quinta-feira, 16 de julho de 2015

2284 segundo Miguel Real, ou como o hoje, tal como o conheçemos, deixou de ter amanhã?

In publico 22.02.2015

Aos 61 anos, o filósofo, ensaísta e romancista Miguel Real lança mais um romance. Agora, em vez de ficcionar sobre a actualidade ou sobre a história, constrói uma utopia ficcional em que projecta o futuro: O Último Europeu, Edições D. Quixote.

Olhando para o que poderá ser o mundo em 2284, Miguel Real questiona e reflecte sobre o presente, as opções, as tendências, as divergências, as diferenças, os conflitos, as contradições. É um retrato duro das sociedades modernas e dos riscos que elas comportam, em especial a Europa, sobre cujo presente este pensador tem um olhar crítico.

Em entrevista ao PÚBLICO, Miguel Real reflecte sobre a situação de Portugal no pós-troika, mas também sobre a crise na União Europeia, a situação na Grécia e o conflito na Ucrânia. Isto sobre o agora, o tempo conjuntural. Mas faz uma análise prospectiva do tempo histórico das vidas presentes, a algumas décadas, assim como do tempo civilizacional, ou seja, o que poderá ser o mundo no início século XXII.

Ao fim de três anos de intervenção da troika o país tem mais condições de futuro?
Não, não tem. E o mais importante é que o país deixou de sonhar. O actual espírito europeu, que transformou a União Europeia numa empresa comercial estável, governada por balancetes, esse espírito contabilístico entrou totalmente na governação em Portugal, não quer dizer que não haja oposição. Nesse sentido, Portugal desenvolveu um imenso sentimento de medo em relação ao futuro, é o que diz o Boaventura de Sousa Santos, o José Gil. Uma insegurança terrível quanto ao futuro. E deixou de sonhar, de criar utopias, o que é absolutamente necessário para nos orientar a longo prazo na política.

Está a referir-se à classe política, criticou-a de forma violenta no passado, como a vê hoje?
A classe política é relativamente medíocre, em geral. Mas os seus principais representantes no Governo não fizeram nada para o merecer, a não ser ganhar eleições porque estavam lá. Não há uma ideia. Cavaco Silva no século XX, nos anos 80, defendeu um pouco o capitalismo popular.
Definiu-o já como o pior Presidente da República.
O pior da democracia. O Américo Thomaz é incomparável, esse era um ditador. Mas sob o comando de Cavaco Silva, que está há trinta anos no poder quase ininterrupto, o país tomou várias decisões que hoje se revelaram nefastas. O país desenvolveu mais o desejo de consumo do que a produção. As estatísticas mostram-no. É mais o consumo do que a produção e a formação. Há mais a formação burocrática, de caneta e lápis, do que uma formação científica de qualificação das pessoas. A prova disso é o aparecimento das universidades privadas, que eram universidades de caneta e papel.

E a classe política?
A classe política é uma classe que não o merece ser, é-o porque teve a ousadia de se apresentar a eleições e, face ao vazio de poder, substituir os anteriores, que era uma classe política extremamente bem formada, os constituintes, os pais da democracia, até meados da década de 80. Houve pessoas que se afastaram voluntariamente da política, como é o caso do professor Jorge de Miranda, para dar um exemplo de uma pessoa do PSD, do arco da governação, que é uma pessoa não só lúcida, como sábia, como honesta. A classe política foi tomada de assalto, sobretudo a governação, por um conjunto de funcionários das jotas que foram servilmente subindo degrau a degrau, limpando tudo em redor como os eucaliptos, até ao momento em que não há alternativa dentro dos partidos. As possíveis grandes alternativas, as alternativas de mérito fogem para a sua profissão, para a ciência, para as artes, para o comércio, para a economia, para as finanças.

Vivemos em democracia?
Há vários tipos de democracia. Do ponto de vista formal não podemos negar que há democracia, nos grandes princípios da Europa a democracia cumpre-se: há alternativas, há alternâncias, há possibilidade de contestação, há liberdade de expressão, de reunião, de manifestação, tudo isso é muito importante. Quem viveu antes do 25 de Abril não pode negar que este é o melhor regime.
Por que é que as pessoas deixam que os que caracteriza como medíocres dominem os partidos?
Creio que a mediocridade se mede pela ausência de princípios éticos, e as pessoas que fazem uma carreira na ciência, na indústria, no comércio, nas letras, na função pública e que são bem formadas têm alguma dificuldade em aceitar, por um lado, o servilismo em relação aos partidos, por outro lado, o maquiavelismo e o oportunismo a que as máquinas partidárias dão ensejo.

