domingo, 17 de fevereiro de 2013

O Estado social (IV) - Economia de 1% e Estado pré-falido: que Estado social?, por Medina Carreira



A reforma do Estado social português - Não está na nossa inteira disponibilidade a reforma do Estado social português: a evolução negativa das bases fundamentais da sua sustentação - económicas, financeiras e demográficas - tornam-na imperativa e inadiável, como antes já procurou demonstrar-se. Há duas décadas teria tido custos, mas toleráveis; hoje será penosa para alargados estratos da nossa sociedade e provocará ‘feridas’ insanáveis; mais tarde poderá reduzir-se a prestações, pouco mais que simbólicas, sem coerência, sem segurança, sem regularidade e sem justiça. Perante esta realidade é preocupante a ligeireza com que alguns responsáveis (?) políticos continuam a proclamar a possibilidade da sua manutenção, sem limites e sem mudanças; pensam e agem como se estivesse assente em alicerces comprovadamente sólidos, quando são evidentes as fraquezas da sua base de sustentação financeira. Estamos perante um perigoso embuste, há anos repetido sem escrúpulos.


Perspetivas sobre o crescimento económico - Uma rápida e forte aceleração da nossa economia seria a única via suscetível de mitigar os efeitos a produzir por uma drástica reforma do Estado social. Infelizmente, não nos encontramos em condições de acalentar quaisquer expectativas favoráveis que o permitam. Na verdade, ocorrem três principais ordens de razões para que assim seja - 1) os entraves ocasionados pelas políticas que nos conduziram à pré-falência e à tutela estrangeira; 2) a insuficiência dos resultados obtidos, até agora, pela ação do atual Governo, em áreas essenciais; e 3) as profundas modificações trazidas pela globalização, com efeitos muito negativos e, provavelmente, já irreversíveis, sobre as economias desenvolvidas do Ocidente.


Os entraves acrescidos pela pré-falência do nosso Estado - Nos derradeiros 30 anos e década após década, a taxa de crescimento do PIB português caiu sempre: 3,6% (1980-90); 2,9% (1990-2000); e 0,6% (2000-10). Em contrapartida, e como se sabe, as políticas de despesa pública ignoraram este comportamento económico e o insuportável endividamento público, arrastando o Estado para a pré-bancarrota e a tutela exterior. Emergiram, em consequência, alguns fortes constrangimentos, a saber: a falta de financiamento da economia, ou, quando disponível, feito a taxas proibitivas; os impostos aplicados, que atingem níveis antes desconhecidos; a quebra profunda da procura interna, com efeitos arrasadores no consumo; a desconfiança que afugenta o investimento; um temor crescente da sociedade perante o seu futuro; a descapitalização total da maioria das empresas. Sendo esta uma síntese, ainda assim incompleta, do pano de fundo que envolve a nossa economia, é essencial mudá-lo rapidamente, como condição indispensável para a atração do investimento.


As verdadeiras prioridades políticas, não concretizadas - Tendo em conta as circunstâncias desfavoráveis e globais em que nos encontramos, impõe-se, urgentemente, a aplicação de políticas nas seguintes áreas: na do ajustamento das contas públicas; na da reforma do Estado social; e na das reformas estruturais, em especial nos domínios laboral, fiscal, burocrático e judicial. Temos por certo que, desde o início de funções, estas políticas deveriam mobilizar por completo as atenções e a ação do Governo. Acontece, porém, que ainda não se avançou, em medida suficiente, em qualquer das três direções: o ajustamento das contas públicas e o cumprimento dos défices não foram conseguidos, em absoluto, mesmo com receitas extraordinárias; do Estado social irá cuidar-se só agora, sem reflexão profunda, sem planificação adequada, sem método e à pressa; as reformas estruturais evoluem devagar e desligadas, sem objetivos e prazos conhecidos. Resumindo, as condições internas e mínimas para a aceleração económica, a um ritmo compatível com um futuro satisfatório, não existem.


