sábado, 1 de outubro de 2011

A ORIGEM DO CONTO DO VIGÁRIO, por FERNANDO PESSOA, o próprio.

Publicado pela primeira vez no diário Sol, Lisboa, ano I, de 30 de Outubro de 1926, com o titulo de “Um Grande Português”. Foi publicado depois n’O “Noticias” Ilustrado (edição semanal do Diário de Noticias), Lisboa, ano II, série II, nº 62, de 18 de Agosto de 1929, com o titulo de “A Origem do Conto do Vigário”.



Vivia, há já bastantes anos, algures num concelho do Ribatejo, um pequeno lavrador e negociante de gado chamado Manuel Peres Vigário.

Chegou uma vez ao pé dele um fabricante de notas falsas e disse-lhe:” Sr. Vigário, ainda tenho aqui uma notazinhas falsas de cem mil reis que me falta passar. O senhor quer? Largo-lhas por vinte mil reis cada uma”.

“Deixe ver”, disse o Vigário; e depois reparando logo que eram imperfeitíssimas, rejeitou-as. “Para que quero eu isso?”, disse; “isso nem a cegos se passa”.

O outro, porém, insistiu; Vigário, regateando, cedeu um pouco.
Por fim fez-se negocio de vinte notas, a dez mil réis cada uma.

Sucedeu que dali a dias tinha o Vigário que pagar a dois irmãos, negociantes de gado como ele, o saldo de uma conta, no valor certo de um conto [milhão] de réis. No primeiro dia da feira, em que se deveria efectuar o pagamento, estavam os dois irmãos jantando numa taberna obscura da localidade, quando surgiu à porta, cambaleando de bêbado, o Manuel Peres Vigário. Sentou-se à mesa deles e pediu vinho. Daí a um tempo, depois de alguma conversa, pouco inteligível da sua parte, lembrou que tinha um pagamento a fazer-lhes. E, puxando da carteira, perguntou se se importavam de receber tudo em notas de cinquenta mil reis. Os irmãos disseram que não se importavam; mas, como nesse momento a carteira se entreabrisse, o mais vigilante dos dois chamou, com um olhar rápido, a atenção do irmão para as notas, que se via que eram de cem mil réis. Houve então uma troca de olhares entre os dois irmãos.


O Manuel Peres contou tremulamente vinte notas, que entregou. Um dos irmãos guardou-as logo, tendo-as visto contar, nem perdeu tempo em olhar para elas. O Vigário continuou a conversar, e, várias vezes, pediu e bebeu mais vinho. Depois, por natural efeito da bebedeira progressiva, disse que queria um recibo. Não era costume mas nenhum dos irmãos fez questão.

O Manuel Peres disse que queria ditar o recibo, para as coisas ficarem todas certas.
Os outros anuíram a este capricho de bêbado. Então o Manuel Peres ditou como em tal dia, a tais horas, na taberna de fulano, “estando nós a jantar” ( e por ali fora com toda a prolixidade estúpida de bêbado), tinham eles recebido de Manuel Peres Vigário, do lugar de qualquer coisa, a quantia de um conto de réis, em notas de cinquenta mil réis.
O recibo foi datado, selado e assinado. O Vigário meteu-o na carteira, demorou-se mais um pouco, bebeu ainda mais vinho, e por fim foi-se embora.

Quando, no dia seguinte, houve oportunidade de se trocar a primeira nota de cem mil réis, o individuo que ia a recebê-la, rejeitou-a logo por falsíssima. Rejeitou do mesmo modo a segunda e a terceira. E os dois irmãos, olhando então bem para as notas, verificaram que nem a cegos se poderiam passar.

Queixaram-se à policia, e foi chamado o Manuel Peres, que, ouvindo atónito o caso, ergueu as mãos ao céu em graças da bebedeira que o havia colhido providencialmente no dia do pagamento e o havia feito exigir um recibo estúpido.

Lá o dizia o recibo:” um conto de réis “em notas de cinquenta mil réis””. Se os dois irmãos tinham notas de cem, não era dele, Vigário, que as tinha recebido. Ele lembrava-se bem, apesar de bêbado, de ter pago vinte notas, e os irmãos não eram (dizia o Manuel Peres) homens que lhe fossem aceitar notas de cem por notas de cinquenta, porque eram homens honrados e de bom nome em todo o concelho.

E, como era de justiça, o Manuel Peres Vigário foi mandado em paz.

O caso, porém, não podia ficar secreto. Por um lado ou por outro, começou a contar-se, e espalhou-se. E a história do “conto de réis do Manuel Peres Vigário”, abreviado o seu titulo para “o conto do Vigário” passou a ser uma expressão corrente na língua portuguesa.

Fernando Pessoa

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