sábado, 30 de setembro de 2017

Há caranguejos-azuis norte-americanos no Guadiana

28 DE SETEMBRO DE 2017, in DN

Espécie é considerada uma iguaria em muitos lados. Foi encontrada a mais de sete mil quilómetros do habitat original


Investigadores do Centro de Ciências do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve descobriram no estuário do rio Guadiana exemplares de caranguejo-azul, uma espécie com alto valor comercial característica da América do Norte, foi esta quinta-feira divulgado.
A espécie (Callinectes sapidus), também conhecida como "siri" e considerada uma iguaria, é nativa da costa leste da América e foi encontrada pela primeira vez no Guadiana, a mais de sete mil quilómetros de distância do habitat original, em junho, o que surpreendeu os pescadores locais, revelou o CCMAR em comunicado.
Segundo o centro de investigação, há registo de outros exemplares da mesma espécie capturados anteriormente no estuário do Sado, o que indicia que "estará numa fase de expansão na nossa costa, depois de provavelmente ter navegado, enquanto larva, nas águas de lastro de um navio que cruzou o Atlântico".


O aparecimento de espécies invasoras no estuário do Guadiana tem vindo a aumentar nos últimos anos, com mais de uma dezena de espécies registadas, incluindo peixes, amêijoas, alforrecas, camarões, e mais recentemente este caranguejo, "o que pode ter consequências nefastas" para as espécies nativas, alerta o comunicado do CCMAR.

No entanto, as espécies invasoras com valor comercial, como é o caso do caranguejo azul ou da corvinata real (Cynoscion regalis), registada no ano anterior, "podem ser um exemplo de como uma ameaça se pode transformar numa oportunidade de exploração", refere o CCMAR.
Face à inexistência de predadores naturais destas espécies invasoras, "a sua pesca contribuirá para o controlo da sua densidade", aliviando a pressão de exploração dos recursos pesqueiros tradicionais, como a sardinha, acrescenta.

"Novas alternativas de consumo deste tipo de espécies estão também a ser estudadas com chefs de restaurantes algarvios", conclui o CCMAR, sublinhando que os seus investigadores estão disponíveis para desenvolver "parcerias tecnológicas e científicas com qualquer setor da indústria pesqueira".

O CCMAR desenvolve investigação nas áreas da oceanografia, biologia marinha, pescas, aquacultura, ecologia e biotecnologia e possui cerca de 250 membros, 110 dos quais doutorados.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Turismo de saúde: Governo quer tratar alemães (e outros) em hospitais portugueses

A ideia é aproveitar o bom momento para o turismo nacional e atrair para o país doentes estrangeiros que queiram tratar-se nos hospitais privados nacionais. A Alemanha será um dos principais mercados alvos, mas há outros, como o Reino Unido, França ou os nórdicos.

Por Filomena Lança, in Negócios de 20.09.2017

O Governo está a preparar um conjunto de acções de promoção do turismo de saúde em Portugal e, num acordo com a Câmara de Comércio Luso Alemã, recebe esta quinta-feira, em Lisboa uma consultora alemã especialista em turismo de saúde.

A iniciativa integra-se numa acção de sensibilização sobre o tema e serve  também para conhecer a experiência daquele país e lançar as bases para uma aposta nacional neste segmento do turismo, em que Portugal está agora a dar os primeiros passos.

"Estamos no centro do mundo e temos esperança de, à semelhança do que acontece com o turismo em geral, aproveitar o bom momento que o país atravessa e levar o turismo de saúde à boleia", explica José Manuel Boquinhas, coordenador do grupo de trabalho para o turismo de saúde no  Ministério da Saúde. 

Este grupo foi criado em Outubro passado e inclui representantes dos hospitais privados – quem tem a oferta e beneficiará dos fluxos de turistas –, a Confederação do Turismo de Portugal, a Secretaria de Estado do Turismo, o Turismo de Portugal e o Health Cluster Portugal, que reúne público e privado e se dedica a promover a competitividade da saúde no País nas diversas vertentes.

O mercado alemão é, precisamente, um dos alvos a alcançar, afirma José Manuel Boquinhas. "Os alemães vão trazer a sua experiência e o mercado alemão é muito interessante, na medida em que exporta muito turismo e é um dos que temos assinalados". Basicamente, fica mais barato às seguradoras alemãs mandarem os seus clientes para serem tratados em Portugal, mesmo tendo de suportar os custos das viagens e da estadia, admite o especialista.

