domingo, 24 de abril de 2016

sobre a incrivel relação dos portugueses com o mar (excerto de artigo de MST no Expresso

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3 Como no ano passado, a Câmara Municipal de Lisboa lançou um concurso de ideias aberto a todos os munícipes, em que o único limite é que os projectos propostos não ultrapassem o valor de 50.000,00 euros.
Eu tenho uma ideia, mas infelizmente custa bem mais que isso. Todavia, acho que valia a pena pensar nela e, já aqui a tendo aflorado, vou agora concretizá-la mais.

A minha ideia é pegar no lindíssimo, histórico e abandonado edifício da Cordoaria Nacional, em Belém, e ali montar um Museu do Mar e das Descobertas – uma grave lacuna da cidade e do pais.

Um museu que através do recurso à pintura, aos objectos, mapas, vídeos, literatura (excertos da “Carta de Pero Vaz de Caminha”, da “História Trágico Maritima”, poesia, etc.), da reprodução de navios celebres em escala pequena, como existe no Museu da Marinha em Veneza (e temos ainda artífices para isso), de batalhas navais em que participámos ou que testemunhámos ( Trafalgar foi ao lado do Algarve), nos desse, para nós e para todos os que nos visitam, uma visão histórica e compreensiva do que foi a longa e incrível relação dos portugueses com o mar. Não apenas as Descobertas, mas também, a extraordinária epopeia da pesca à baleia (que nunca teria sido levada a cabo sem as tripulações portuguesas, dos Açores e Cabo Verde, como atesta uma visita ao Museu da baleia, em New Bedford), ou a igualmente incrível epopeia da pesca ao bacalhau, à vela. Que contivesse uma descrição, através de desenhos, mapas, fotografias, dos fortes que os portugueses edificaram nas duas costas de África, do Malabar, no Golfo Pérsico e no Brasil e da sua importância para a história; das culturas que, por via marítima, introduzimos no Brasil, do intenso tráfico comercial que promovemos durante séculos entre a Índia, o Brasil, África e Lisboa e, sim, também da escravatura que praticámos intensamente até ao século XX. Trataríamos da História, mas também da oceanografia, de que D. Carlos foi pioneiro e deixou vasto testemunho, das artes de pesca, das espécies do nosso mar, da importância dos recursos da nossa ZEE e a pensar nas escolas, também coisas como princípios rudimentares de navegação em alto-mar, importância dos faróis e seu funcionamento, vida a bordo, técnicas de resgate e salvamento, etc. Acho que devemos isto a nós mesmos e Lisboa deve isso a si própria.

Miguel Sousa Tavares, in : “Expresso” de 23 de Abril de 2016

sábado, 23 de abril de 2016

Dia Mundial do Livro

O Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor (também chamado de Dia Mundial do Livro) é um evento comemorado todos os anos no dia 23 de Abril, e organizado pela UNESCO para promover a o prazer da leitura.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

O futuro da prostituição?

"França aprova lei que proíbe pagar por sexo

Os deputados da câmara baixa francesa aprovaram esta quarta-feira uma legislação que torna ilegal pagar por sexo e que impõe multas de até 3750 euros a quem comprar serviços sexuais. Os que forem declarados culpados desse crime terão ainda de participar em aulas para aprenderem mais sobre as condições que as prostitutas enfrentam no seu trabalho.

A lei foi aprovada na câmara baixa com 64 votos a favor, 12 contra e 11 abstenções. Sublinha o "Le Monde" que esta legislação estava a ser debatida há mais de dois anos por causa de diferenças de opinião entre a câmara baixa e a câmara alta do Parlamento francês. Durante o debate final, cerca de 60 prostitutas manifestaram-se frente ao Parlamento, em Paris, com cartazes onde se lia "Não me libertem, eu tomo conta de mim própria", noticiou a AFP.

Ao longo destes dois anos de discussão, membros do sindicato de trabalhadores do sexo, o Strass, disseram que, a ser aprovada, a legislação iria ter um impacto negativo nas condições de vida de entre 30 e 40 mil prostitutas do país. Os que apoiam a medida dizem que é o melhor instrumento para combater as redes de tráfico humano que operam dentro e fora de França.

