda sem pedir licença a ninguém. E foram muitos com muitos mil milhões.. Foi a festa do parque escolar, foi a festa dos aeroportos e dos TGV, da festa das autoestradas vazias, festa das rotundas, festa das formações fictícias, festa dos dinheiros a fundo perdido aplicados em porsches e casas de férias e offshores, a festa das obras megalómanas, a festa dos empréstimos milionários sem garantias, a festa dos aumentos salariais, pensões e regalias públicas.
Na minha opinião Dijsselbloem pecou apenas por ser pouco preciso e não ter dito gastar dinheiro em “fotocópias, garrafas de vinho em envelopes com fita cola” ou “Metro do Mondego que paga striptease, vinho, perfumes e festas“. Aí sim, já ninguém se revoltaria e não haveriam erros de percepção mútuo.