"Portugal tem uma oferta de topo em matéria de medicina, o que será fundamental."
JOSÉ MANUEL BOQUINHAS, COORDENADOR NACIONAL PARA OS PROJECTOS INOVADORES EM SAÚDE

Por outro lado, "Portugal tem neste momento uma oferta considerada de topo em matéria de medicina, o que será fundamental na atracção deste tipo de turismo.

Além da Alemanha, o Governo estuda aproximação a outros mercados, como o dos Emirados Árabes Unidos,  Qatar,  Estados Unidos ou outros países europeus, como o Reino Unido, a França ou os nórdicos, caso da Suécia, Finlândia ou Dinamarca.

"No Reino Unido, por exemplo, o SNS é muito deficitário e há listas de espera muito grandes; em França e em alguns países nórdicos, o país tem já sucesso junto de reformados que passam cá uma parte do ano, um mercado que pode ser também potenciado, acredita José Manuel Boquinhas.

Espanha é um dos principais concorrentes

Há muito que países como a Tailândia, a Índia ou a Turquia apostam no chamado turismo de saúde. Não só na realização de exames, meios complementares de diagnóstico e tratamentos propriamente ditos, mas também ao nível  das cirurgias estéticas  ou do bem-estar, com os chamados SPA. 

A Turquia, muito popular entre os alemães, tem perdido quota de mercado por razões de segurança, o que poderá ser também uma oportunidade para Portugal. Para já, os grandes concorrentes são a Espanha, que já factura todos os anos  mais de 500 milhões  com turismo de saúde, a República checa e a Croácia.


Por cá, o Ministério da Saúde criou já uma plataforma – a Medical Tourism in Portugal – direccionada para estrangeiros  e com informações sobre os grupos privados de saúde a operar em Portugal e, em geral, sobre a oferta médica que existe no país. Além disso, está preparada uma brochura destinada ao mercado estrangeiro e um vídeo promocional  a apresentar em breve, as "ferramentas para atacar o mercado", remata José Manuel Boquinhas. 

domingo, 24 de setembro de 2017

Crescimento do turismo permite que Portugal volte a ter excedente externo


Julho foi marcado por um regresso das contas externas a um saldo positivo. Um cenário que é sustentado pelo crescimento do turismo, numa altura em que as importações estão a crescer a um ritmo superior ao das exportações elevando o défice da balança de bens.

As contas externas nacionais voltaram a dar sinais positivos em Julho, num período em que o saldo da balança de pagamentos (balança corrente e balança de capital) passou de negativo para positivo. Assim, Portugal registou um excedente externo de 280 milhões de euros até Julho, revelou esta quarta-feira, 20 de Setembro, o Banco de Portugal.

Este valor representa uma melhoria face ao verificado nos primeiros seis meses do ano, período em que se verificou um défice externo de 685 milhões de euros, mas é uma deterioração face ao ano passado, quando o excedente externo se situou nos 1.058 milhões de euros.

E a justificar a melhoria das contas nacionais está sobretudo o turismo, cujo excedente aumentou mais de mil milhões de euros até Julho para um total de 5.396 milhões de euros.

Este sector permitiu que a balança de bens e serviços registasse um excedente de 1.596 milhões de euros, ainda assim, inferior ao observado há um ano. Isto porque o saldo comercial é negativo, numa altura em que as exportações estão a crescer 11,8%, enquanto as importações aumentaram 14%. Dito isto, "o aumento do excedente da balança de serviços, em 1.026 milhões de euros, foi insuficiente para compensar o incremento do défice da balança de bens de 1.685 milhões de euros", explica o Banco de Portugal.

Já a balança de rendimento primário registou um aumento do défice para 3.299 milhões de euros, devido "à redução de subsídios recebidos da União Europeia e ao aumento do défice da balança de rendimentos de investimento."

Positiva está também a balança financeira, tendo registado "um acréscimo dos activos líquidos de Portugal sobre o exterior no valor de 907 milhões de euros", um desempenho que é justificado pelo "investimento em títulos de dívida por parte do sector financeiro e na redução do passivo das administrações públicas", adianta a mesma fonte.

O Banco de Portugal realça ainda que, precisamente em Julho, Portugal reembolsou antecipadamente o Fundo Monetário Internacional (FMI) em 1,7 mil milhões de euros.