Há excepções?
Oferecem-se por vezes, sem dúvida. Lembro a candidatura a Presidente de Fernando Nobre, que imediatamente foi cilindrada por um conjunto de artificialismos políticos. Agostinho da Silva contava uma história da serra da Malcata, onde na década de 1960 havia cinco famílias num povoado. Três dessas famílias emigraram, sem saber a língua, com os costumes rurais que tinham, a mentalidade da Nossa Senhora de Fátima, mas tiveram a ousadia e a coragem de ir a salto para a Alemanha e a França. Quando mais tarde regressaram triunfantes, com uma família, um carro, uma casa, quem dominava a aldeia? Os que não tinham tido a coragem de partir. Dominavam a sacristia, o minimercado, a serração da madeira e também a junta de freguesia. Portugal é um pouco isso. As elites corajosas e ousadas são as que partem. Ficam cá, em parte pois não quero generalizar, os que não têm coragem de partir, ou seja, não têm coragem de inovar. A elite portuguesa reflecte hoje isso.

No actual relativismo ético, idolatra-se o dinheiro e o consumo. Vivemos uma regressão civilizacional e estamos a voltar a um mundo mais desigual?
Socialmente mais desigual, inevitavelmente estamos. A Europa transformou-se numa empresa de negócios, uma grande empresa. As nações, os países são os sócios dessa empresa. A empresa fez-se para trocar, vender, comprar. Troca-se o Fiat italiano pelo Renault francês, este pelo Mercedes alemão. Ao tornar-se uma grande empresa, um grande grupo de negócios a que habitualmente chamamos mercado, a Europa conseguiu, após a Segunda Guerra Mundial, dar um grande impulso à economia, ou seja, à qualidade de vida e ao bem-estar dos povos. Até 1973 e à crise do petróleo, e no caso de Portugal desde a década de 60 até ao fim do século XX. Criou-se um bem-estar na Europa que não existiu nos séculos passados.

E isso não regride?
Qualquer guerra fará voltar imediatamente para trás. Mas até agora não houve uma guerra na Europa. A Europa tornou-se um grande hipermercado onde podemos encontrar nas prateleiras 16 marcas de iogurte e isso foi muito bom para os povos economicamente, mas também ao nível da formação do seu próprio corpo, o europeu vive muito mais tempo comparado com algumas décadas. Assim, não é por ser um grande mercado que é mau.

Então porquê?
O que corre mal é que no mercado domina a classe média, uma classe média que não tem capacidade de sonhar. Preocupa-se com o colégio dos filhos, os carros, com a roupa, com o consumo em geral, com os seguros médicos, com a herança que vai deixar aos filhos. Portanto, preocupa-se com um universo material, falta-lhe essa capacidade de criar utopias possíveis. Nesse sentido, a Europa melhorou quantitativamente, quanto perdeu qualitativamente capacidade de criar novas visões do mundo.

Vivemos hoje num mundo novo e diferente, essa capacidade de sonhar não é conseguida através do progresso da tecnologia?
Acertou em cheio. A única capacidade de sonho que o europeu tem, neste momento, está na tecnologia e na ciência. Se virmos um jornal, o departamento comercial da Europa está todo no jornal, até que chegamos à página da astronomia e da física, da medicina. Ainda esta semana o PÚBLICO falava do hambúrguer feito de células estaminais como uma solução para refugiados. Mas atenção, essa tecnologia e essa ciência só podem dar essa capacidade de sonho a vinte e a trinta anos se se subordinar a princípios éticos e a princípios de democracia política, porque a União Soviética também teve progressos técnicos enquanto ditadura.

Em O Último Europeu, citando um filósofo português, cujo nome não indica, diz que "os portugueses não trabalham, mas estão sempre ocupados". Esta frase é uma síntese?
É de Agostinho da Silva. O sonho dele era que todos os homens não trabalhassem mas estivessem sempre com actividades. É uma síntese que defende que o trabalho mecânico é explorador e não liberta. É o contrário do dístico de Auschwitz. O que Agostinho da Silva queria dizer está dentro da utopia. É que no futuro é possível, até por causa do desenvolvimento tecnológico e científico, sobretudo da Europa, onde haja um máximo de liberdade com um máximo de igualdade social. Esse seria o momento perfeito, o V Império mítico que a Europa procura. Houvesse pão sobre a mesa para todos, escola para os filhos, trabalho ou actividades para todos se sentirem realizados, hospitais para os idosos e uma tumba para morrer, porque, dizia ele, houve tempo em que não havia a vala comum. Não é muito pedir que cada político ao fazer uma lei tenha este objectivo.

