sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

"não há grandes homens para o seu criado de quarto"


Por: Manuel Maria Carrilho DN 13/02/2014


A minha crónica da semana passada, "Guterres à presidência", suscitou múltiplas reações em geral positivas que, na verdade, não me surpreenderam. Foi como se, pela primeira vez muita gente se tivesse libertado das baias mediáticas do nosso infotainement, e pensado um pouco pela sua própria cabeça no assunto: ou seja, na função, no perfil, na missão que se devem esperar e exigir do próximo Presidente da República.

Eu sei que, antes, ainda há europeias e legislativas. Que os resultados de umas e outras não serão despiciendos para esta matéria, mas creio que estas crónicas também devem servir - pelo menos de vez em quando - para ver mais longe e procurar pensar no médio/longo prazo. Só assim o conseguimos preparar, e deixar de vaguear ao sabor de folhetins mediático-políticos.

Foram muitos os que manifestaram apoio à hipótese apresentada e à ideia defendida, e é isso o que mais interessa. Mas também houve muitos que manifestaram o seu ceticismo em relação a um aspeto decisivo: estará António Guterres disponível para se voltar a meter no vespeiro em que se tornou hoje a vida política portuguesa? - e não só portuguesa, claro. É uma questão a que só o tempo poderá responder.

De qualquer modo, as regras do jogo hoje vigentes impõem que qualquer candidato credível tenha de estar "indisponível" até ao momento certo, sendo o estado de disponibilidade quase sempre um passo certo para o desastre. Dito isto, estou convencido de que, a não haver alternativas internacionais - e, na verdade, não será fácil que as haja -, António Guterres não recusará uma tal missão, se sentir o apoio popular e político a tal opção.

E não é uma opção fácil, os tempos que se vivem são muito difíceis, nomeadamente para as personalidades que se afirmam acima da média e que façam da política uma missão. O debate sobre o fim dos "grandes homens" é interessante, mas em geral muito enviesado e mal conduzido. Lembro, sempre que o assunto vem à baila, uma frase que Hegel partilhava com Goethe: que "não há grandes homens para o seu criado de quarto". Isto é, para quem se ocupa apenas do que é mais comum, mais trivial, mais corriqueiro, mais banal, na vida quotidiana de todos os seres humanos. O "criado de quarto" só via isso, porque a sua função era mesmo essa, o que naturalmente o impedia de distinguir o mais idiota do mais genial dos homens.

Ora, a principal razão por que hoje se diz e repete com a evidência de um estereótipo que "já não há grandes homens", é que a função do criado de quarto do século xix se transferiu, no nosso tempo, para os media. São eles, os media, que constantemente limitam o que se vê à sua curta perspetiva, aos seus duvidosos valores e aos seus mais ocultos interesses, bloqueando a emergência, a perceção e a afirmação de tudo o que escape à sua poderosa lente. Porque "grandes homens" continua a havê-los, o que acontece é que quase deixou de ser possível vê-los e conhecê-los.

Basta pensar nos "tratos de polé" que seriam infligidos hoje a homens da craveira, por exemplo, de um Winston Churchill, lendo os seus dossiers durante a manhã na banheira, bebendo o seu whisky regularmente, entregue às suas noitadas e aos seus charutos. Qualquer idiota com um microfone nas mãos o cilindraria, sentindo-se - e isso é sem dúvida o mais grave - superior na sua extrema vulgaridade denunciadora, mas, atenção...politicamente correta!!!
São tempos de facto difíceis. De autêntico "canibalismo político!, como diz um autor que vale a pena ler com atenção, Christian Salmon, que assinala no processo de desconstrução da função política uma dupla revolução: por um lado, a da perda da soberania dos Estados, a pouco e pouco esvaziados de real conteúdo e poder pela lógica do ultraliberalismo. Por outro lado, pela revolução tecnológica dos meios de comunicação, que fizeram que "o político apareça cada vez menos como uma figura de autoridade, a que se obedece, e mais como algo que se consome. Menos como uma instância de produção de normas do que como um produto da subcultura de massa, um artefacto à imagem de uma qualquer personagem de série ou jogo televisivo..."

Estas transformações deram lugar nos últimos trinta ou quarenta anos à definição de um novo tipo de político, que se foi formatando no cruzamento de uma cada vez maior inspiração nos valores empresariais e de uma obsessão pela telepresença permanente. A crise da condição política surge, assim, simultaneamente com todas as outras crises - financeira, económica, social, cultural, etc. -, partilhando com elas os mesmos impasses.

Na Europa tudo se tornou ainda mais grave, porque a construção europeia se revelou, na prática, e para surpresa de muitos, um processo de desconstrução - ou mesmo de destituição - da política. Nomeadamente porque a "soberania partilhada" não conseguiu nunca superar as consequências do abismo que se cavou entre o poder e o dispositivo representativo, entre a capacidade de agir e o simbolismo do Estado. Pelo contrário, o abismo acabou por dar lugar a duas realidades que cada vez se opõem mais intensamente, por um lado a burocracia e as decisões sem rosto, por outro a democracia e os seus rostos sem poder.

Neste contexto, a política passou, como diz Christian Salmon, "da era do debate, da discussão e do dissenso para a era do interativo, do performativo e do espectral. Do storytelling à performance narrativa, da diversão narrativa à devoração das atenções. A comunicação política não visa apenas formatar a linguagem, mas também a embruxar os espíritos, mergulhando-os num universo espectral onde eles são simultaneamente performers e vítimas. São eles que presidem a esta cerimónia canibal em que se tornou a vida política".

Sem comentários:

Enviar um comentário