A balança de pagamentos regista as transacções que ocorrem num determinado período de tempo entre residentes e não residentes numa determinada economia. Essas transacções são de natureza muito diversa encontrando-se classificadas em três categorias principais:

- balança corrente, que regista a exportação e importação de bens e serviços e os pagamentos e recebimentos associados a rendimento primário (ex: juros e dividendos) e a rendimento secundário (ex: transferências correntes);

- balança de capital, que regista as transferências de capital (ex: perdão de dívida e fundos comunitários) e as transacções sobre activos não financeiros não produzidos (ex. licenças de CO2 e passes de jogadores);

- balança financeira, que engloba as transacções relacionadas com o investimento, nomeadamente investimento directo, investimento de carteira, derivados financeiros, outro investimento e activos de reserva.



Fonte: Banco de Portugal


sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Os inimigos do Alojamento local abandonam a sombra e expõem-se à vista desarmada!


Hoteleiros europeus unem-se contra o Booking
Diversas associações hoteleiras de países europeus estão a ponderar concertar posições a nível europeu para tentar travar as cláusulas de paridade e as comissões cobradas pelo portal Booking, que acusam de desrespeitar a concorrência.


In:Negócios
18 de setembro de 2017 


Diversas associações hoteleiras estão a ponderar avançar com um processo a nível europeu contra o gigante de reservas online Booking por práticas anti-concorrenciais, escreve o económico espanhol Cinco Días. O portal, que já conquistou, de acordo com dados citados pelo jornal, uma quota europeia de 63% das reservas online de hotéis, é acusado de forçar os hoteleiros a não baixar preços e a cobrar comissões excessivamente elevadas.

De acordo com o Cinco Días, esta plataforma irá ser alvo de uma queixa por abuso de posição dominante. O jornal não precisa quais as associações em causa – nem quando é que planeiam abrir esse procedimento a nível europeu.

O objectivo da queixa é acabar com os dois principais entraves na relação entre hotéis e plataformas na internet que os vendem: as cláusulas de paridade e as comissões. As cláusulas obrigam os empresários do sector hoteleiro a praticar os mesmos preços para o mesmo tipo de quarto em todos os canais de venda – ou seja, impedem-nos de vender quartos mais baratos do que o Booking ou outras plataformas online.

Em 2015, França, Itália e Suíça chegaram a um acordo com a plataforma em que esta se comprometeu a não aplicar essas cláusulas num período de cinco anos – ficando sujeita a multas milionárias caso desrespeite o acordo, prossegue o Cinco Días. Ainda assim, de acordo com a AFP, esse compromisso é apenas parcial: os hoteleiros poderão oferecer tarifas mais baixas que as do Booking através de outras plataformas, como telefone ou e-mail. Na sua página, os preços terão de ser iguais aos do Booking.

A autoridade da concorrência francesa disse então que estas regras deveriam ser estendidas a todos os países europeus.

Adicionalmente, os hoteleiros querem que as plataformas electrónicas reduzam substancialmente as comissões. Ao jornal, Ramón Estalella, secretário-geral da Confederação Espanhola de Hotéis e Alojamentos Turísticos (CEHAT), diz que as agências de viagem tradicionais cobravam uma comissão de 9%, e que as plataformas como o Booking mais do que duplicam esse montante.

"Eles dizem que cobram uma média de 15%, mas os nossos cálculos mostram que é 22%", afirma Ramón Estalella, citado pelo Cinco Días. Trata-se de uma percentagem "abusiva" e que trata da mesma forma casos diferentes, sustenta.

Maioria dos portugueses compra alojamento na internet


Em Portugal, e de acordo com dados do Eurostat, 53% dos cidadãos fizeram compras relacionadas com viagens e alojamento em férias na internet em 2016, ligeiramente acima da média europeia (52%) mas ainda longe do Luxemburgo, onde 76% dos cidadãos recorreram a essa via.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

O Peixe "Português" não tem igual

Somos o país da Europa que consome mais peixe. O fenómeno acentua-se com a chegada do bom tempo

Texto: Katya Delimbeuf
Infografia: Jaime Figueiredo


Mar azul no horizonte, pé na areia e um peixe grelhado na brasa. Para muitos, a definição perfeita de um almoço de férias. A trabalhar com este alimento há 30 anos, Miguel Reino, proprietário do restaurante Aqui Há Peixe, tem clientes que o procuram o ano inteiro, mas no verão, partilha, vêm sempre mais pessoas. “Pela maresia, pelo contexto”, o peixe grelhado apetece mais com os ares estivais, quando o bom tempo chega e pede uma ementa a combinar com a época balnear. Miguel tem uma elevada percentagem de clientes regulares — alguns ainda do tempo do Aqui Há Peixe na praia do Pêgo, antes de se ter mudado, há nove anos, para o cosmopolita Chiado. Ali, regressam “clientes de Hong Kong, que vêm a Portugal jogar golfe duas vezes por ano”, mas também há comensais “de Évora, do Porto e do Algarve” que não se importam de se meter no carro e percorrer centenas de quilómetros para comer “um cherne, um pregado grande, um imperador ou um robalo bem fresco”.