"O aspeto mais importante desta lei é que garante acompanhamento às prostitutas, dá-lhes documentos de identificação porque sabemos que 85% das prostitutas aqui são vítimas de tráfico", disse à Associated Press Maud Olivier, deputada do Partido Socialista que patrocinou a lei sob a qual fica mais fácil para prostitutas estrangeiras obterem autorização de residência temporária em França se aceitarem procurar outros empregos.

França segue assim o exemplo da Suécia, que se tornou um dos primeiros países do mundo a criminalizar os que pagam por sexo e não as prostitutas. As autoridades suecas têm garantido que o número de mulheres nas ruas na principal área de prostituição de Estocolmo caiu desde que a legislação foi aprovada."

Fonte:Expresso 07.04.2016

terça-feira, 12 de abril de 2016

O paradoxo, a causa e a solução


Portugal é um paradoxo.
Por um lado é o único pais da Europa e um dos poucos no mundo que foi à falência em pouco mais de três décadas (78/83/2011). Já foi ultrapassado em PIB per capita por cinco países do alargamento (Malta, Chipre, Eslovénia, Rep. Checa e Eslováquia) e tem a produtividade mais baixa da zona Euro (mesmo apenas 84% da grega que contudo tem menor % de população activa e maior taxa de desemprego).

Por outro lado, tem oito coisas para ser dos países mais ricos do mundo. Uma localização excelente entre os dois blocos económicos mais ricos do mundo; a 11ª maior zona marítima mundial; um clima ameno (sem tufões, nevões, verões tórridos); o português é a 5ª língua mais falada no mundo; e o 6º maior mercado mundial; um pais seguro; e uma força de trabalho apreciada no exterior (inquéritos colocam os portugueses sistematicamente entre os mais estimados).

Como explicar este paradoxo?

A causa remonta a D. Luís da Cunha (mentor do Marquês de Pombal) que numa carta lhe referiu que os países pequenos necessitam mais de estratégia que os grandes, porque aqueles carecem dos recursos destes para se reerguerem em caso de queda.

No zénite do seu poder (1578), Portugal afastou-se da sua core competence com que criou o seu império: batalhas marítimas, ataques a fortificações e cidades costeiras, metendo-se pelo deserto a dentro para dar uma batalha campal, algo que não fazia há mais de cem anos (desde a batalha de Toro da sucessão dinástica ibérica em 1476).

Resultado: não houve nem plano de batalha, nem sequer ordem de inicio de combate. Morreu o rei. A elite. E de um exército de 23.000, cem (!) escaparam.

As consequências foram três. No curto prazo o centro de decisão passou para Castela e as possessões portuguesas negligenciadas foram tomadas pelos holandeses e ingleses, de Ormuz, a Salvador, a Luanda.

No médio prazo uma emigração incessante. E no longo prazo um circulo vicioso entre a emigração (em quantidade e qualidade) e o declínio (políticos, económicos, social e cultural).

Hoje Portugal tem 5 milhões de portugueses registados nos consulados no exterior e nos anos recentes o fluxo tem aumentado em quantidade e qualidade.

Depois de Malta, Portugal é o pais europeu com maior percentagem de população no exterior.

A solução é reconhecer como José Hermano Saraiva que somos poucos (15 milhões), mas se formos todos seremos suficientes e assim criar sinergia entre os 5 do exterior e os 10 do interior.

Em quatro áreas: turismo (só 4 em 10 brasileiros que passam pela Portela pernoitam em Portugal); social, facilitando p.e. a aquisição de segundas residências e o acesso às universidades e o acesso às universidades (há residências 42 milhões de jovens entre os 15-24 anos nos CPLP); económica (usar a diáspora para agentes de exportação para além do mercado da saudade); e financeira (benefícios fiscais aos residentes no exterior).

Em Janeiro uma iniciativa da AICEP reuniu mais de trinta líderes da diáspora que apresentaram 42 medidas para criar sinergia: desde o voto da internet, até articular as câmaras de comércio com as delegações da AICEP nas acções promocionais no exterior, até acabar com a dupla tributação dos reformados que regressam a Portugal (que em teoria acabou mas na prática não).