Como vê a situação da Grécia?
A Grécia devolveu a capacidade de sonhar, trouxe essa capacidade, que François Hollande tinha também trazido, que o Podemos em Espanha também trouxe. É essa capacidade de sonho, de pensar a Europa com coesão social, com liberdade e, evidentemente, com igualdade e com justiça social. Atenção, isto não significa que eu esteja de acordo com as propostas do Syriza. Mas reconheço que abriu um novo horizonte à Europa. Só que esse horizonte vem tarde de mais. Na Europa, o poder é global, mas a política é nacional, os governos eleitos por parlamentos nacionais. Isso gera uma profunda contradição. Porque os povos nacionais sonham, é o caso de Portugal, de Espanha. E a burocracia não sonha, a burocracia governa a Europa governa a Europa como a tal empresa, de classe média, estável.

Isso gera frustração aos povos.
Certamente e regozijo dos burocratas, dos tecnocratas do poder. E por que é que eles são tecnocrata, contabilistas burocratas? Porque não nos dão uma visão de uma Europa melhor a dez, quinze, vinte anos. Passos Coelho e Cavaco Silva não apontam para um Portugal melhor. Pelo contrário. Ou mantém-se o mesmo, a austeridade, ou pior.

Entre os povos e a burocracia, quem pode decidir se a Grécia sai do euro?
Era preferível que a Grécia não saísse do euro. Mas é verdade que o conservadorismo europeu se arrepiou todo com a eleição deste novo primeiro-ministro grego. E tenta bloquear a Grécia. Mas a solução não está nem no Syriza nem no ministro das Finanças alemão. Um defende o dever moral alemão, o dever kantiano. O outro defende a capacidade de sonho. A solução está na continuidade sólida de uma classe média europeia, desde a Alemanha até à Grécia.

Como é possível recuperar essa classe média?
A Europa é o continente da classe média, desde a Grécia Antiga, só interrompeu alguns séculos na Idade Média. Depois continuou a ser a Europa da classe média romana. No Renascimento, a partir da formação das cidades a partir do século XII, a classe média voltou a nascer e impôs a burguesia. Foi a classe média que laicizou a Europa a partir do Renascimento, que separou a política da religião, o poder absoluto do poder moderado ou constitucional. A classe média é o perfumista francês, o gentleman inglês, o lavrador da Baviera, o comerciante italiano ou português. A classe média pode desaparecer em termos económicos mas não desaparece em termos mentais e em termos de longo prazo.

Mas tem um desafio, neste momento, que leva ao apetite dos nacionalismos?
Sim, o desafio da crise económica, por um lado, e o da crise de identidade, por outro. Mas a Europa desagrega-se, perde importância interna, perde importância internacional de cada vez que a classe média perde força. Vejamos: o Syriza governa a Grécia agora e por mais cinco ou oito anos, tentando restabelecer um mínimo de igualdade e de coesão social. Em França, Marie Le Pen ganha em 2017 as presidenciais. O Reino Unido sai da Europa, em referendo em 2017. Isto é uma hipótese plausível. E se assim for, sabe quem vai ser a grande âncora da Europa no futuro? É a classe média alemã. A Alemanha fica entalada entre uma França xenófoba, racista, desigual, com políticas antiemigração, com estatuto de gueto para os árabes e para os negros, se Marine Le Pen ganhar, e uma Rússia imperial. Entre uma extrema-direita e uma Rússia imperial, a Alemanha é obrigada a aliar-se à Polónia, hoje bastante liberal. Inimigos figadais serão obrigados a aliar-se. Portugal, Espanha e Grécia não contam, são pequenos países. A Europa do futuro desagrega-se e esta desagregação vai fazer com que esta Alemanha que hoje consideramos prepotente — e é — seja a âncora de uma futura Europa estável através da classe média.

Mas será uma Europa pequena?
Isso é difícil dizer, mas sim, uma Europa do Norte. A Alemanha e a Escandinávia. Eu tento perceber a Alemanha, tento perceber por que é que eles são assim. Depois da Segunda Guerra, foram o grande motor económico. Só que tem uma classe média burocrática que impõe a todo o continente. Isso gera reacções. A minha ideia não é defender a Alemanha ou a Grécia, mas sempre que a classe média se desagrega a Europa entra ou aproxima-se da guerra. A Alemanha é neste momento o esteio da classe média. Se a Europa se mantém forte face à América, face à Ásia, é pela Alemanha. Isso quer dizer que eu devo apoiar a política alemã a todos os níveis? Claro que não. Sobretudo, tudo o que seja contabilista burocrata e tecnocrata.