A globalização e a desindustrialização do Ocidente desenvolvido - Na sua generalidade, as nossas elites vivem obcecadas com os problemas do euro, muito convictas de que, solucionados aqueles, voltaríamos rapidamente aos bons tempos da grande prosperidade. Temos as maiores reservas face a esta posição, sem duvidar da grande importância de que se reveste a questão monetária dos 17: assumimo-la como necessária mas não suficiente. Porquê? Porque a deslocalização maciça das indústrias transformadoras para fora da sua área, em busca permanente da mão de obra que se mostre mais barata, roubou ao Ocidente a produção industrial com alta produtividade, que absorve um elevado número de trabalhadores com aptidões médias, empregos estáveis e satisfatoriamente remunerados. Foi com esta economia de base industrial que no Ocidente se criaram e sustentaram as numerosas classes médias e se esbateram progressivamente as diferenças entre ricos e pobres. Pretendeu-se deslocar para as tecnologias da informação e outros serviços qualificados os motores do crescimento económico. Mas estes criam poucos empregos e exigem saberes especializados. À margem destes restam os serviços pouco qualificados, de baixa produtividade, pouco estáveis, mal pagos e geradores de vidas difíceis, fonte das crescentes desigualdades que ocorrem hoje nas nossas sociedades. Quer dizer: passámos a comprar no estrangeiro aquilo que produzíamos e ficámos com os desempregados, ou com os empregados mal pagos, que agora trabalham nos serviços. É difícil perceber isto, que nada tem que ver com o euro? Assim, solucionado que fosse o problema da moeda, continuaríamos a comprar lá fora o que antes produzíamos, deixando no desemprego, ou em serviços pouco qualificados, os que saíram da indústria.

 
O afundamento das economias ocidentais a partir de 2001 - A globalização/desindustrialização produziu o recuo daquelas economias (ver quadro PIB em Volume). Nenhum país escapou e os principais registaram quedas significativas. A zona euro desce de um crescimento médio anual de 2,6% (1986-2000) para 1,1% (2001-2010); e os EUA de 3,3% para 1,7%, respetivamente. Perto de 60% o tombo dos 17 e perto de 50% o dos EUA. No nosso país baixou-se de 3,8% para 0,7%, nesses períodos, o que corresponde a uma descida da ordem dos 80%! Não surpreendem os nossos registos muito negativos quando se tenha presente o aceleradíssimo recuo do peso da indústria no nosso PIB: 39% em 1980; 38,2% em 1990; 20,4% em 2000 e 17% em 2010. Em 20 anos (1990-2010) - 21,2 pontos percentuais. Resumindo: a passagem em curso de economias industrializadas para outras terciarizadas, no nosso Ocidente, deixa já um rasto dramático de efeitos. Um imenso desastre está em curso no Ocidente desenvolvido, sem que se eleve a voz de um único alto responsável, de dentro ou de fora. É que já não há responsáveis, verdadeiramente!


Um exercício sobre o futuro da economia e o futuro do Estado social português - Os limites dos benefícios concedidos por este dependem, decisivamente, da economia e da demografia. Já ninguém põe em causa, entre nós, que a baixíssima taxa de natalidade e a crescente longevidade constituem uma séria ameaça para a sustentação daquele Estado. Quanto à condicionante económica, poucos se preocupam. É possível que, para esse alheamento, concorram as garantias constitucionais existentes e a expectativa do aparecimento, na governação, de gente com apurada sensibilidade social. Por isso, justifica-se o exercício expresso no quadro Projeções sobre Receitas e Despesas, que assentou no seguinte: a) Previsão de crescimentos económicos anuais de 0,5% (2010-2015) e de 1% (2015-2020), na Hipótese A e de 1% e 2%, respetivamente, na Hipótese B; b) Nível de fiscalidade de 35% do PIB em 2015 e 2020; c) Outras receitas públicas equivalentes a 6% do PIB em 2015 e 2020; d) Endividamentos (défices) correspondentes a 0,5% do PIB nesses anos; e) Despesas com juros previstas no DEO; f) Despesas sociais, de valor igual ao de 2010, em 2015 e 2020 (38,3 mm€); g) Para todas as restantes despesas públicas, o remanescente permitido pelo peso dos juros e pelas despesas sociais.


Conclusões a extrair do exercício - Os gastos com os juros e a manutenção das despesas sociais no valor de 2010 (38,3 mm€) limitam os montantes disponíveis para todas as outras despesas públicas: assim, e no futuro, ou se reduzem drasticamente estas despesas ou o Estado social não poderá crescer nem sequer manter-se ao nível de 2010. Goste-se ou não, a preservação do Estado social, nos seus atuais termos, não será viável sem um dinamismo económico muitíssimo maior, não provável nas circunstâncias conhecidas e nas previsíveis. Com a economia deste início do século XXI ninguém manterá o nosso ‘social’ tal como é.


Medina Carreira in Expresso de 17/2/2013



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