Em conclusão, criar sinergia entre os 5 e os 10 para transformar Portugal de um pais periférico na Europa em central no mundo.

Tal requer medidas e acções concretas.

Não discursos. Nem planos. Lembrando Shakespeare que dizia que “ a acção é a maior das eloquências” e Churchill cujo motto era “acção hoje”.



Jorge A. Vasconcellos e Sá
Mestre Drucker School PhD Columbia University
Professor Catedrático
In “ Vida Económica” de 26 de Junho 2015

sábado, 9 de abril de 2016

Segurança, securitarismo, direitos humanos e sua ameaça

Repressão em nome da segurança compromete direitos humanos - Amnistia Internacional
LUSA24 de Fevereiro de 2016, às 00:01


A repressão draconiana feita em nome da segurança em 18 países, incluindo Angola, está a pôr em risco a proteção internacional dos direitos humanos, alertou hoje a Amnistia Internacional (AI).


No seu Relatório Anual 2015/16, a AI (Amnistia Internacional), citando o secretário-geral da organização, Salil Shetty, salienta que há 18 países, entre os quais Angola, o único lusófono, que já alteraram as leis e os sistemas que protegem os direitos humanos, de acordo com "políticas de interesses nacionais" e de "repressão draconiana em nome da segurança".

"A proteção internacional dos Direitos Humanos está em risco de soçobrar conforme as políticas de interesses nacionais a curto prazo e a repressão draconiana em nome da segurança estão a resultar num ataque cerrado à liberdade e direitos fundamentais", alertou Shetty.
"Muitos Governos têm violado a lei internacional desavergonhadamente e estão deliberadamente a minar as instituições criadas para proteger os direitos das pessoas", escreve Shetty no relatório.

Segundo o secretário-geral da Amnistia Internacional, "milhões de pessoas" estão a "sofrer enormemente" às mãos dos Estados e de grupos armados, enquanto outros governos "retratam descaradamente" a proteção dos Direitos Humanos como uma "ameaça à segurança, à lei e ordem ou aos valores nacionais".

A "ameaça global" aos direitos humanos reflete-se na "debilitação" dos organismos da ONU, Tribunal Penal Internacional (TPI), Conselho da Europa, Sistema Interamericano de Direitos Humanos e outros mecanismos regionais, o que põe em risco "70 anos de trabalho duro e de progressos".

Como responsáveis, a AI responsabiliza governos "que tentam escapar à fiscalização" do que fazem nos respetivos países.

No relatório, a AI sublinha que 122 países "torturaram ou sujeitaram" pessoas a maus tratos, 29 "forçaram ilegalmente" refugiados a regressarem aos Estados de origem, salientando, por outro lado, ser "desesperadamente necessário" revigorar a ONU, vítima, ao longo de 2015, de "hostilidade e negligência de Governos obstinados".

Shetty apontou o caso da Síria para ilustrar as consequências da ação deliberada de vários países visando o "falhanço sistémico" das Nações Unidas.

"Os líderes mundiais têm o poder de impedir que estas crises prossigam numa espiral ainda mais fora de controlo. Os Governos têm de pôr fim ao ataque que estão a fazer aos nossos direitos e fortalecer as defesas que o mundo estabeleceu para os proteger. Os Direitos Humanos são uma necessidade, não um acessório e os riscos para a Humanidade nunca foram tão altos", alertou.

Angola é um dos 18 países que a AI destaca como principais violadores dos Direitos Humanos no mundo, lista que integra também as maiores potências como China, Estados Unidos, Reino Unido ou Rússia.

No relatório, a AI indicou ter documentado ao longo do ano passado "graves violações" de direitos económicos, sociais, políticos e civis, destacando cinco países africanos (Angola, Burundi, Egito, Gâmbia e Quénia) e também quatro europeus (Eslováquia, Hungria, Reino Unido e Rússia).

A AI realçou ainda três países americanos (Estados Unidos, México e Venezuela), outros tantos asiáticos China, Paquistão e Tailândia) e o mesmo número de Estados no Médio Oriente (Arábia Saudita, Israel e Síria).