Esses seriam os "novos europeus"?
Não, no romance são os "velhos europeus". Tudo isso caminharia para os "clãs guerreiros", que são os mercenários que defendendo as empresas acabam por tomar conta das próprias empresas. Os "velhos europeus" são aqueles que hoje dominam a Europa e a governam como uma mercearia.

É uma Europa sem projecto?
Sim, e agressiva. A Alemanha é agressiva para Portugal, para a Espanha, para a Grécia.

Vive-se uma situação complicada na Ucrânia, a Rússia está menos forte no plano económico, logo mais perigosa no plano geoestratégico, até onde?
A Europa muda de mapa de cem em cem anos, desde o Renascimento. Portugal é dos países mais estáveis. A Europa mudou de mapa em 1945, com a Segunda Guerra Mundial, mudou de mapa em 1991, com a implosão da União Soviética. E ainda esta a mudar. O mapa não está estabilizado. A Rússia trabalha no sentido de se fortalecer geoestrategicamente. Quanto mais a Rússia quer ser imperial, menos democrata é, não há impérios democratas. Nesse sentido, o grande oposto à Europa é a Federação Russa. Mais do que o Estado Islâmico. Mas creio que devido ao elevadíssimo poderio das armas não se pode nunca cair em guerra, a não ser guerras localizadas nas fronteiras.

A Ucrânia não é um início de uma Terceira Guerra?
Não. A Ucrânia vai ser resolvida, a Ucrânia é um país que não existia, tem 25 anos, estava sempre na órbita da Rússia e dos seus aliados. Creio que nem a Alemanha, nem os Estados Unidos, nem a Polónia, nem a Europa no seu todo, vão abrir uma guerra na Europa, seria uma catástrofe total.

Mas há na Europa uma tenaz a leste e outra a sul.
Essas tenazes são as duas faces da ausência da classe média. Qualquer grande político na Europa neste momento tem de fortalecer a classe média, a classe média é o esteio da Europa. Foi a classe média que sonhou a razão científica, a razão filosófica, que levou à África, à Ásia, que abriu a Escola Pública, que fez o Sistema Nacional de Saúde.

Mas podemos estar a chegar ao fim do que é o mito do progresso iluminista? Esse reino da classe média pode deixar de existir, ou não? Restam os burocratas.
Está a falar da polémica sobre se chegamos ao fim do modernismo e se estamos no que se chama pós-modernismo. Eu estou convencido, sobretudo seguindo a lição de Jürgen Habermas e de Zygmunt Bauman, e de Onésimo Teotónio Almeida, em Portugal, de que a modernidade não acabou, que ainda não esgotámos a escola pública, o sistema de eleições, a separação entre os poderes, os direitos humanos, a ciência pública. E que estamos a passar por uma fase de desregulamento e fragmentação dos mercados europeus, ninguém tem dúvidas, mas ainda não há alternativa a esta Europa. Apostar nas políticas públicas que fizeram a Europa é apostar no único sonho que temos. E este é o desenvolvimento científico de modo a extirparmos a fome, o desenvolvimento ambiental no sentido de recriar harmonias com a natureza, o desenvolvimento da democracia no sentido de darmos a máxima liberdade e a máxima igualdade às pessoas, o desenvolvimento das tecnologias de modo a que as pessoas trabalhem cada vez menos e as máquinas trabalhem cada vez mais.

Não acredita que esteja a acabar o Modelo Social Europeu?
Não, não. O único grande sonho da Europa, a grande singularidade da Europa face à África, à Ásia e à América é o chamado Estado social. O único efeito de riqueza que a Europa produziu em quantidade foi durante a vigência do Estado social. É claro que tudo acaba e pode acabar. Mas neste momento, num horizonte de quinze a vinte anos, não há alternativa, a não ser a do Estado liberal, desigualitário, diferenciado socialmente, sem assistência médica dos idosos, que para Portugal seria ruinoso. Há dois milhões de pobres, há um milhão e meio de idosos a receber pensões de miséria.

O crescendo do populismo na Europa não pode ser um risco para a democracia?
Sem dúvida. Aliás, a democracia é o grande regime do risco, porque permite a explosão no seu interior – por isso é tão humanamente perfeita – das maiores contestações, desde o individualismo máximo até à formação de seitas religiosas de carácter fanático, ou de partidos de extrema-esquerda ou de extrema-direita. Quanto maiores os populismos mais a Europa entra em fragmentação e decadência. Amanhã, o populismo grego, junto com o populismo de Marine Le Pen e junto com o populismo do senhor Cameron, na Inglaterra – que também é populismo –, pode levar a que a Alemanha se torne o grande baluarte da futura Europa.