Reino conhece bem o apetite dos portugueses pelo peixe. Esse apetite tão voraz que, assegura a FAO (a Organização da Alimentação e Agricultura das Nações Unidas), faz de nós o terceiro consumidor mundial de peixe — apenas ultrapassados pela Islândia e pelo Japão. Consumimos mais de 55 kg de peixe per capita num ano, mais do dobro da média dos cidadãos europeus, que se fica pelos 22,3 kg. As espécies mais consumidas são a sardinha, o carapau, o polvo, a pescada e o peixe-espada — e o polvo destronou a sardinha pela primeira vez, o ano passado. Ao todo, são umas impressionantes 600 mil toneladas de peixe que os portugueses consomem por ano, entre peixe fresco e congelado. O que coloca um problema: o consumo nacional é superior àquilo que a nossa frota pesca dentro da UE. E isso torna-nos dependentes da importação. A partir de 1 de abril, deixámos de ter peixe próprio para satisfazer os níveis de procura interna — facto agravado com o aumento de turistas, que também veem no peixe grelhado um elemento de cultura local.

A escassez de espécies marinhas é um facto consumado a nível mundial. O estudo “The Sea Around Us”, realizado entre 1950 e 2010 e publicado na revista “Nature”, em 2016, demonstra que a captura de peixe decresceu à razão de 1,22 milhões de toneladas por ano desde 1996. Miguel Reino sabe que trabalhar com peixe é hoje mais difícil e mais caro, e que o futuro reserva desafios. “Usamos muito peixe novo dos Açores, que tem mares mais limpos, como bicudas”, conta... “Em agosto, por exemplo, é muito difícil arranjar peixe em Lisboa, porque vai todo para os apoios de praia.” Também já se rendeu à evidência de que “a aquacultura é o futuro”. Só esta poderá saciar o apetite mundial por peixe. Defende que, hoje em dia, já não é linear “distinguir um peixe selvagem ou de aquacultura pelo sabor, dependendo da sua origem e da forma como as espécies são alimentadas”. “Zé Camarão”, como é conhecido em Sesimbra José Filipe Batalha Pinto, o dono do restaurante O Velho e o Mar, concorda: “O nosso peixe de viveiro é muito bom, é quase igual ao do mar”, no que toca o sabor. “Não tem nada a ver com o da Grécia, que é muito mais barato”, e que inunda as grandes superfícies nacionais. Só assim se pode fazer face à procura crescente de peixe, que “aumenta cerca de 30% nos meses de verão, entre clientes nacionais e estrangeiros”, considera.

Em 2013, a produção de peixe de aquacultura totalizou qualquer coisa como dez mil toneladas em Portugal. Mas poderia chegar facilmente às 100 mil, se “fossem aproveitados seis mil hectares de salinas abandonadas”, garantia Fernando Gonçalves, secretário-geral da Associação Portuguesa de Aquacultores (APA). A verdade, contudo, é que um robalo ou uma dourada demoram um ano e meio a passarem dos 10 gramas com que chegam aos 400 gramas com que podem ser comidos no restaurante. Ou seja, estamos muito longe da produtividade dos aviários...

Portugal acompanha a tendência mundial de aumento do consumo de peixe. As vantagens nutricionais deste alimento, sobretudo relativamente à carne, para isso contribuem. Lípidos, proteínas e outros nutrientes como os ácidos gordos polinsaturados ómega-3 são alguns dos seus benefícios. Contudo, em 2016 transacionou-se menos peixe nas lotas nacionais — 104 mil toneladas — do que no ano anterior (118 mil toneladas). Mas o valor das vendas aumentou, passando de €195 milhões de euros para €202 milhões de euros. Come-se hoje em Portugal menos peixe do que em 2011, quando se consumiram 127 mil toneladas, mas a refeição é mais cara. E o custo aumenta ainda mais no verão.


O MELHOR PEIXE DO MUNDO

Quando o gastrónomo José Bento dos Santos coordenou o livro “O melhor peixe do mundo”, em 2012, fê-lo por considerar que fazia falta registar um facto de exceção do nosso país, nem sempre devidamente valorizado. Oceanógrafos e biólogos marinhos, dos Açores e não só, discorreram sobre as condições naturais do nosso mar, que conjuga “planura, profundidade, temperatura e biodiversidade”, para explicar a qualidade do pescado português. Além disto, Bento dos Santos chama a atenção para factos que comprovam a cunhagem desta expressão: uma, a de chefes de renome internacional como Ferran Adriá que admitiram, em entrevista ao Expresso em 2011, que “o peixe português é o melhor do mundo”; outra, a do melhor restaurante de Nova Iorque, o Per Se, abastecer-se de peixe português, religiosamente transportado de avião.