Angola é destacada pelo uso de leis de difamação e da legislação de segurança de Estado "para perseguir, deter e prender os que expressam pacificamente a opinião", bem como por "desdenhar publicamente" as recomendações das Nações Unidas sobre o estado dos direitos humanos no país.

Resumindo apenas num parágrafo todos os destaques, a AI refere que a China está na lista pela "escalada da repressão" contra os defensores dos Direitos Humanos, enquanto os Estados Unidos são visados pela manutenção em funcionamento da prisão de Guantanamo, "exemplo das graves consequências da «guerra global ao terrorismo»".

Em relação à Rússia, a AI acusa o regime de Vladimir Putin de recorrer a "legislatura repressiva" e a leis "anti-extremismo vagamente formuladas", pela "tentativas concertadas para silenciar" a sociedade, a "vergonhosa recusa" em reconhecer a morte de civis na Síria e pelas "iniciativas insensíveis" de bloqueio à ação do Conselho de Segurança da ONU no território sírio.

Já sobre o Reino Unido, a organização de defesa dos Direitos Humanos acusa Londres do "recurso continuado à vigilância maciça" em nome do combate ao terrorismo e pelas "tentativas regressivas" para escapar à supervisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
JSD // VM
Lusa/Fim

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Os papéis do Panamá

Um país que tem sido governado em nome dos “mercados”, através do Eurogrupo e do FMI por fora, e pelo PSD-CDS por dentro, não pode espantar-se com as revelações dos chamados Papéis do Panamá. Na verdade, o dinheiro sujo, semi-sujo, semilimpo, vagamente limpo que circula pelos offshores é também o mesmo que alimenta muita da finança internacional e circula pelos fundos que actuam no mercado.

Há algum tempo ouvi um antigo responsável da Bolsa francesa dizer que mais de 90% do dinheiro que alimenta os fundos de investimento não era “transparente” e que, no mais transparente dos “mercados”, o das obrigações, apenas 50% do capital tinha pai e mãe.

O que isto significa em termos políticos é que uma geração de políticos rendidos a uma certa concepção da economia, a que presidiu aos “ajustamentos” na Europa, permitiu que o controle das nações, endividadas ou não, passasse para uma entidade ex machina a que chamavam “os mercados”. “Os mercados” especulavam, dia sim, dia sim, e no intervalo dos dias, premiavam e puniam e, nesse mecanismo, ajudaram partidos e políticos a manterem o poder para prosseguirem a política que lhes era mais favorável. O poder político dobrou-se face ao poder económico, e, a prazo, os actores políticos tornaram-se instrumentos desse poder económico, muitos deles com a alegria desse serviço estampada no rosto como aconteceu por cá. Que esse dinheiro dos “mercados” era o resultado da fuga ao fisco, do esconder de fortunas, do roubo dos seus países e dos seus povos, do roubo dos seus trabalhadores cujos direitos laborais foram um dos alvos centrais dos últimos anos, do crime, importou pouco. Era dinheiro e todos os poderosos, cuja lista se começa agora a conhecer em detalhe, metiam a mão na massa. Cameron, cujo país alberga quase todos os paraísos fiscais onde trabalhava a Mossack Fonseca, Merkel e alguns dos seu servos no Eurogrupo tinham que saber, Juncker sabia bem demais porque fez a mesma coisa no Luxemburgo e isso não foi óbice para ser aquilo que é, Rajoy, idem e Passos e Portas, idem aspas. Poupem-nos ao espectáculo da surpresa ofendida.

