domingo, 9 de dezembro de 2012

O mar é grande. Mas às vezes não é assim tão grande


Barcos de pesca colidem no Algarve em águas abertas. Houve 118 naufrágios este ano
Texto Ricardo Marques Foto Luiz Carvalho

A noite de segunda-feira chegou com vento fraco e mar calmo ao largo de Monte Gordo. Para os quatro homens a bordo do “Herança do Mar”, que navegava devagar para nascente, a única preocupação era mesmo deitar os covos à água e rezar para que, daí a dias, viessem cheios de polvos. Pouco depois das três da manhã, com mar calmo e sem vento, o arrastão “Peixe de Ouro”, com quatro tripulantes, saiu do porto de Vila Real de Santo António e rumou a sul para pescar tamboril. Pelas 3h30, a duas milhas de terra, em condições boas para a navegação e com o oceano inteiro à sua volta, as duas embarcações chocaram.

Não há nenhuma maneira fácil de explicar o que leva dois barcos a colidir em alto mar. A maioria das teorias faz parte de teses de mestrado e de doutoramento, contempla dezenas de variáveis e de fórmulas matemáticas e, por regra, abrange áreas marítimas específicas ou momentos determinados da navegação. António Serafim, o mestre do “Herança do Mar”, no entanto, precisa apenas de uma frase. “Quando ouvi o barulho deles e vi aquela coisa branca à minha frente, ainda dei à ré com toda a força que tinha o barco, mas já não foi a tempo”, conta.

Na noite do acidente, o “Peixe de Ouro”, de 14 metros, conseguiu voltar ao porto, mas os quatro tripulantes do “Herança do Mar” tiveram de saltar para uma balsa e esperar que a lancha semirrígida da Polícia Marítima os salvasse. “Estas coisas acontecem, mas não se deixam as pessoas sem auxílio”, lamenta António Serafim. “Depois de batermos, o ‘Peixe de Ouro’ só voltou para trás porque eu lhes disse no rádio que estávamos a meter água, e ficaram sempre à distância”, assegura o mestre do “Herança do Mar”. O Expresso tentou ouvir também o armador do “Peixe de Ouro”, mas João Afonso não quis prestar declarações.

O acidente em águas algarvias está a ser investigado pela Marinha. Os armadores do “Herança do Mar” e do “Peixe de Ouro” já entregaram os respetivos protestos de mar (relatórios do acidente), e as peritagens aos navios deverão ser feitas nas próximas semanas. O trabalho começou na quarta-feira à tarde, quando o “Herança do Mar”, de 12 metros, foi retirado do fundo do mar e rebocado para terra para avaliação. “Por isso”, refere o comandante do porto de Vila Real de Santo António, Ventura Borges, “é prematuro atribuir responsabilidades ou avançar quaisquer hipóteses”.

Raridade marítima

As colisões entre navios são raras. O próprio comandante Ventura Borges admite não se lembrar de alguma vez ter de elaborar um relatório semelhante. Por isso, esta semana é ainda mais atípica. Na quinta-feira à tarde, no Mar do Norte, num dos canais de navegação mais usados para chegar ao porto de Roterdão, na Holanda, deu-se outra colisão em alto mar, entre dois enormes cargueiros com mais de 100 metros. Um dos navios foi ao fundo e, além de seis desaparecidos, o acidente provocou cinco mortos.

Em Portugal, de acordo com dados cedidos pela Marinha, houve cinco colisões nos últimos dois anos. E apenas no caso do Algarve se verificou o afundamento de um dos navios envolvidos. No mesmo período, registaram-se 243 acidentes, 49 afundamentos, 9 mortos e 39 feridos. Nos últimos cinco anos, o número de mortos sobe para 19 e o de feridos para 77.

Ao largo de Monte Gordo não foi preciso contar vítimas. Os estragos mais visíveis estão no casco do “Herança do Mar” e são também o melhor ponto de partida para a investigação. O resto, por agora, é um mar de dúvidas. Os barcos tinham as luzes ligadas? Havia homens ao leme? Os radares funcionavam? As regras foram respeitadas? Era impossível alterar a rota? De acordo com uma fonte da Marinha, os acidentes devem-se muitas vezes a uma sucessão de vários pequenos erros, mais do que a um único erro.

São essas sequências que os modelos procuram reproduzir, introduzindo toda o género de variáveis: umas relacionadas com comportamentos humanos, outras ligadas à resposta dos equipamentos, à dimensão dos navios, à sua configuração, número de motores... Há dois anos, numa tese de mestrado em Engenharia e Arquitetura Naval, Pedro Monteiro calculou que o valor esperado de colisões entre embarcações no continente é de 1,8 por ano.

Para chegar a este resultado, entre outras variáveis, o investigador levou em conta os dados históricos de navegação dos navios seguidos através do equipamento de identificação automática - obrigatórios nos navios de maior porte. Até maio de 2014, essa obrigatoriedade vai alargar-se a todas as embarcações de pesca de comprimento igual ou superior a 15 metros.

António Serafim não sabe onde estará nessa altura. Agora é difícil fazer contas. As consequências mais graves do acidente no mar vão sentir-se em terra. Ele e os três tripulantes ficaram sem barco e sem trabalho. As famílias ficaram sem rendimento. “Agora? Não sei o que vamos fazer.”

in "Expresso" de 08.12.2012

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