quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A República ameaçada

Por Baptista-Bastos

"SEM DISCURSOS NEM TROMBETAS, os inimigos da República tomaram o poder na sociedade. Na primeira linha, o dinheiro e a imagem. A sua aliança sucedeu ao trono e ao altar." Eis as primeiras frases de um texto notável, de que só agora tive conhecimento, e no qual o autor, o dr. Miguel Veiga, advogado e intelectual que vive no Porto, procede a uma análise do estado actual das coisas. Quando a cultura deixa de ser o paradigma da relação com o outro, a colectividade perde o lugar confluente onde se cruzam os preceitos éticos e estéticos que a justificam.

Diz Miguel Veiga: "Agravando a opulência pela notoriedade, multiplicando a desigualdade dos rendimentos pela da consideração pública, ela ataca os fundamentos do orgulho da República: o desinteresse e o anonimato que subordinam os interesses e as vaidades ao interesse geral. A República não é um regime político entre outros. É um ideal e um combate." O texto foi lido em Arcos de Valdevez, há menos de dois meses, numa homenagem a Mário Soares, e a sua importância reflexiva não mereceu, da imprensa a atenção necessária. A imprensa, cada vez mais abandonada à futilidade e ao pequeno escândalo, aumenta a hipótese repressiva da conduta política.

Essa conduta política repressiva expressa-se nas formas mais diversas. A última das quais, porventura, a da tentativa de alteração dos códigos constitucionais. Lembremos que o autor principal dessa revisão, proposta pelo dr. Passos Coelho, é um importante dirigente da Causa Real, Paulo Teixeira Pinto, ex-banqueiro, convertido aos fascínios da pintura e da edição. A tomada do poder, na sociedade, pelos inimigos da República, de que fala Miguel Veiga, não é uma metáfora. A lassitude com que assistimos à destruição dos princípios e dos padrões fundamentais da ideia republicana é sinal da nossa indolência moral. Antero chamou-lhe a "decadência da alma". É-nos imposto um novo modelo de desenvolvimento que desrespeita os tempos do homem e cria uma violência social destruidora da espontaneidade, da imaginação e da própria vida associativa. Nada fazemos para nos opor. E aceitamos a identidade dominante, rudemente aplicada, sem nos insurgirmos contra esse notório abuso de poder. Não é ingénua a leviandade com que muitos jornalistas portugueses aceitam este totalitarismo mascarado de democracia de superfície. A leviandade nunca é ingénua. E o silêncio da memória não protege o homem dos perigos que sobre ele impendem.

As ameaças à República são reais e corroem a identidade da democracia. É cada vez mais difícil reapropriarmo-nos das heranças legadas há um século. E cada vez mais fácil fomentar o mal-entendido que tem levado ao desleixo de cuidarmos dessas heranças.
.
«DN» de 22 Set 10

1 comentário:

  1. O discurso do dr Miguel Veiga é uma peça de análise politica e social, fantástica! vai ao âmago da questão!
    A República - que agora celebramos o seu 1º centenário - "não é um um regime politico entre outros"
    A ética, a moral e o ideal republicanos, estão acima das querelas partidárias, da luta politica diária. A República e os seus ideais, são o grande baluarte da construção e defesa da "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" que a revolução francesa nos legou. A defesa dos direitos do cidadãos e da sociedade em geral, não podem, não devem, servir de abrigo, aos que lutam contra os seus princípios, e que tudo fazem para a sabotar, porfiando o regresso de uma organização social retrógrada, com cidadãos de 1ª e outros de 2ª.
    Há pois que festejar o 1º centenário da República fazendo levantar bem alto a voz da Liberdade e da Ética Republicana.

    ResponderEliminar