Não é possível fazer nada?
É, é. O que é que impede um país, ou melhor um grupo de países de impedir que nos seus territórios actuem empresas sediadas nas Ilhas Virgens, em Jersey, ou em Gibraltar, que se sabe serem fachadas de dinheiro dos offshores e cujos proprietários não se conhecem? O que impede de se colocar numa “lista negra” todas as empresas nestas circunstâncias que não aceitem uma auditoria fiscal a sério? O que impede que haja uma instituição internacional como acontece com o Tribunal Penal Internacional, dotada de poderes de banimento, de impedimento de circulação, de confisco, que faça de polícia fiscal e leve a um tribunal estes prevaricadores? No fundo são eles que estão do lado de lá da lei, não são coitadinhos. O que impede que o dinheiro obscuro cujo retrato aparece nestes Papéis do Panamá seja confiscado ou expropriado? O que é que impede de se actuar? Vontade, ou melhor, a falta dela.
Bem sei que a comoção seria grande nos meios financeiros, Putin invadiria as Ilhas Virgem, Messi deixaria de jogar, mil e um dos políticos que roubam os seus povos, da Islândia a Angola e ao Paquistão, teriam que ter vidas e reformas menos douradas. Bem sei que me vão dizer que todos estes instrumentos e leis já existem, mas não podem ignorar que, se existem, alguma coisa os torna ineficazes. O que é que impede de se actuar? Vontade, ou melhor, a falta dela.

A responsabilidade não existe!
Uma auto-estrada concessionada à Brisa abriu um rombo monumental originado pelo ruir de um tubo de passagem de água. Vão ser dois meses pelo menos para compor os estragos. Já se ouviu, até por parte de alguns responsáveis da empresa, que as obras deveriam ter sido feitas a tempo, dado que se conhecia o problema, mas não foram. Houve uns remendos, mas obras a sério foram, na melhor das hipóteses, adiadas. É óbvio que a empresa vai perder muito dinheiro das portagens que não vai cobrar, mas aquilo a que agora se chama “utentes” vai perder muito mais. Vai ter que fazer mais quilómetros e gastar mais tempo, por um desvio em estradas secundárias e isso vai trazer às autarquias ou ao Estado, que têm responsabilidade por essas estradas, mais custos de manutenção e reparação. Sabe-se por outros precedentes que as empresas concessionárias não aceitam esses custos indirectos como sendo sua responsabilidade. Aliás, não se mostram em nenhuma circunstância dispostas a aceitar que o que está a acontecer pode ser da sua responsabilidade por negligência. Vi vários noticiários televisivos fascinados pelo rombo, que é uma coisa muito “televisiva”, mas falar de responsabilidade, nada.

Por Pacheco Pereira

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Luanda: A Morgue



Luanda - São 2:00 da madrugada. À entrada, o trânsito adensa-se. As viaturas fazem fila para entrar. A maioria entra com caixões, outras levam mortos. Em cinco horas, até às 7:13, 235 cadáveres sairão da morgue do Hospital Josina Machel, em Luanda, para serem enterrados. É uma média de saída de um caixão a cada minuto e 20 segundos.
Estão ali 474 corpos

O governo pode sonegar os dados. Mas não há como esconder os mortos. Basta contá-los, um por um, à saída. É a rotina na morgue do maior hospital do país.

Há uma epidemia de febre-amarela, e a malária mata a um ritmo assustador. Como sobressai entre as conversas de familiares, são estas as duas principais causas da mortandade a que se assiste em Luanda. Numa cidade com mais de seis milhões de habitantes, aqueles que recorrem ao Josina Machel são apenas uma pequena amostra da realidade.

“Pai [expressão de respeito], não vale a pena. É muita gente a morrer. Nunca vi coisa igual”, lamenta um funcionário da morgue, encarregado de guardar e remover os corpos. Abana a cabeça e vai logo atender à chegada de mais.

Numa pequena viatura de duas portas, três senhoras sentadas, vestidas com panos coloridos, levam ao colo o corpo de uma criança, enrolado num pano.

São 3:30 da madrugada. Aumenta o já caótico tráfego à entrada da morgue, multiplicando-se o número de entradas e saídas.

Na recepção não há um minuto de descanso. Deveria formar-se uma fila por ordem de chegada, mas há problemas de espaço para a demanda de cadáveres. Estabelece-se um pequeno negócio paralelo. Custa seis mil kwanzas para obter espaço imediato.

Não há um computador ou uma máquina de escrever. É tudo manual, caótico.
Vou até às câmaras frigoríficas, ver para crer. Não pergunto nomes, nem causas. Quero apenas vê-los, ouvir, anotar a realidade, estar ali presente.

