1 Gonçalo Amaral, o inspector da PJ a quem coube a investigação do ‘Caso Maddie’, finda a investigação sem conclusões algumas resolveu escrever um livro para defender a tese que não havia conseguido provar durante a investigação: os pais teriam assassinado a filha. O livro (que, sintomaticamente, abre com uma mentira circunstancial), sustenta desde o início a tese do brilhante investigador, inspirada no ‘Caso Joana Cipriano’ — com a enorme diferença de que aqui não foi possível torturar a mãe para obter dela uma confissão que, vergonhosamente, o tribunal então aceitou como prova. Pouco lhe importou: o sr. Amaral transformou o seu fiasco profissional, a sua tese jamais demonstrada, em verdade oficial e disso fez uma oportunidade de negócio. Assim acusados de matar a filha, os McCanns interpuseram contra Gonçalo Amaral uma acção de difamação — que ganharam em primeira instância, perderam na Relação e acabam de perder definitivamente no Supremo. É a liberdade de imprensa, dizem os conselheiros: a liberdade de, sem provas algumas e levianamente, acusar alguém de ter morto a própria filha.
2 O dr. António Ventinhas, magistrado do Ministério Público e presidente do respectivo sindicato, comentando as críticas de José Sócrates ao desempenho do MP no processo em que é arguido, resolveu dizer que o “responsável pela existência deste processo é José Sócrates, porque se não tivesse praticado os factos ilícitos, este processo não teria acontecido”. Mas acrescentou ainda: “Os portugueses têm de decidir se preferem perseguir políticos corruptos, acreditar nos polícias ou nos ladrões, em quem investiga ou nos corruptos”. Como não havia forma de ignorar que o dr. Ventinhas, no mínimo, tinha ostensivamente desprezado o princípio da presunção de inocência de que goza qualquer arguido até condenação definitiva, lá se abriram dois processos: um, disciplinar, e outro, a pedido do próprio José Sócrates, criminal. O primeiro, a cargo do Conselho Superior do Ministério Público, terminou com a inevitável absolvição do seu par, com o fundamento de que as suas declarações tinham sido proferidas “num contexto de tensão verbal muito excessiva”. O segundo, terminou com um despacho de não-pronúncia da Relação de Lisboa, com o fundamento de que embora as declarações parecessem integrar o crime de difamação, faltou à queixa de José Sócrates fazer prova de que o dr. Ventinhas tinha consciência da ilicitude delas. Ou seja, e traduzindo: mesmo sendo o difamador um magistrado do MP, a quem cabe a tutela da acção penal, é ao difamado que cabe fazer prova de que aquele magistrado tinha consciência da ilicitude das suas declarações (fantástico), não sendo pois um absoluto ignorante em matéria criminal. Assim, e uma vez que todos somos iguais perante a lei, está aqui criada jurisprudência que vai revolucionar o julgamento deste tipo de crimes: a partir de agora, a qualquer difamador basta-lhe invocar ou “o contexto de tensão verbal muito expressiva” ou a ausência de prova por parte do difamado de que o difamador tinha “consciência da ilicitude” do que disse. Ficámos esclarecidos e vale para todos. Suponho.
3 A propósito da súbita aparição de Hélder Bataglia como anjo salvador da ‘Operação Marquês’, houve quem se perguntasse por que razão a “delação premiada”, ao estilo brasileiro, não tem cabimento no Direito Processual português. A resposta a essa pergunta ingénua passa por dois esclarecimentos prévios. Primeiro, a “delação premiada”, meio de prova essencial no ‘Lava-Jato’ brasileiro, não consiste numa simples denúncia individual: exige idênticas e coincidentes denúncias de outras fontes, não dispensa meios complementares de prova do que foi denunciado e tem de ser validada pelo Supremo Tribunal Federal — que leva em conta o contexto e o conteúdo das denúncias. Segundo, mesmo sem cabimento legal no direito português, aquilo que aconteceu com o sr. Bataglia foi exactamente o mesmo, mas sem as respectivas salvaguardas: ele entrou no DGIC com um mandado de captura internacional e saiu como inocente de todas as suspeitas — sobre as quais não foi sequer ouvido. Ou seja, foi um delator mais do que premiado.
Mas o exemplo do sr. Bataglia é, em si mesmo, a demonstração eloquente da razão pela qual o instrumento da delação premiada dá muito que pensar a quem ainda se atreve a defender um Estado de direito, onde os fins não justificam todos os meios. Vejamos.
A figura do delator ou do arrependido (que pode ter efeitos condenatórios diversos) é sempre, do ponto de vista do envolvido, uma coisa moralmente abjecta. Mas pode ser eficaz do ponto de vista processual, deixando porém um mal-estar incontornável ao nível das questões morais que coloca: também a tortura pode ser processualmente útil e nem por isso é aceitável, digo eu.
Tal como com a tortura, o primeiro problema que a delacção coloca é saber se aquilo que é confessado é verdadeiro ou é apenas o que o delator confessa para se livrar da tortura ou para se livrar da pena: se ele diz a verdade ou se diz aquilo que a acusação quer ouvir. No caso do sr. Bataglia, homem de negócios à escala planetária, o facto de não poder sair de Angola sob pena de ser preso em qualquer outro país, era, de facto, uma espécie de prisão domiciliária territorial. Ele negociou isso com o dr. Rosário Teixeira: entrou como foragido da justiça, suspeito de vários crimes que, confirmados, lhe dariam anos de prisão aqui, e saiu como homem livre. A mim parece-me evidente que o acordo que fez não foi simplesmente para vir prestar declarações, mas para vir dizer aos autos aquilo que o dr. Rosário Teixeira queria que ele dissesse. Esse é o preço que se paga com a delação premiada: nunca se sabe se o delator disse a verdade verdadeira ou a verdade conveniente.
O outro preço é igualmente insustentável, do ponto de vista da justiça: seleccionando os arguidos escolhidos para delatarem e negociando a contrapartida com eles, a acusação faz um julgamento prévio, fora do tribunal e em obediência apenas aos fins que pretende atingir: os denunciantes são premiados, os denunciados são condenados. Isso dá à investigação um poder decisório que só devia caber ao tribunal e que passa pela absolvição negociada de notórios bandidos.
4 Mas temos então que o oportuníssimo sr. Bataglia veio dirigir para outros horizontes a investigação da ‘Operação Marquês’ e, aparentemente, salvá-la à beira do fiasco. Já está em marcha a manobra junto da opinião pública destinada a fazer ver que o prazo terminal de 17 de Março para encerramento da instrução terá de ser prorrogado face aos “novos elementos” — tal qual como no ‘Caso Freeport’, que demorou seis anos de investigação, sem conclusões algumas. Pois bem, que percam a vergonha e prorroguem. Mas uma coisa há que ninguém pode tirar de cima do dr. Rosário Teixeira e do dr. Carlos Alexandre: afinal, depois dos “fortes indícios de corrupção” pelo Grupo Lena, das auto-estradas, da Parque Escolar, dos contratos com a Venezuela, de Vale do Lobo, do Grupo Octapharma, as verdadeiras suspeitas de corrupção de José Sócrates estavam no Grupo GES.
Ou seja, andaram a investigar durante quatro anos e mantiveram-no preso durante dez meses à conta de falsas pistas e falsas suspeitas. E foi o muito recomendável sr. Bataglia quem, à 25ª hora, os fez ver a luz e os terá safado de nada terem para apresentar no dia 17 de Março! É brilhante! E assustador.
Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 04/02/2017
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