Quanto mais Podemos, menos podemos?
Exactamente, do ponto de vista europeu. Há que não caluniar a Alemanha. A Alemanha teve um grande passado. Teve um passado catastrófico mais recentemente, horrível, com o maior genocídio. Mas teve um passado democrático. Conseguiu suplantar a divisão entre as duas Alemanhas de uma maneira tão pacífica quanto burguesa. Talvez a futura Alemanha possa ser o futuro baluarte dos direitos humanos, dos direitos ambientais e da democracia. Isso não quer dizer que devamos ser servis com a Alemanha, mas a Alemanha não pode ser governada por burocratas, tem de ter homens como Helmut Kohl, que soube em quinze dias após a queda do Muro de Berlim exactamente o que tinha de fazer e como fazer. Era disso que nós precisávamos.

Quem ocupará o vazio da desagregação europeia? O "Império dos Mandarins"?
Estou convencido de que sim. Até agora tentei ser positivo com a Europa, falei da Europa nos últimos quinhentos anos, do Renascimento para cá, mas se pensarmos, a Europa dominou o mundo nos últimos três mil anos, descobriu e dominou a África, a Ásia, a América. Três mil anos é muito, a Europa possivelmente está a entrar numa decadência lenta que vai levar a um grande sono, entrará no século XXII num grande sono. Aí o continente que está mais bem preparado é inevitavelmente o asiático.

Há já dados concretos, a China está a comprar terras de cultivo em África e na América Latina, detém as dívidas das economias mais desenvolvidas. Em Portugal investe em empresas que o Estado privatiza. É a primeira economia mundial. Como vê a colonização do mundo pela China?
Se calhar temos de encontrar outra palavra, não é colonialismo, esse tempo já passou. É um império económico que avança primeiro e depois avançará o império político, quer dizer, a liderança política.

E com esse império político chegará também a falta de direitos humanos?
Não há tradição de direitos humanos na Ásia. A própria Índia subordina os direitos humanos a uma visão religiosa.

Conclui-se que o mundo é contraditório. Temos uma Europa em desagregação e em que a Alemanha é a âncora para o futuro, logo pode haver um futuro. Mas ao mesmo tempo parece que há um crescimento de um regime vindo da Ásia, em que não existem direitos humanos, democracia, ética kantiana.
Há aqui o choque de dois tempos. O tempo histórico conjuntural da Europa hoje, no século XXI. Neste, a Europa tem de ter as três bandeiras que fazem a sua singularidade no mundo inteiro: os direito humanos, os direitos ambientais e a democracia. Mas ao século XXII, ao século XXIII, não sei se isso chega e, portanto, admito que há um tempo civilizacional em que a Europa entra em decadência, atacada pelos árabes e pela Ásia. A Europa tem 500 milhões de habitantes, a China tem um bilhão e quatrocentos milhões, a Índia tem um bilhão e duzentos milhões. Quando o nível de armamento é tão sofisticado que qualquer guerra pode inviabilizar o território durante milhares de anos, devido a armas bacteriológicas e nucleares, a única possibilidade de os impérios se formarem é através do dinheiro. É o que a China está a fazer.

Nessa perspectiva e como antevê em O Último Europeu, admite o regresso do esclavangismo?
Admito que num futuro longínquo a escravatura se imponha novamente.

E quem serão os escravos?
Os escravos serão sempre os mais fracos. Mas não sei se serão os africanos, os europeus...

A evolução da economia, associada à falta de ética, pode levar a isso?
Sim. E a evolução da tecnologia também. Quando atingirmos cinquenta bilhões de habitantes na Terra, coloca-se um problema. E vamos atingi-los em 2070, coloca-se um gravíssimo problema, tem de haver água e comida para todos. E no século XXII, quando formos quinze bilhões, coloca-se ainda mais esse problema. Não estou a dizer que a China vá escravizar os europeus. No romance até os matam, mas é um romance.

No fim do livro, o último europeu tem 130 anos, está prestes a morrer e resta-lhe o livro que escreveu recordando a história da humanidade e a lembrança de uma vida democrática, de respeito e de bem-estar, que espera que seja levado ao futuro por um jovem casal na ilha do Pico. É definitivamente pessimista em relação ao futuro da humanidade?
O jovem casal é o optimismo.

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