Na parte traseira da morgue, o cenário fala por si. Cada família leva o seu bidão com água, são todos amarelos, de 20 litros, banheira, sabão, o necessário para darem banho aos seus mortos.

Conto mais de 20 corpos espalhados, a serem lavados ao ar livre pelos familiares, vestidos, aprumados para o adeus final aos entes queridos. No chão, as águas não escorrem. Misturam-se com sangue, com os plásticos abandonados, luvas, máscaras, panos, roupas retiradas dos mortos. Há uma fossa entupida, com águas putrefactas, no mesmo local.

“Isso é país! Isso é país! Isso é país!”, vocifera um familiar.
Passo por entre a lavandaria improvisada de mortos, procurando controlar a náusea e evitar as poças de água. Muitos calçam apenas chinelas. Há mulheres descalças. A maioria tem máscaras e luvas. Noto que há alguns lençóis brancos, por estrear, destinados a envolver determinados corpos. Passo por um jovem que segura um fato e uma camisa branca imaculada pelo cabide. No chão, está o seu morto a ser despido, antes do banho. Ao lado, outros jovens retiram o plástico que forra o caixão. Três senhoras atrapalhadas perguntam em voz alta onde podem lavar o seu parente. Parecem perdidas, incrédulas. Várias vozes sugerem espaços livres para que prossigam com a tarefa. Não há iluminação adequada na lavandaria. Improvisa-se.

Passo pelos compartimentos assinalados como banhos para homens, mulheres e crianças. Praticamente não têm iluminação e as condições não são melhores que ao ar livre, apenas conferem alguma privacidade. Estão todos ocupados.
As câmaras
Naquele corredor, estão numeradas, de ambos os lados, um total de 174 gavetas frigoríficas. Pelo chão há luvas, máscaras, restos de roupa, tudo espalhado pelo chão molhado, sujo e ensanguentado. Um grupo cerca uma gaveta. Estão lá quatro corpos, empilhados uns por cima dos outros, com as cabeças viradas para os pés uns dos outros, de forma alternada. Apenas os separam as roupas que vestem. É o que os identifica. Não estão em sacos mortuários (body bags), nem sequer trazem no tornozelo ou no pulso uma etiqueta de identificação.

Estão ali 474 corpos.

O engarrafamento, a modernidade e a candonga
São 4:30 da madrugada. Há engarrafamento numa extensão inferior a 800 metros, entre a ponte do Zamba 2 e a entrada da morgue, na Rua da Samba. Viaturas entram e saem com caixões a todo o momento, causando o caos no tráfego. Familiares e amigos transportam caixões a pé, atravessando a Rua da Samba para o outro lado, no Bairro Azul, onde estacionaram viaturas para evitar o engarrafamento. Alguns estacionam mais abaixo.

Vejo um pai, alto e magro, a caminhar com um caixão minúsculo, forrado em plástico, debaixo do seu braço. É para um recém-nascido. O seu olhar é vago, distante.

Do outro lado da rua, da morgue dilapidada, situa-se o novo edifício da Assembleia Nacional, orçado em US $311 milhões.
Da entrada da morgue, vê-se a abóbada rosada da Nova Assembleia Nacional, erguida do outro lado da estrada a um custo de US $311.2 milhões (pagos através de fundos secretos à disposição do Presidente). Foi inaugurada em Novembro passado, imitando o Capitólio dos Estados Unidos, mas as obras ainda estão por concluir. Os deputados foram informados que a manutenção mensal do edifício custa o equivalente a US $1.7 milhão. Um pouco mais acima é a Cidade Alta, a menos de 500 metros, onde se situa o Palácio Presidencial. No mesmo quarteirão da morgue está o Ministério da Saúde. Do outro lado do muro está o maior hospital pediátrico do país, que ali deposita mais de 20 crianças por dia.

Um quilómetro a norte, está a Marginal de Luanda, símbolo da ilusão de modernidade do regime do MPLA e de José Eduardo dos Santos. É uma obra de requalificação da Baía de Luanda, que custou US $360 milhões. Tem palmeiras importadas da Flórida, nos Estados Unidos da América. Os jardins são bem tratados. Têm sempre água. A Baía é bonita, não importa o mau cheiro das fossas que despejam para lá. Na morgue, cada um leva o seu bidão com água para cuidar dos finados.