Nas “centenas de restaurantes” onde comeu por este mundo fora, provando peixe de vários oceanos, rios e lagos, garante “nunca” ter provado peixe “com músculo semelhante ao nosso”. “Como é que sabemos que estamos a comer o melhor peixe do mundo?”, questiona. “É como dizia aquele chefe: parece que temos o Oceano Atlântico a entrar pela boca dentro. O nosso peixe é tão bom que nunca precisámos de criar uma receita para ele. Basta grelhá-lo.”

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

O cidadão resiliente



In:DN
06 DE SETEMBRO DE 2017

Por:Viriato Soromenho Marques

Se existisse um prémio internacional de ética pública, ele seria, certamente, outorgado hoje ao professor Adriano Moreira (AM), pela passagem do seu 95.º aniversário. Dificilmente se encontrará um outro cidadão que desde 1944, ano em que terminou a sua licenciatura em Direito, até hoje continue a deixar múltiplas marcas de ação, pensamento crítico e exemplo lúcido da sua presença no mundo partilhado por todos (para o leitor da edição impressa do DN basta olhar para a página seguinte, para encontrar na sua coluna de opinião a prova material da minha afirmação).

O que sempre admirei em AM é a sua capacidade de quebrar os binómios de ferro em que a melhor tradição intelectual do Ocidente tende a aprisionar a experiência política. A contradição abissal entre teoria e prática, objeto de uma célebre controvérsia entre Kant e Burke. A oposição entre ética da responsabilidade e ética da convicção, traçada por um Max Weber, ele próprio tolhido no torvelinho de tensões contraditórias que o faziam ter paixão pela política e, ao mesmo tempo, resistir ao canto de sereia das suas "forças diabólicas".

A clássica dilaceração, identificada por Maquiavel no coração do príncipe, entre as leis humanas e as pulsões brutais mais elementares (metaforizadas na força do leão e na astúcia da raposa). Ao longo de mais de sete décadas de vida pública, AM tem enfrentado e superado (no sentido hegeliano de negação, assimilação e ultrapassagem dos obstáculos) todos os desafios, vitórias e derrotas que a vida tem colocado no seu caminho.

Para os leitores mais jovens, recomendaria a leitura do capítulo que lhe é dedicado na derradeira obra de Manuel Lucena (Os Lugares-Tenentes de Salazar, Lisboa, Aletheia, 2015, pp. 261-371), onde a sua peculiar estatura de estadista, que pretende efetivamente aproximar a realidade e a justiça, fica patente nos anos decisivos de 1960-62, num contexto de guerra e desorientação interna, tentando, mesmo contra Salazar e os setores mais cristalizados do Estado Novo, evitar, ou ao menos atenuar, o trágico capítulo português no grande crepúsculo do Euromundo.

Cada ser humano tem o seu segredo interior (que até o próprio desconhece), mas atrevo-me a considerar que uma parte da laboriosa, mas serena, resiliência de AM se fica a dever a uma espécie de software comportamental, que permanece inalterável ao longo do tempo, nos seus três tópicos fundamentais.

Primeiro, nunca desistir do conhecimento na avaliação do mundo - com o imenso trabalho de estudo e investigação que ele implica - mas sem nunca cair na arrogância científica e intelectual, que é uma das formas mais modernas de ideologia, usada como desculpa para subestimar, excluir e reprimir as vozes dos que pensam de modo diferente. Segundo, acreditar sempre que o melhor se atinge preferencialmente pelas estradas do possível, envolvendo voluntariamente na viagem também os que dela duvidam, do que abraçando a retórica das promessas utópicas, que cedo se transformam em terror e violência. Terceiro, nunca abdicar dos princípios fundamentais, pois são eles que não só mantêm intacta a integridade e a identidade do agente (a sua alma política e ética), mas são também eles que temperam e limitam o que deve e pode, ou não, ser realizado pela ação.

Para AM esses princípios básicos são os da igualdade e os da cooperação universal do género humano. Ao mesmo tempo um ponto de partida e uma tarefa sempre à espera de ser cumprida, como as duras promessas do nosso presente-futuro bem o comprovam.