Como toda a gente que teve uma educação católica, mesmo sem depois ter tirado dela consequências de maior no plano das convicções religiosas, também eu, ao saber da renúncia de Bento XVI, fiquei com a impressão de estar a viver um momento histórico cujas consequências principais estão ainda muito longe de poder ser abarcadas.
Não foi apenas o ineditismo da situação, já tantas vezes referido e perspectivado, para trás e para a frente, que me impressionou. Também não direi que me tenha propriamente preocupado a discussão a lo divino, já a puxar as coisas para o plano híbrido em que o direito canónico e a área do sagrado se confrontam, sobre a liberdade plena do acto de renúncia ao vicariato de Deus ou as eventuais dificuldades de coexistência de quem "já foi" e de quem "passou a ser", num caso de tamanha envergadura.
O que me veio ao espírito foi a relação histórica tão profunda e tão antiga de Igreja de Roma com a Europa, a começar pelo sacro Império Romano-Germânico de que o Habsburgo Carlos V, após tê--lo vitoriosamente disputado ao Valois Francisco I, veio ainda a ser um poderoso símbolo moderno, não obstante o terrível saque de Roma que promoveu com os seus lansquenetes em 1527.
Pouco antes desses agitados e terríveis sucessos, tivera lugar a grande cisão da Igreja protagonizada por Lutero. Pouco depois, começaram as guerras de religião.
Passou a haver uma correspondência acentuada entre a Igreja romana e a Europa meridional. Os países do Norte, salvo o caso da Polónia, foram mais condicionados por uma matriz luterana e por uma devoção mais interiorizada. A ética protestante modelou o capitalismo, como diria Max Weber, e também lhe deu um sentido da solidariedade. A liturgia católica não dispensou pompas e cerimoniais, ritos externos e paramentos. Nas práticas sociais dos países do Sul, os homens continuaram a venerar o vil metal pelo vil metal, isto é, "amando cousas que nos foram dadas / não para ser amadas, mas usadas", como disse o Camões.
E todavia, nos tempos do capitalismo industrial, a Igreja de Roma surge a articular uma mensagem ética com uma profunda preocupação social. O processo foi muito lento e teve, no plano conceptual, momentos de ponderação e contestação, conflito e desvario. Vai de Leão XIII e da sua Rerum Novarum (1891) até à teologia de libertação, que pontua a mensagem evangélica junto dos desesperados do Terceiro Mundo, e aos católicos ditos progressistas, que tentaram encontrar na esquerda caminhos para uma Igreja que concebiam como agente da revolução.
Talvez não houvesse, em várias décadas ingenuamente ideológicas do século XX, a percepção da caixa de Pandora em que fervilhavam os fundamentalismos que vieram a traumatizar o espírito humano a partir do 11 de Setembro de 2001.
Duas guerras mundiais, vários totalitarismos e a guerra fria terão impedido que esse problema se percebesse mais cedo.
No extremo desse longo e cruel processo histórico, Bento XVI é um grande intelectual europeu de um tempo menor ainda europeu. Surge num momento em que, pela sua personalidade, é levado a enquadrar racionalmente esses inúmeros conflitos e tensões do seu tempo. Logo em inícios de mandato foi miseravelmente atacado por radicalismos de vária ordem, a propósito de uma sua intervenção em Ratisbona.
Na sociedade de hoje, há processos e tecnologias de comunicação, formas de circulação de informação em grande quantidade e velocidade, modalidades de saber e de transmissão do conhecimento, virtualidades empresariais e negociais à escala planetária, potenciais de sugestão e de manipulação imparáveis, hábitos de contacto humano em redes sociais e modelos de comportamento que não podiam conceber-se até há bem poucas décadas.
Nesse quadro, a Europa, seja a do Norte seja a do Sul, por muita importância que ainda consiga afirmar, está a perder terreno. A Igreja Católica também. O futuro, nessa dimensão vertiginosa, surge--nos cada vez mais interrogado e imprevisível.
O mundo escapa-nos.
A crise dos valores éticos e culturais que nasceram na nossa civilização é um factor de desagregação acelerada da Europa (e por culpa da Europa) e também atinge a Igreja e o seu magistério, ou, pelo menos, torna-o em grande medida ineficaz. O Papa teve a plena percepção disso mesmo.
Sendo assim, o que é que havia de fazer um ancião de 85 anos, que sente que as suas forças ficam esgotadas e as suas responsabilidades da chefia da Igreja se tornam cada vez maiores?
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
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