Tanto na travessa como na área de estacionamento da morgue, consolida-se o pequeno comércio. Três jovens com garrafas térmica, copos de plástico, pacotinhos de instantâneo e de açúcar vendem café. Algumas mulheres vendem luvas e máscaras descartáveis para que os familiares possam entrar na morgue, identificar, remover os seus cadáveres das gavetas e dar-lhes banho. O par de luvas custa 100 kwanzas, assim como a máscara. Uma senhora reclama, dizendo que há uns meses atrás aqueles itens custavam 20 kwanzas cada. Conhece bem a morgue e os seus negócios. Prefere ir assim. Ofereço-lhe as luvas. Falo-lhe das doenças que pode apanhar. Calça chinelas, não tem protecção para os pés.

Mais logo, a filha do presidente, deputada do MPLA, Tchizé dos Santos, aparecerá nos ecrãs da Televisão Pública de Angola (TPA) como madrinha de um Tea Club, a oferecer luvas, máscaras, seringas e outros materiais descartáveis aos hospitais. Os dirigentes têm materiais médicos descartáveis para oferecer aos hospitais, para benefício da imagem pessoal em tempo de crise. Os candongueiros também têm, para vender.

Outro negócio próspero é o do whisky sul-africano em pacotinhos. Cada um custa 100 kwanzas. Vende-se também como desinfectante das mãos. Depois de tratar de uma vintena de corpos, um dos funcionários pede um pacote de whisky, porque sente comichão nas mãos, usa umas luvas de cozinha, diz que as descartáveis se rasgam facilmente e que a morgue não lhes providencia material básico de trabalho. O vendedor lembra-lhe que já tem uma dívida de 300 kwanzas.

A Câmara Cinco
O funcionário tinha acabado de depositar um corpo na famosa Câmara Cinco, a que uns chamam “porão”, outros “contentor”. O tráfego de mortos é de tal ordem, que a câmara se mantém praticamente sempre aberta até ao período de acalmia, depois das 7:00. É um congelador único com 450 corpos empilhados, em estantes e no chão. É aqui que se depositam os acidentados, os não identificados, os corpos levados pelo Serviço de Investigação Criminal (SIC) e outras forças policiais. O cheiro nauseabundo de corpos em decomposição é insuportável.

À entrada da Câmara Cinco, o corrupio de gente em busca dos seus entes queridos é constante.

Ode à menina
Passo, mais uma vez, pela lavandaria, incapaz de compreender, de aceitar tamanha desumanidade institucional, o destino de um povo perdido. À entrada da câmara principal, vejo uma mulher robusta, sentada, vestida de panos e uma camisola. Ao seu colo tem uma menina, de menos de dois anos, aninhada, vestida apenas com uma fralda. Serena-a com um cântico religioso, enquanto duas outras mulheres lhe limpam o corpo, fazendo coro. Cada uma delas segura-a numa mão e afagam-na com toda a ternura. Fazem o mesmo com os pés. É um momento de amor, de paz, que devolve algum sentimento humano àquele lugar. Por um momento, tive esperança. Retiram-lhe, então, uma pequena fita adesiva que tem colada à testa, com o seu nome. Está pronta para a partida.

As três conversadoras
Cá fora, à entrada, três mulheres conversam entre si sobre a mortandade em Luanda, o serviço público de saúde e as consequências do estado da Câmara Cinco. Passa o vendedor de whisky, a líder da conversa reclama um pacote. “Eu normalmente não bebo, mas aqui não há como. Dói ver tudo isso”, justifica-se. Conta então como os seus vizinhos receberam do Hospital Josina Machel a notícia de que o seu ente querido tinha falecido durante a madrugada e de que o seu corpo fora transferido para a morgue. Aparentemente, na madrugada seguinte, alguns familiares identificaram o corpo apenas pelos calções pretos que vestia, retiraram-no da Câmara Cinco, deram-lhe banho, colocaram-no no caixão e levaram-no para casa, ao que se seguiu o enterro. Dias depois, o “morto” apareceu em casa, tendo recebido alta do hospital. “Agora não ficou muito bom da cabeça, depois de saber que a família já tinha feito o seu funeral”, conta a mulher.

Outra das mulheres refere-se a um engano de identidades na entrega de cadáveres, que levou uma família a enterrar uma desconhecida. “Os bacongo, os langas [termo pejorativo extensivo aos cidadãos da RDC] quando deram conta que a sua irmã já tinha sido enterrada por engano, conseguiram identificar a família e foram lá exigir que desenterrassem o corpo”, e desvia a conversa para a classificação dos grupos etnolinguísticos, distinguindo aqueles que a seu ver sabem defender os seus interesses dos que se sujeitam a todo o tipo de abusos. Ao lado, indigna-se um senhor que volta e meia molha a máscara que lhe cobre o rosto com whisky de pacote, para neutralizar o cheiro fétido do local. Insurge-se contra o que considera conversa tribalista e explica que ficou sete anos praticamente sem conseguir calçar sapatos, devido a uma doença que lhe afectava os pés. Por falta de dinheiro para ser transportado para a África do Sul, a Namíbia ou a Europa, deslocou-se até à República Democrática do Congo, onde em pouco tempo recuperou a saúde. “O médico nem sequer aceitou os US $500 que lhe ofereci por me ter tratado. Estamos sempre a falar mal dos bacongo e dos congoleses, mas olha que o serviço deles de saúde, mesmo com guerra e corrupção, não se compara com a gatunice e a desumanidade dos angolanos.”

Entra nesse momento um carro de uma agência funerária. As três senhoras aguardavam por essa viatura. Já há algum tempo que haviam dado banho ao seu menino. Vestiram-no todo de branco e taparam-no com um lençol. Está ali na “pedra”, como chamam à bancada de cimento, na antessala reservada para as crianças. A interlocutora pede imensas desculpas ao ofendido. As três despedem-se, retiram o pequeno caixão branco da viatura e começam a chorar. Vão à bancada, colocam o menino no seu repouso, transportam-no para o carro numa choradeira e partem.

São 7:13. Saíram até agora 235 cadáveres. O ritmo abranda. Já não há lavagem de corpos. Surge pessoal de limpeza para dar uma aparência de normalidade àquele lugar. É como se tivesse tido um pesadelo. É sábado.

O Ministério da Saúde
Na segunda-feira vou ao gabinete do ministro da Saúde, Luís Sambo, a menos de dez minutos de caminhada da morgue. O impressionante sistema moderno de torniquetes, de activação electrónica, que se vê nos corredores parece já não funcionar.

Explico à secretária a razão do meu pedido de audiência. Transmito resumidamente o que vi na morgue. A secretária informa-me da ausência do ministro e encaminha-me para o seu assessor jurídico, Adalberto Miguel. Naquele instante entra o ministro. “Boa tarde”, cumprimenta-me, seguindo para o seu gabinete.

O assessor toma nota do meu relato sobre o estado de sítio na morgue, que é ali ao lado. Agradece. Refere que o ministro, nomeado para o cargo a 5 de Março, “começará a conceder audiências dentro de duas semanas”. O ministro “é afável, de fácil trato”, sublinha o assessor.

Até à sua nomeação, Luís Sambo exercia o cargo de secretário de Estado da Saúde, para o qual havia sido nomeado nove meses antes. Exercera ainda, ao longo de dez anos, o cargo de director regional para África da Organização Mundial da Saúde.

Crueldade e insensibilidade

Depois de três dias a testemunhar aquilo que se passa na morgue, seria francamente insuficiente afirmar que o país tem um líder insensível e cruel, um regime desumano.

Acumulam-se as perguntas. Como é isto possível? Quem são os decisores que permitem que isto aconteça? Por que razão o povo angolano, que sofre há tanto tempo, se sujeita a isto? Quando acabará o sofrimento? O problema é que todos sabemos a resposta, mas estamos imobilizados pelo medo e pela apatia. A passividade dos cidadãos diante da catástrofe é absolutamente alarmante.

Os pesadelos pertencem à noite e o relógio não pára.

Por: Rafael Marques